No dia 5 de maio, celebra-se algo que vai além de gramáticas, acentos ou regras sintáticas. Celebra-se uma alma. Um som que atravessa oceanos.
Um idioma que embala berços em Luanda (Angola), canta amores em Lisboa (Portugal), ensina números em Maputo (Moçambique), discute política em Brasília (Brasil), narra contos em Bissau (Guiné-Bissau), embala batuques em São Tomé (São Tomé e Príncipe), sussurra saudade em Díli (Timor-Leste), ecoa nas montanhas de Malabo (Guiné Equatorial) e ressoa nas ilhas de Praia (Cabo Verde).
5 de maio é o Dia Mundial da Língua Portuguesa, reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) desde 2019, o primeiro idioma do planeta a ter uma data oficial consagrada pela organização para celebrar sua história, cultura e papel civilizacional.
A língua portuguesa é uma das mais disseminadas do globo. É o idioma oficial de nove países: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, além de ser uma das línguas oficiais da Região Administrativa Especial de Macau, na China. Está presente nas Américas, África, Europa e Ásia. Mas está, sobretudo, entranhada no peito e na memória de seus falantes — de origem ou de escolha — que a moldam diariamente em canções, romances, ditados populares, piadas, poesias e orações.
A posição da língua portuguesa no ranking mundial varia conforme os critérios utilizados:
Como língua materna, o português é frequentemente listado como a quinta língua mais falada no mundo, com cerca de 260 a 293 milhões de falantes nativos, atrás do mandarim, espanhol, inglês e hindi.
Considerando o número total de falantes (nativos e não nativos), algumas fontes posicionam o português como a quarta língua mais falada, superando o hindi em número total de usuários.
Independentemente da posição exata, o português é a língua mais falada no Hemisfério Sul e possui uma presença significativa na internet, sendo uma das cinco línguas mais utilizadas online.
Foi o português que serviu como o idioma da primeira globalização moderna, sendo a língua de navegadores, missionários, comerciantes e sonhadores. Carregou especiarias, palavras, crenças e lágrimas. Marcou e foi marcado. Incorporou vocábulos africanos, ameríndios, árabes, asiáticos — e, como escreve Olavo Bilac, tornou-se “última flor do Lácio, inculta e bela”.
A decisão de criar o Dia Mundial da Língua Portuguesa nasceu no seio da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 2009, e foi endossada pela UNESCO em 2019. A proposta é mais do que institucional: trata-se de celebrar a língua como instrumento de união, como símbolo de um legado civilizacional, como elo entre diferentes culturas que compartilham raízes, dores e sonhos. Como uma pátria sem fronteiras.
Flor do Lácio, expressão eternizada por Bilac no soneto dedicado à língua, inspira também o título deste artigo. O verso homenageia o latim vulgar — o latim do povo, do qual o português nasceu. Mas a mesma “flor do Lácio” floresce também em canções, como a celebrada “Língua”, de Caetano Veloso, que, com sua verve tropicalista transformou o idioma em samba, crítica, filosofia e celebração:
“Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões / Gosto de ser e de estar (…)”
“Minha pátria é minha língua / Fala Mangueira! Fala!”
“Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó / O que quer / O que pode esta língua?”
Celebrar a língua portuguesa é reconhecer sua capacidade de transformar mundos, de unir distâncias, de manter viva a chama da memória e da criação.
Abaixo, reúno 54 nomes essenciais da literatura em língua portuguesa — vozes que fizeram da língua um espelho da vida, da luta, do amor e da imaginação. Vale destacar que, entre todos esses nomes, apenas um autor recebeu até hoje o Prêmio Nobel de Literatura: o português José Saramago, em 1998.
Autores da Lusofonia: 54 vozes que moldam a língua portuguesa
- 1. Pepetela (Angola) – Vencedor do Prêmio Camões (1997). Sua obra Mayombe é um marco da literatura africana pós-colonial.
- 2. Ondjaki (Angola) – Premiado internacionalmente, mistura realismo mágico com crítica social em obras como Os Transparentes.
- 3. Ruy Duarte de Carvalho (Angola) – Escritor, antropólogo e cineasta angolano.
- 4. Luandino Vieira (Angola) – Nascido em Portugal, radicado em Angola, conhecido por sua literatura sobre a luta anticolonial. Vencedor do Prêmio Camões (2006).
- 5. José Eduardo Agualusa (Angola) – Escritor e jornalista angolano, autor de obras como O Vendedor de Passados.
- 6. Manuel Rui (Angola) – Escritor e advogado angolano, conhecido por Quem Me Dera Ser Onda.
- 7. Boaventura Cardoso (Angola) – Escritor e político angolano.
- 8. Agostinho Neto (Angola) – Poeta e primeiro presidente de Angola (1975–1979). Sua obra Sagrada Esperança é um marco da literatura de resistência.
- 9. Jofre Rocha (Angola) – Poeta da geração da independência, ligado à construção de uma identidade nacional literária.
- 10. Clarice Lispector (Brasil) – Nascida na Ucrânia (então Império Russo), naturalizada brasileira. Sua obra A Hora da Estrela foi traduzida para mais de 30 idiomas.
- 11. Conceição Evaristo (Brasil) – Autora fundamental do feminismo negro brasileiro; Ponciá Vicêncio é um clássico contemporâneo.
- 12. Carlos Drummond de Andrade (Brasil) – Seu poema No Meio do Caminho é um dos mais conhecidos da língua portuguesa.
- 13. Machado de Assis (Brasil) – Considerado um dos maiores escritores brasileiros. Fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras (1897), autor de obras como Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas.
- 14. Carolina Maria de Jesus (Brasil) – Escritora e poetisa, autora de Quarto de Despejo.
- 15. Rubem Braga (Brasil) – Jornalista e cronista brasileiro.
- 16. Cecília Meireles (Brasil) – Poetisa e educadora brasileira.
- 17. Mário de Andrade (Brasil) – Escritor e musicólogo, figura central do modernismo brasileiro.
- 18. Sérgio Buarque de Holanda (Brasil) – Historiador e escritor, autor de Raízes do Brasil.
- 19. Augusto de Campos (Brasil) – Poeta concretista e tradutor brasileiro.
- 20. Graciliano Ramos (Brasil) – Vidas Secas (1938) é parte do ciclo do Nordeste e foi adaptado ao cinema em 1963.
- 21. Lima Barreto (Brasil) – Morreu em 1922, mas sua obra antecipou questões raciais e sociais do século XX.
- 22. Lygia Fagundes Telles (Brasil) – Autora de As Meninas, primeira mulher brasileira indicada ao Nobel de Literatura.
- 23. Jorge Amado (Brasil) – Um dos escritores brasileiros mais traduzidos no mundo. Sua obra retrata com realismo e lirismo o povo da Bahia, como em Gabriela, Cravo e Canela e Capitães da Areia. Militante comunista, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1961.
- 24. Adélia Prado (Brasil) – Poetisa e prosadora mineira que une o sagrado ao cotidiano, com linguagem coloquial e filosófica. Sua estreia com Bagagem (1976) foi saudada por Carlos Drummond de Andrade como uma revelação da poesia brasileira.
- 25. Fernando Pessoa (Portugal) – Criou mais de 70 heterônimos (como Álvaro de Campos e Ricardo Reis). Publicou amplamente em periódicos, mas Mensagem (1934) foi seu único livro em português publicado em vida.
- 26. José Saramago (Portugal) – Único Nobel de Literatura em língua portuguesa (1998). Seu estilo sem pontuação tradicional é icônico.
- 27. Lídia Jorge (Portugal) – Escritora contemporânea portuguesa.
- 28. António Lobo Antunes (Portugal) – Médico e escritor, conhecido por suas obras densas e labirínticas.
- 29. Gonçalo M. Tavares (Portugal) – Escritor contemporâneo, autor de Jerusalém e O Bairro.
- 30. Valter Hugo Mãe (Portugal) – Escritor e poeta português, conhecido por sua linguagem inventiva.
- 31. Maria Teresa Horta (Portugal) – Poetisa e feminista portuguesa, autora de As Mulheres do Meu País.
- 32. Almeida Garrett (Portugal) – Romântico do século XIX, introdutor do teatro moderno português.
- 33. Eça de Queirós (Portugal) – Romancista realista, autor de Os Maias e O Primo Basílio.
- 34. Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal) – Poetisa celebrada, autora de Mar Novo (1958), clássico da poesia moderna.
- 35. Vergílio Ferreira (Portugal) – Escreveu Aparição, obra existencialista de grande impacto.
- 36. José Cardoso Pires (Portugal) – Romancista e contista, autor de O Delfim, referência na literatura portuguesa do século XX.
- 37. Luís de Camões (Portugal) – Autor de Os Lusíadas (1572), epopeia que exalta os feitos portugueses durante as grandes navegações. É considerado o maior poeta da língua portuguesa e um dos maiores da literatura ocidental.
- 38. Mia Couto (Moçambique) – Biólogo e escritor moçambicano com atuação também em Angola. Terra Sonâmbula (1992) foi eleito um dos 12 melhores livros africanos do século XX.
- 39. Paulina Chiziane (Moçambique) – Primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, Balada de Amor ao Vento (1990).
- 40. José Craveirinha (Moçambique) – Considerado o maior poeta moçambicano, com poesia de forte cunho anticolonial.
- 41. Ungulani Ba Ka Khosa (Moçambique) – Escritor e historiador moçambicano, autor de Ualalapi.
- 42. Noémia de Sousa (Moçambique) – Conhecida como a “mãe da literatura moçambicana”. Seu poema Sangue Negro (1951) é um símbolo da resistência anticolonial.
- 43. Germano Almeida (Cabo Verde) – O Testamento do Sr. Napumoceno (1991) satiriza a elite cabo-verdiana pós-independência.
- 44. Corsino Fortes (Cabo Verde) – Sua poesia reflete a identidade cabo-verdiana, como em A Cabeça Calva de Deus.
- 45. Orlanda Amarílis (Cabo Verde) – Escritora cabo-verdiana conhecida por suas histórias curtas.
- 46. Abdulai Sila (Guiné-Bissau) – Um dos poucos romancistas do país; A Última Tragédia aborda a guerra civil.
- 47. Filinto de Barros (Guiné-Bissau) – Poeta e escritor guineense, voz importante do período de independência.
- 48. Conceição Lima (São Tomé e Príncipe) – Poetisa da diáspora, escreve sobre exílio e identidade, como em O País de Akendenguê.
- 49. Olinda Beja (São Tomé e Príncipe) – Poetisa e escritora são-tomense com obras voltadas à infância, afetos e memória.
- 50. Luís Cardoso (Timor-Leste) – Autor de O Ano em que Pigafetta Completou a Circumnavegação, mistura história timorense e ficção.
- 51. Fernanda Borges (Timor-Leste) – Poetisa contemporânea, com foco na reconstrução cultural e política do Timor.
- 52. Xanana Gusmão (Timor-Leste) – Político, poeta e autor de textos sobre resistência e identidade nacional.
- 53. Fátima Langford (Timor-Leste) – Poetisa timorense contemporânea.
- 54. Juan Tomás Ávila Laurel (Guiné Equatorial) – Escreve principalmente em espanhol, mas também em português; By Night the Mountain Burns foi finalista do Independent Foreign Fiction Prize.
Ah, e antes que alguma leitora ou algum leitor me critique pela ausência de alguma escritora ou escritor de língua portuguesa importante que não conste na lista acima, reconheço desde já que isso pode ter ocorrido — ao fazer e refazer minha pesquisa para preparar este artigo, a cada revisão eu percebia que faltava um nome essencial e o incluía. Como sou humano, e, portanto, falível, é possível que ainda falte alguém importante. Por isso, peço desde já minhas desculpas antecipadas.
A frase dita por Caetano Veloso — “a língua é minha pátria. E eu não tenho pátria: tenho mátria. E quero frátria” — ganha ainda mais sentido após esse desfile de vozes. Nela, retoma-se o pensamento de Fernando Pessoa, que declarou que sua pátria era a língua portuguesa. Caetano vai além: recusa o modelo tradicional e patriarcal de “pátria”, preferindo “mátria”, figura materna, acolhedora e afetiva. E expressa um desejo de “frátria”, uma irmandade universal unida pela fala, pelo afeto e pelo entendimento. É um chamado por uma comunidade que se conecta pela palavra e pelo sentimento.
Veja no sítio abaixo Caetano Veloso cantando a música “Língua”:
Num mundo fragmentado por ruídos e algoritmos, que a língua portuguesa continue sendo esse laço forte, feito de sons, silêncios, encantamentos e resistência.
E que nunca nos falte a poesia das palavras, nem a coragem de usá-las. Porque quem fala junto, sonha junto. E quem sonha junto, constrói um mundo mais inteiro.
Que vivam as palavras. Que viva a língua portuguesa. E que, como canta Caetano, “minha pátria é minha língua” — e nessa pátria, todos cabem.
O português é o idioma da partida e do regresso. Carrega em si a dor da colonização e o orgulho da criação. É o idioma que sabe chorar, sabe rir, sabe silenciar, sabe gritar. É o idioma do berço e também da fronteira.
Que, no dia 5 de maio, cada falante — seja ele poeta, estudante, lavrador, professora, criança, rapper, diplomata — se reconheça como parte de algo maior: o povo que fala com o mundo através de uma língua que, mais do que falada, é sentida.
No dia 5 de maio, quando celebramos a língua portuguesa, não se lembram apenas as palavras, mas quem somos através delas. A língua que foi o rio, foi a ponte, foi o mar — revolta e calmaria. Que foi imposição e também resistência. Que hoje é canoa e bússola.
O português também é ferramenta de diálogo entre as nações, veículo da diversidade cultural e guardião da literatura de Camões. Celebrá-lo é também promover livros, canções, filmes, saraus, rodas de conversa. É permitir que a palavra ganhe corpo — e o corpo, emoção.
“As línguas são imperfeitas para que os poemas existam“
Adélia Prado