…marcas incuráveis – II

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Violence por Riccardo Cuppini

Por essência, o homem é agressivo; isto não é uma novidade. As cenas de violência têm feito parte da patologia da nossa vida cotidiana. O que antes era pouco comum e estranho tornou-se familiar. Nós vamos nos acostumando e aprendendo a conviver com ela. A cada dia, estamos nos moldando às suas novas formas e aparências, sob o regime de um requinte sutil e versátil, até mesmo assustador. Vamos construindo um novo pacto silencioso, amplo e solitário em relação a uma violência. Então, uma insanidade sem limites vai encontrando uma acomodação progressiva. Já não nos espantamos tanto com os distúrbios que geram uma violência, formulamos novas reações, padronizadas, frente a este ou aquele ato transgressivo. Ou seja, aos poucos estamos institucionalizando a violência como um meio necessário de sobrevivência social. Como lidar com a agressividade solta e errante, como canaliza-la melhor para dela tirar um bom uso? Eis o desafio, e não há uma resposta única, mas devemos estar abertos a um aprendizado a partir de alguns acontecimentos.

Mesmo porque as famílias e as autoridades têm de se empenhar num trabalho para relativizar estes deslizes, na medida em que uma vida em sociedade, por si só, é impossível de ser vivida como ideal. Nas configurações sociais existe um ponto de tensão que gera uma desarmonia que é estrutural, um incurável. Em 1925, numa referência ao livro de um educador que aborda a delinqüência na adolescência, Freud irá afirmar que educar, governar e curar são três tarefas impossíveis. De todo modo, teremos que nos contentar com resultados que se contrapõem aos ideais, resultados parcos e, por vezes, insuficientes. Ou seja, o que nos resta é uma insistência em direção a um progresso onde as coisas sejam realmente possíveis.

Basta que se observe, por exemplo, o comportamento das crianças para constatar como a agressividade e a violência estão presentes em todo desenvolvimento. Não temos lembrança da criança que teríamos sido. Esta criança está adormecida, esquecida. O amor e o ódio possuem a mesma raiz. As nossas brincadeiras infantis quase sempre eram alinhavadas com uma forte dose de agressividade. Um pouco mais, um pouco menos. O próprio Freud nomeou a sexualidade infantil como perverso-polimorfa. O ser humano é complexo demais! Em algumas circunstâncias, torna-se uma bomba relógio.

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Com o passar dos anos, esse polimorfismo infantil deverá sofrer os efeitos de um limite imposto pela educação. Isto é um necessário. Esta passagem introduz a criança no processo civilizatório, na cultura, no respeito e numa boa convivência com o próximo; o que resulta deste difícil processo é o valor da palavra. A figura da mãe irá ocupar um lugar primordial na educação de seu filho. A mãe coloca o filho no mundo. Mas quem dá vida e existência social e simbólica ao filho é o pai, a autoridade paterna, pois o pai é o agente de uma lei que irá dar um basta nos excessos, nos exageros da dualidade mãe-filho, abrindo um novo caminho para o filho ou para a filha, rumo a uma sublimação. Mas é a mãe quem realmente passa para a criança um estatuto simbólico da lei paterna. Tudo dependerá, logicamente, dela. É a mãe quem verdadeiramente passará ou não o pai. Ou, pelo menos, a sua palavra.

A função da palavra do pai, inscrita como função simbólica de lei, salva a criança de sua própria agressividade contra si mesma e com o outro. Uma agressividade que provoca medo, pavor, terror no próprio sujeito, na medida em que o transcende e que nem mesmo ele tem controle. O assentimento da criança à lei é uma das maneiras de ela poder se orientar frente à força pulsional agressiva e desorientada. Quando a criança não tem condições de subjetivar os valores simbólicos da lei familiar, ela, inevitavelmente, irá produzir delitos e transgressões, fazendo-se punir pelas autoridades que zelam pelo funcionamento das instituições.

Violence por Ran Yaniv Hartstein

O jovem ou adulto que transgride em excesso já traz dentro de si uma necessidade inconsciente de se fazer punir. Necessidade de ser punido, castigado. Mas, como isto é possível? Que horror, meu Deus! Já é fato conhecido, que todos nós carregamos uma criança ao longo da vida. E esta criança muitas vezes se faz reconhecer como uma criança má, uma criança que necessita ser punida e castigada. Podemos dizer que é nesta posição subjetiva, de se fazer castigar, que esta criança se sente querida e amada. Portanto, torna-se necessário que eu venha – mesmo sem saber – cometer uma transgressão que justifique uma punição, porque isso me apraz, me faz me sentir amável comigo mesma. Uma criança que necessita portanto ser punida. De toda maneira, ela porta traços e marcas de uma historicidade que são regidos por uma lógica louca e paradoxal, porque inconsciente. Por isso mesmo, os fatos delinqüentes e assassinos são produzidos sem que o sujeito se saiba ali dentro dos parâmetros de uma razão lógica, justa e coerente. Podemos dizer que há um coeficiente criminal que faz parte de nossas vidas, está dentro de cada um de nós, que não pode ser medido pela idade determinada pelo registro civil. A maioridade penal será então medida pelo teor do ato em si, ou seja, aquele que foi praticado num dado momento, certamente regido e determinado por uma idade lógica que se contrapõe à de uma cronologia da vida, ao que teria sido dado, de antemão, pelo registro de dias vividos, contados desde o dia de seu nascimento. O adolescente poderá realizar um ato criminal específico a partir de uma referência contaminada, bastante antiga dentro de si e tem, nesta suposta identidade delinqüente, marcações históricas que falam de algumas gerações.

O sujeito, autor do delito, nem sempre sabe o que faz. O ato transgressivo, grave ou não, pode se realizar a despeito de um querer consciente. Mas isto não exime ninguém de uma responsabilidade. Há uma lógica processada da seguinte maneira: não é porque fiz isto ou aquilo que eu serei punido. Mas, ao contrário, para ser punido e castigado – o que é necessário, na medida em que me vejo sendo reconhecido e amado como uma criança má –, eu crio e realizo situações fora da lei. Eu necessito da sanção de uma lei que é puro enunciado, uma lei que não tem subjetividade, que não tem sentimentos, que não pensa e, portanto, não tem pena de mim, mas me penaliza. Uma lei que faz limite, que faz borda, e que me insere de alguma maneira no campo do Outro. O basta, não recebido na minha pequena infância, vou buscar lá fora. A necessidade de punição é anterior, funda o fato delituoso em si.

Há, no ser humano, um sentimento inconsciente de culpa. Este fato estrutural pode conduzir um sujeito a cometer delitos e transgressões das mais variadas proporções. Ninguém, em sã consciência, cometeria crimes hediondos se não fosse pelo viés de uma razão louca e paradoxal. O sujeito, perturbado, já está condenado, de antemão. A condenação que advém da justiça o alivia de uma angústia insuportável e transbordante. Trata-se de um movimento onde não há controle, por parte do sujeito, das pulsões agressivas, na medida em que estas não sofreram o crivo da lei, não puderam ser mediadas por uma lei que está na origem da estrutura familiar. Esta mesma angústia está presente nas vidas interrompidas tais como suicídio, uso e abusos de drogas, separações em série e desnecessárias, produção de doenças e, por aí vai. Angústia insuportável que leva cada um a agir de maneira específica, sem pensar.

De todo modo, não se trata de ser punido por que se cometeu tal crime, a recíproca é que é verdadeira. A necessidade de ser punido e de ser castigado leva o jovem a delinqüir. É necessário. Então, uma obediência judicial atrelada a esta ou aquela maioridade penal pode estar causando danos ao jovem que, por alguma razão, delinqüiu numa idade, por exemplo, de quinze anos. O psíquico funda o social, ou, como diz Lacan, o inconsciente é o social.

Não podemos pensar nenhum movimento da vida humana sem levarmos em conta uma presença efetiva do inconsciente. O inconsciente determina todos os passos da vida de um sujeito nas suas relações sociais. Normalmente atribui-se aos fatos delinqüentes tão somente causas sociais e econômicas. Mas, de toda maneira, os complexos da vida subjetiva determinam a colocação em ato da violência na ordem do dia. Dá o seu tom, o seu matiz. A incidência e a freqüência dos delitos dependem, logicamente, do sentido de uma impunidade que possa estar ou não presente numa sociedade. Pode ser que este fator auxilie, contribua numa razão causal. Pode ser.

A criança que não teve um olhar amoroso pode estar buscando outro tipo de olhar, um olhar de recriminação ou de escárnio. Traduz-se olhar amoroso como a virulência e o exercício de uma lei na pequena infância. São lógicas paradoxais que somente o humano apresenta. A carência do Outro, quer dizer, dos pais ou de algum substituto, pode levar uma criança a buscar ser reconhecida cometendo delitos. Este substituto, acreditem se quiserem, pode ser o padeiro da esquina, ou um professor, um irmão, um patrão. A incidência da lei que resulta da estrutura familiar leva a criança em desenvolvimento a suportar melhor tanto as desavenças quanto as diferenças com o outro. E isto a despeito das diferenças sociais. Ou seja, a criança vai aprender desde cedo a respeitar e a fazer bom uso da palavra. O respeito é base de um futuro mais promissor para uma criança, pois é indispensável à construção de seus ideais. Respeitando, ela se fará respeitar e, certamente, irá encontrar um lugar na vida civilizada. Respeito, nada mais que isto!

Diante do assassinato daquela criança nas ruas de uma cidade, ficamos perplexos, atônitos, sem saber se se tratava de um pesadelo ou de uma realidade. Muito além da indignação, experimentamos uma reação inominável, difícil de ser assimilada. O fato ocorrido tocou profundamente a criança que trazemos dentro de cada um de nós.

Certamente aquele gesto cruel deixará marcas indeléveis, incuráveis, ou será que logo o esqueceremos? Alguma coisa deverá ser construída a partir daí. Talvez funcione como convocatória para se insistir num trabalho. Sabemos que, de certo modo, estes acontecimentos violentos e extravagantes fazem parte da vida em sociedade, é algo incurável.

De todos os sentimentos diante desta cena hedionda, o horror veio em primeiro lugar. Dor, tristeza, vergonha, ódio, indignação, revolta, todos nós sentimos um pouco de tudo. No entanto, o horror deu a sua tônica. Pior, este foi acoplado, associado à indignação. Será que temos idéia do que é esta injunção? É a isto que denominamos de um ponto limite! Momento fértil para se pensar melhor a construção das famílias, o lugar destas na sociedade, criar meios de revitalização das instituições que dão os alicerces de uma nação, no caso, do povo brasileiro em sua dignidade.

O que levou aqueles jovens a cometer tamanha insanidade? Tratou-se de um crime horrendo que produziu uma rachadura identificatória em cada um dos cidadãos. O que estes jovens queriam mostrar, na montagem daquela cena grotesca, ao estraçalhar uma criança pelas ruas, zombando de tudo e de todos? A quem se dirigia tal espetáculo na medida em que nada é gratuito, nada vem do nada? O que foi dado a ver naquela cena? Ela escancarou a criança desamparada e dilacerada que habita a vida de cada um de nós, brasileiros? Em verdade, aquela criança que estava lá, sendo esquartejada publicamente, era a criança que está aqui, presente, na ordem do dia. O processo civilizatório não é linear. Ele é feito e é efeito de seres humanos.

Estes jovens desgraçados demonstraram, mesmo sem saber, que há uma criança carente de lei, carente de vínculos, carente de ideais, carente de diálogo com a vida, ou seja, carente de uma realidade que escreveria um compromisso de respeito com o próximo. Eles disseram com todas as letras que a criança necessita ser mais bem assistida na construção de laços sólidos e verdadeiros com a lei. Vínculos que serão as bases dos ideais de um futuro de convivência, mesmo com as dificuldades que enfrentamos em nosso dia-a-dia. Pois a vida é realmente difícil de ser vivida, não existe vida fácil para ninguém! É próprio do ser humano ser marcado por uma insuficiência fundamental que gera, inevitavelmente, um conflito dele com ele mesmo e com o outro.

As instituições brasileiras, representadas por suas autoridades, têm pela frente uma chance exemplar de não se fazerem enganar produzindo apenas remendos nos buracos que já produzem sérios atropelos nas estruturas sociais. O desastroso acontecimento criado por aqueles jovens novamente reacendeu a necessidade de se debater qual a forma mais realista e mais justa de lidar com o problema tão complexo que diz respeito às formas de interdição, às sanções penais contra os delitos praticados por menores e jovens adolescentes. A punição e o castigo não levam a nada, de nada adiantará se não houver um verdadeiro trabalho de implicação do sujeito do ato delinqüente. O que supõe a difícil tarefa de se criar as condições necessárias de um trabalho que possibilite uma subjetivação da falta, da culpa: ou seja, uma implicação de responsabilidade do sujeito, frente aos atos delinqüentes. O que fazer com as nossas crianças e nossos adolescentes que vivem sob o teto de uma miséria psíquica e social? Não é nada fácil. As leis existem, elas estão aí como um enunciado que deve ser obedecido. A lei é, em si mesma, uma regra que se inscreve como necessária, um enunciado que não pode faltar numa formulação social do processo civilizatório.

Temos, em nosso país, o ‘Estatuto da Criança e do Adolescente’ que é, acredito eu, o que há de melhor no que diz respeito a um trabalho sócio-educativo, que procura elaborar as condições de uma possível inclusão social. Trata-se, de todo modo, de uma estrutura das mais digna e justa que já se realizou até então em termos de cuidados de menores no âmbito de uma cidadania. Mas ele não é seguido, não é aplicado, não se realiza como estatuto de lei. Uma obra prima, que se mantém nos horizontes, funcionando como um totem, um tabu! O exercício deste Estatuto vai contra uma sintomática brasileira, na medida em que sua exigência de lei preconiza a implicação da sociedade brasileira enquanto tal. Ele pede por mudanças radicais, ele pede por outro olhar para as nossas crianças e adolescentes desamparadas, um olhar de responsabilidade, de cuidados, de tolerância construtiva. Ele pede, portanto, para que o cidadão brasileiro se implique juntamente com autoridades e se proponha a dar maior atenção à precariedade do sistema educacional de suas crianças e de seus adolescentes. Ou seja, ele exige de todos nós, brasileiros, um trabalho a longo prazo, de uma construção dos alicerces de uma cidadania sólida e estruturada.

Os conflitos têm uma função importante nas relações sociais democráticas, eles abrem perspectivas de diálogo no sentido de passar para outra coisa. Eles têm esta função de fazer com que as coisas andem, que novos argumentos possam emergir, que caminhe rumo à civilização. Este fato alucinante que escancarou um grave sintoma do exercício da ordem pública tem um lugar primordial nas relações humanas, no fato de se poder dizer, é isso aí! Agora, vamos retirar deste fato algum ensinamento. Daí é urgente a necessidade de fazer valer o rigor da lei. Simplesmente fazer funcionar a lei com o rigor que ela exige para ser cumprida. Quando as instituições funcionam dentro de um regime de seriedade, não é tão difícil dar força à lei. Dar força à lei não é castigar o sujeito que delinqüiu, mas, sim, fazê-lo caminhar numa vertente que tem como horizonte a responsabilidade. A balança e a espada da deusa Themis resumem o equilíbrio perfeito entre o justo e a sanção penal. A venda nos olhos revela o sonho de uma imparcialidade, buscado pelo Direito, como conjunto de normas que tem a finalidade de ordenar a vida em sociedade, regulamentando as relações de diversos matizes e impondo limites sobre o que seja ou não permitido com justiça. O conceito de justiça não é fácil de ser abraçado, não existe nenhuma sociedade que se mantenha numa harmonia social. Quando a justiça é alcançada promove um bem estar e paz social. Quando não é atingida gera insatisfação e ódio. Direito, lei e justiça. Não existe direito sem lei, mas o que o torna legítimo é o seu conteúdo ético que com justiça ordena e disciplina a vida dos sujeitos. Devemos insistir numa vida que não seja de todo ruim.

O que é problemático é que sempre somos acionados a partir de um ou de outro acontecimento grave. Não há, por parte dos governantes, uma ação que vise o sentido de uma possível antecipação. Não há necessidade de esperar que o circo pegue fogo. Sabemos, sim, sempre desta possibilidade! Podemos nos antecipar, uma vez que o ser humano tem a capacidade de pensar. Ele quase sempre aprende com os erros, acaba por retirar algum saber e ensinamentos dos fatos. A antecipação é saudável e introduz portas para o progresso. Tudo o que diz respeito ao ser humano é rápido e complexo demais. Não devemos, de toda maneira, ficar somente aprisionados no viés de uma punição. Podemos, sim, nos antecipar.

Temos a oportunidade de mobilizar um investimento maior na procura de possíveis causas para tamanha violência, das causas destes desencontros alarmantes. Quais as razões que realmente levam os jovens a se brutalizarem cada vez mais? Sabemos que a violência brota justo, ali, onde a palavra falta.

Talvez esteja chegando o momento fértil de reinvestir, incessantemente, nas bases de um ensino escolar producente. Revigorar aí o sentido e o exercício da lei na cultura, que se realizaria como um eterno movimento de trabalho com as crianças, com investimento de base na educação. Vale dizer, uma boa insistência para a construção de vínculos simbólicos claros e sólidos, pois educação é coisa em longo prazo. O vínculo é o alicerce dos ideais que sustentam uma vida em sua existência. Uma criança que faz vínculos com facilidade tem capacidade para pensar melhor. Quando uma criança pensa antes de agir não faz tantas loucuras, porque sabe das conseqüências. Quando existem laços simbólicos firmes, a criança cresce com uma autoconfiança maior para enfrentar a vida. Quando esses laços não têm chances de brotar no seio familiar, cabe ao poder público e às escolas tomar para si a incumbência de cuidar e orientar as crianças em situações de risco, retificando sua posição social frente à vida em sua relação com os semelhantes. Precisamos chegar antes do narcotráfico, já que o esteio vincular oferecido por este é da ordem do princípio do prazer, ou seja, seu poder de sedução é maior do que as ofertas educativas.

Temos que investir na vida escolar de uma criança sem esperar por respostas rápidas demais. A atualidade de nosso país exige que as crianças freqüentem escolas em tempo integral. A escola é nascedouro, fonte inesgotável e perene de uma construção de cidadania. Um forçamento, sim, do uso da palavra. A palavra podendo circular em tempo integral! O tempo está sempre mudando e, por isso mesmo, exige transformações nos modos de intervenção.

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Sabemos que uma família constituída a partir de um modelo tradicional não é garantia de filhos saudáveis. Mas os males certamente poderão ser menores, se assim podemos dizer, a probabilidade de filhos com distúrbios mais sérios, fundamentalmente no tocante à produção de delitos e atos de violência, é bem menor. O que se constata é que uma criança que não teve base familiar sólida e estruturada torna-se, de todo modo, muito mais vulnerável a vir freqüentar a maternidade de uma delinqüência. A gestação de fatores agressivos deve-se a uma falta de referências, de produção de vínculos simbólicos que nascem no seio da estrutura familiar. Quando faltam investimentos reais e efetivos dos pais, certamente os filhos sucumbirão aos desmandos de uma vida sem lei. Quando há um desejo verdadeiro dos pais na educação de seus filhos, a chance de que eles freqüentem zonas de perigo diminuem. Nunca teremos uma garantia plena. Muitas vezes conta-se com substitutos dos pais e os resultados são extremamente satisfatórios.

O ato de governabilidade competente deve privilegiar a transmissão de valores duráveis, de leis de sentido efetivamente educativo, e isto com a maior seriedade possível. Um agente de governo deve estar aplicado por inteiro nesta questão. Deve estar identificado como um verdadeiro passador destes valores de lei, no sentido de fazer uma série com os elos de estruturação de uma sociedade. Crianças e adolescentes captam os deslizes dos políticos e dos governantes em sua relação espúria com a coisa pública. Os jovens delinqüentes encontram aval das suas condutas nos desvios que alguns políticos vêm realizando. Os meios de comunicação estão em toda parte, em cada um de nós, plugados no mais íntimo de nossa alma. Parece que temos tido, em alguns momentos, políticas perecíveis!

Para que isto mude, necessitamos reconsiderar a posição atual da estrutura da família na sociedade brasileira. Os valores morais e éticos não têm encontrado lugar de inserção em sua solidez necessária nas bases das organizações sociais. O lugar da criança no seio das famílias se encontra cada vez mais desconectado de uma composição simbólica por onde passa uma saudável transmissão dos valores de uma vida com nossos semelhantes. Qual é o lugar que uma criança ocupa no desejo de seus pais? Vemos mudanças e mais mudanças nos cenários por onde transita a inserção da função do pai na família. A presença da lei é a consciência que se impõe nos passos de nossa vida.

São várias as situações a serem revistas pelas autoridades competentes. Temos, por exemplo, uma questão séria e difícil de resolver que se transformou num desconforto na atualidade de todos os países. Trata-se do fato de que muitas meninas e meninos púberes e adolescentes estão se fazendo engravidar, sintoma grave dos dias de hoje, quase sempre geradores de violências e transgressões. O tema de uma gravidez cedo demais, ou gravidez precoce, configura-se como um cenário que desafia a todos, sem exceção: pais, autoridades, instituições de ensino, meios de comunicação, e por aí vai. A gravidez precoce é um verdadeiro trauma na vida de uma jovem. Ela interrompe uma vida em seu esplendor sexual, em seus rumos futuros de escolhas e de aperfeiçoamentos profissionais; sem contar os riscos que se apresentam na vida da jovem e da criança. Ela, por si só, amputa uma vida frente ao esplendor dos desafios que se tem pela frente. Deste modo, poderíamos dizer que uma gravidez precoce configura-se como um problema maior de saúde pública. Há verdadeiras epidemias que se realizam através de identificações histéricas, de reproduções imaginárias, que se propagam de uma para outra. Trata-se do cúmulo de um agir sem pensar, de um suicídio da jovialidade, que segue mancando sob o véu de uma cultura por vezes cínica e canalha que não consegue encarar este câncer de frente. A garota, jovem ainda demais, se desencaminha em seu porvir erótico e acaba por ceder aos seus impulsos carnais e do outro – portanto, sem pensar, sem refletir, sem se cuidar, sem medir as consequências de seu ato –, se fazendo engravidar cedo demais, para depois arrepender-se e colocar a culpa no destino, na vida. Colocar filhos, simplesmente para a vida criar: governo, avós, rua. Na maioria das vezes, o outro protagonista é um jovem também, alguém imaturo que realmente não sabe o que está fazendo, que não recebeu uma orientação necessária sobre o bom exercício da sexualidade, que acaba por estabelecer um grave erro na vida de uma garota e na sua também.

Este ato, tão insano quanto inconsequente, pode vir a constituir uma possível escola para futuros delinquentes, visto haver aí uma quebra em relação à genealogia, que é a raiz da transmissão da função paterna. O exercício da lei deve estar presente até mesmo nos pequenos gestos da vida de uma criança ou de um adolescente. Como a relação dos jovens frente ao ato sexual, por exemplo.

A vida, cada vez mais difícil de ser vivida, deve estar aberta a mudanças e mais mudanças. Ela deve estar aberta aos novos argumentos, às novas composições familiares, que nem sempre estão conformes a esta ou aquela lei que se pauta numa foraclusão de questionamentos verdadeiros.

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Médico, Psiquiatra e Psicanalista. Especialização e Mestrado em Psiquiatria (UFRJ); Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Brasília, Rio de Janeiro e Vitória; Membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP); Editor-chefe da Companhia de Freud Editora
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