Pela primeira vez no teatro, “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” perpassa obras, falas, o pensamento e a trajetória do líder indígena Ailton Krenak, imortalizado pelo seu protesto na Constituinte de 1987. Após meses de processo colaborativo, a dramaturgia de João Bernardo Caldeira e de Yumo Apurinã, diretor artístico e protagonista do espetáculo, investiga as raízes da colonização que, como aponta Krenak, segue em curso, produzindo extermínio, etnocídio, devastação ambiental, expropriação de terras e tragédia climática, por meio de tiro, fogo, bíblia, soja, boi, estrada e cimento. A peça estreia no centro cultural Futuros – Arte e Tecnologia, no Flamengo, com temporada de quinta a domingo, sempre às 20h, até dia 22 de dezembro.
Para tratar desse Brasil que ignorou os direitos dos povos originários até a Constituição de 1988, o espetáculo enfoca a trajetória de vida de Yumo Apurinã, há seis anos radicado no Rio de Janeiro. Um indígena do povo Apurinã, nascido na Aldeia Mawanaty, no território Cinta Larga, em Rondônia, conhece o teatro ao frequentar a Igreja e decide ser ator. Em conflito com as ideias de pecado e de expulsão do paraíso, que separa humanidade e natureza, ele confronta o cristianismo em busca de sua ancestralidade, solapada pelos processos coloniais.
“Eu não sei a minha língua”, constata, atônito. Sob memórias de massacre, desmatamento e evangelização, a pergunta fundamental do best-seller de Krenak é então colocada: “Somos mesmo uma humanidade?”
Ao investigar os costumes e o passado de seu povo, o Demiurgo Tsurá, o ritual Xingané, o poder de cura dos Kusanaty (pajés), esse indígena vasculha a si mesmo, enquanto desvela o etnocídio, a expropriação de terras e o sistemático aniquilamento do povo indígena e de seus direitos, inclusive em todas as constituições até a de 1988.
Em cena, esse corpo racializado pela sociedade, que lhe imputa a pecha de “índio”, vasculha os estereótipos, enquadramentos e racismos vivenciados inclusive em sua carreira como ator. É na escola que Yumo descobre que quem descobriu o Brasil foi Pedro Álvares Cabral e escuta dos colegas: “Você é índio de verdade? Você come carne de macaco?”. Com frequência, suas personagens usam roupas rasgadas, não possuem família, usam cocar ou têm os pés descalços.
“Sou fruto de histórias de sobrevivência. Nasci e cresci num mundo já cristão. A minha referência de força espiritual é estar ajoelhado, abrir mão dos meus desejos e renunciar a minha vida. Quando me dei conta disso, foi assustador. Eu não sou contemplado por esse pacote de vivência dolorida que a bíblia oferece”, afirma Yumo. “Prefiro acreditar no encantamento desta vida do que numa vida eterna no paraíso ou no inferno”.
“Durante o processo de ensaios, Yumo decidiu que, a partir das palavras de Krenak, ele precisava contar a sua história e compartilhar conosco a sua própria busca”, conta João Bernardo, diretor, idealizador, produtor e autor do texto do espetáculo, ao lado de Yumo. Ao constelar as trajetórias de Yumo e Krenak, “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo” nos descortina os procedimentos visíveis ou menos evidentes da sistemática violentação sofrida pelas populações indígenas ainda hoje. “A colonização ainda está acontecendo”, diz. “O racismo, o sexismo, a expropriação de terras e a monocultura ainda formam os pilares da sustentação socioeconômica deste país”.
Neste contexto desolador, o ator-personagem, num trabalho de atuação voltado para as ações psicofísicas, partilha com o espectador sua caça a si mesmo. Será que adiar o fim do mundo é adiar o seu próprio fim? De onde podemos encontrar os nossos paraquedas coloridos e evitar a queda do céu, ideias imprescindíveis das culturas originárias? Como nos mobilizar e nos envolvermos diante de cenários distópicos e aterrorizantes?
“Quando escuto Krenak, sei que estou ouvindo muitas outras vozes de sábios e parentes. Ailton é um porta-voz que representa mais de 300 etnias, como disse em seu discurso de posse na ABL (Academia Brasileira de Letras). Quando eu me apresento num palco, minha mãe, meu pai e meus antepassados estão ali, nunca estamos sozinhos. Se minha memória está viva, a deles também”, reflete Yumo. “A intenção deste espetáculo é buscar um caminho consciente de transformação interior. Enquanto o teatro puder me fazer existir, é com ele que vou continuar sonhando e suspendendo o meu céu. O teatro é sagrado. Viver é sagrado”, completa o ator.
O diretor endossa a fala de Yumo e complementa: “Quem sabe, neste momento em que as tragédias ambientais ficam cada vez mais escandalosas, possamos ampliar a nossa escuta para outras formas de envolvimento com a terra e os povos da floresta. O teatro pode ser mais um dispositivo a convocar saberes que foram adormecidos, de comunhão, luta, partilha e festa”.
“Antes de escutar e encarnar o que um sonhador de mundos que Ailton Krenak é, eu tive que sonhar. É necessário encarnar o sonho. Eu acredito que encarnei, por isso que escutei. Muita gente não sabe escutar. Porque a cidade é barulhenta. Quando dormimos, vamos dormir com o barulho da cidade e do trabalho. O encanto é preciso. A poesia da vida é precisa. Se não, a morte nos encontra. E ela pode nos encontrar morto ou vivo. Quando a morte chegar até mim, que ela me encontre vivo”, finaliza Yumo.
“Por meio da cultura e suas diversas linguagens, o Futuros – Arte e Tecnologia busca engajar o público em reflexões conectadas com o nosso tempo. Iniciamos o ano de 2024 com uma exposição multilinguagem feita por artistas amazônidas inspirados no termo cunhado por Ailton Krenak: ‘Casa Comum’. A partir do dia 28, vamos concluir nossa programação com este novo espetáculo que também aborda as valiosas percepções do autor, ampliando o diálogo sobre o colapso ambiental e a nossa relação com o planeta”, ressalta Victor D’Almeida, gerente de cultura do instituto Oi Futuro.
Fundado pela Oi, sua principal mantenedora, e com gestão do Oi Futuro, em 2024 o Futuros – Arte e Tecnologia conta com patrocínio de BNY e EY, com apoio do Governo Federal através da Lei Federal de Incentivo à Cultura. Por meio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura do Rio de Janeiro – Lei do ISS, o projeto Vem, Futuro! Ano 2 é realizado pela Zucca Produções, em parceria com o Oi Futuro, no centro cultural, com patrocínio da Serede, Oi, Tahto e Prefeitura do Rio de Janeiro/SMC, oferecendo programação cultural, ações educativas e abrangendo infraestrutura de apoio nas galerias, no teatro e no Musehum.
Sinopse:
Num planeta em crise, um indígena nascido numa aldeia, em Rondônia, investiga as raízes de seu povo apagadas pela colonização. Inspirado nas obras de Ailton Krenak.