O poder verbal do “não farei” do carnaval de rua do Brasil: Bakhtin nas ondas da Primavera de Praga

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Orquestra Voadora - Foto Fernando Maia/Riotur

Interrompo brevemente meus artigos sobre gramática e filologia para tecer uma reflexão sobre o momento de carnaval que o Brasil acabou de passar.

Quero dizer que pode ser um equívoco imaginar que os foliões nas ruas não representem ameaça real ao status quo de um governo combalido.

Em seu capítulo “Ordem versus progresso”, no primeiro subitem, “A anarquia original”, Darcy Ribeiro, em “O povo brasileiro”, apoia-se sobre o caráter dialético, bem ao gosto de Hegel. O Antropólogo e Professor brasileiro põe em contraste (a interpretação é minha, responsabilizo-me por erros sobre ela) o que Althusser chamaria de Aparelho de Repressão do Estado e Aparelho Ideológico do Estado, em oposição à anarquia que Lévy-Strauss chamaria de “pensamento selvagem” dos “tristes trópicos”, em que um desejo instintivo de “caos-cosmo”, como diria Deleuze, instaura-se com fluidez: “Nesse campo de forças é que o Brasil se fez a si mesmo , tão oposto ao projeto lusitano e tão surpreendente para os próprios brasileiros” — aponta o fundador da UERJ e do Sambódromo, imortal Darcy Ribeiro, para ilustrar o quanto digo.

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Lembremos que, entre as revoluções de 1989, que anteciparam a derrocada definitiva da farsa soviética, em dezembro de 1991, talvez a mais importante seja a da antiga Checoslováquia, conduzida por Václav Havel, um escritor de portentosa pena — e este fato não é fortuito: era escritor também o primeiro presidente de Angola livre do jugo lusitano no neocolonialismo, Agostinho Neto.

Trata-se, voltando à Checoslováquia, da famosa “Revolução de veludo”, ou “Revolução gentil”, em que se depuseram os governos da atual República Checa e da Eslováquia com todo o povo nas ruas, mas sem nenhum gesto hostil — se bem que seja emblemático o caso do jovem Jan Palach, no pós-1968, que se imolou em praça pública, ateando fogo contra seu próprio corpo e vindo a falecer em protesto contra o regime comunista que assolava o país, tornando miserável e escrava mais de 98% da população.

Como deixei registrado neste mesmo jornal, o “Diário do Rio de Janeiro”, no meu artigo “Língua e identidade nacional”, um dos fatores em que checos e eslovacos, pacificamente, apoiaram-se para argumentar a favor da separação era a circunstância de falarem idiomas distintos.

A “primavera” de Praga, como outras “primaveras” (lembremos a árabe etc.), traz-nos à lembrança o fato de que se podem derrubar governos com atos destituídos de animosidade e, nos casos checo e eslovaco, até festivos. Em que pese, repito, à necessidade de gatilho radical pelas mãos do jovem Jan Palach.

Os movimentos iniciados em 1968, contra Stálin, que redundariam nas “Revoluções de veludo e/ou gentil”, afinal, basearam-se na célebre obra folclórica “O valente soldado Chveik”, em que o soldado do título usava de artimanhas travessas para desconcertar a truculência dos opressores. Essas artimanhas, com efeito, apareceram nas telas dos cinemas no premiado filme “A vida é bela”, em que um pai, comportando-se de modo momesco, convence o filho de que um campo de concentração é apenas um grande jogo divertido.

Prática, aliás, muito semelhante à “Revolução dos cravos”, em Portugal, 1974. Aqui, a única “herança” desejada, por parte de África, dos colonizadores, Portugal, foi, como sabemos, a língua portuguesa, porque os africanos se deram conta de que a política linguística unificadora permitia que a intercomunicação ocorresse e, com isso, a troca de ideias rebeldes contra os opressores fluísse. “A escola e a prisão”, como sabemos desde Patrick Chabal, eram os redutos onde os filhos de África se comunicavam para chegarem à conclusão de que a única memória imaterial que lhes servia de Portugal era a língua portuguesa.

Com isso, concluímos a possibilidade de que a ocupação festiva do carnaval traga consigo uma assustadora demonstração aos governantes de que “Não sei, não conheço, não direi, não tenho, não sei fazer, não darei, não posso, não irei, não ensinarei, não farei!” – mote e motim tão brilhantemente registrados em “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera, a respeito da deflagração do fim das opressões comunistas que as Repúblicas Checa e Eslovaca legaram ao mundo.

No carnaval, que Bakhtin estudava tão a fundo, reconhecendo-lhe as raízes da comunicação polifônica maior, há, de fato, uma só língua, um só desejo: liberdade. E, creiam, esse desejo estampado e explícito é assustador a governos depauperados, porque estes sabem que tantos na mesma situação “insustentável” foram derrubados com a “insustentável leveza” do “não farei”. Numa língua sem dialetos, nem pidgins – a “polilíngua” radicalmente polifônica.

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PhD em Língua Portuguesa pela UERJ. É professor adjunto de língua portuguesa e filologia românica da UERJ e author and content developer da California State University. Tradutor de inglês, francês, alemão, espanhol, italiano, latim e grego, pesquisador das filologias russa e mandarim. Escritor com mais de 40 livros publicados e premiados no Brasil e no mundo. Membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia, do PEN Club Rio-Londres, da Académie des Arts, Sciences et Lettres de Paris e da Academía de Letras y Artes de Chile. Em 2011, recebeu a Comenda e a Médaille de Vermeil do Governo francês.
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