Se você está me lendo neste quase finado 2024, imagina que irei falar sobre a menininha carioca que popularizou o bordão “Que Xou da Xuxa é esse?” E será isso mesmo. Agora, se está me lendo 40, 50, 60 anos depois (vejam como sou otimista nessa perspectiva), lá pelo ano 2074 e adjacências, é porque se interessa por história e pelas crônicas antigas, essas fotografias amareladas da sociedade. Se esse for o caso, peço que recorra ao YouTube — ou outra plataforma existente na sua época — e digite o trecho entre aspas acima. Assim, você poderá se ambientar no assunto a ser tratado aqui.
O nome da menininha, hoje com 47 anos, é Patrícia Veloso. Em 1988, aos nove anos, ela e uma multidão de aficionados se aglomeravam às portas do extinto Teatro Fênix, no Rio de Janeiro, para participar da gravação ao vivo do programa Xou da Xuxa. Patrícia — e muita gente — não conseguiu entrar. Num vídeo, que se espalhou feito rastilho de pólvora, aparece a mocinha sendo entrevistada e manifestando sua revolta por ter chegado muito cedo e mesmo assim não ter conseguido ver de perto a sua rainha Xuxa Meneghel.
“Eu cheguei aqui 3 horas da madrugada. Isso não pode acontecer. Deixaram o moço entrar e as crianças ficaram. Que Xou da Xuxa é esse? Que Xou da Xuxa é esse?” Transcrevi ipsis litteris para que percebamos a potência e a genialidade desse discurso — especialmente por vir de uma criança de 9 anos — e também para que possamos analisá-lo do ponto de vista morfológico, semântico e atitudinal. Um primor. Antes, porém, quero chamar a atenção para a estratégia, igualmente genial, usada pela garota para conseguir ter voz entre tantos outros baixinhos que se acotovelavam na frente da câmera, doidos pra aparecer na TV.
Patrícia estava indignada, mas não poderia deixar transparecer. Pelo contrário, deveria vender a imagem da inocência, da boa-fé. Assim, quando a televisão se aproxima, ela busca cativar o repórter fazendo uma carinha meiga, dirigindo-lhe um olhar súplice e uma frase polida “por favor, moço, me entrevista”. Enfim, ela desfere o golpe mortal: o beijinho soprado. A tática dessa Churchill de São João de Meriti foi perfeita. O jornalista, convencido das puras intenções da menina, oferece-lhe o microfone, que ela agarra com força e logo dispara o petardo que a tornaria célebre 36 anos mais tarde.
Nossa heroína sabia que teria pouco tempo de fala. Por isso, dispensa todo tipo de preâmbulo e parte pra ação direta. É notável como o ritmo, o encadeamento das ideias, a evolução do enunciado, cada palavra, cada frase, tudo está perfeitamente colocado. Reparem que ela usa “madrugada” ao invés de “manhã”. Isso a permite explorar a sílaba tônica “ga”, obtendo sonoridade e decisão. O “hã”, de manhã, soaria chocho e vacilante. Na segunda frase, ela crava enfaticamente “Isso não pode acontecer”. Na terceira, ela traz o fato e evoca o contraditório: como se admitir que, num show para crianças, um adulto entre e as crianças fiquem de fora? E na última, o grand finale, o corolário que metaforicamente põe em xeque toda a sociedade e suas injustiças: que Xou da Xuxa é esse?? Admirável!
Alguns anos após esse acontecido, o Teatro Fênix — que provavelmente tinha esse nome por ter ressurgido no Jardim Botânico após sua demolição no Centro — veio abaixo, virou um prédio de apartamentos. Diferentemente dos gatos, os teatros têm poucas vidas. Aquele dia de 1988 foi especial porque houve show dos dois lados. Explico: do lado de dentro, o show da musa pop infantil, que descia numa nave cintilante, cantava e dançava, com seu séquito de ninfetas loiras. Do lado de fora, no teatro dos excluídos, o show de estratégia e atitude de uma garotinha do povo, morena, impetuosa e brasileira.
Tudo me remete a várias lembranças positivas. Vou uma viagem repleta de boas memórias.
Ótima capacidade para entretecer fatos e ideias, forjando um texto inteligente e com humor!
Maravilhosa descrição de um fato simples com grande simbolismo vindo de uma criança com revolta de “adulto”. Uma mistura de humor e drama.