Na barca para Paquetá, o vendedor grita pelos corredores que um é dois e três é cinco, convidando o passageiro a aproveitar dos crocantes amendoins a preços que subvertem a lógica matemática. Uma família cede à oferta e repassa um saquinho da guloseima a cada uma das crianças, forçadas a desgrudar o olhar da tela onde assistem a um filme.
Uma mulher segue aflita pelos corredores: “alguém viu o Batman?”. “Oi?”. “Meu filho, fantasiado de Batman, não sei onde está, vocês viram?”. Ninguém viu.
No pequeno convés, alguns viajantes fotografam a Baía de Guanabara e aguardam com ansiedade a passagem sob a ponte Rio-Niterói, ainda mais impressionante vista de baixo. Outros estão entretidos trocando acenos e saudações com a dupla de pescadores indômitos metida em um diminuto bote a remo, que quase atravessou nosso caminho.
Alheios ao que ocorre fora do barco, dois amigos discutem sobre Os Caçadores da Arca Perdida. Enquanto um elogia a produção, o outro detona o universo de Indiana Jones: “É horrível. Só tem cabeças explodindo e corpos derretendo. E a mulher, o que ela faz? Troca de roupa o tempo todo, nada mais. Uma droga. Pra mim, cinema é Deus e o Diabo na Terra do Sol”. O colega tenta argumentar que gostar de Glauber não o impede de apreciar Spielberg, mas não tem tempo de desenvolver, pois o papo é interrompido por mais um vendedor, oferecendo água, recusada. Biscoito, recusado. Cerveja, recusada. Sacolé, recusado. Bala de menta, aceita, mas devolvida, o comerciante não trocava cinquenta.
Um homem segue aflito pelos corredores: “você não viu por acaso um menino fantasiado de…”. “Batman? Não!”, completa uma senhora de vestido e chapéu de onça, antes dele ter tempo de terminar a frase.
Retorno ao meu assento e acompanho o debate político do grupo sentado à minha frente. O de boné lamenta particularmente a situação do Rio de Janeiro: “mermão, tá tudo arrombado por aqui”. A moça concorda: “tudo arrombado”. E o terceiro, grisalho, corrobora, ainda mais pessimista: “tudo arrombadaço, tá sinistro, maluco”. Todos assentem com a cabeça.
Vestido de Luiz Gonzaga, um sanfoneiro abre caminho no meio das pessoas tocando A Vida do Viajante (“minha vida é andar por esse país, pra ver se um dia descanso feliz”), para alegria minha e de outros presentes. Tento fazer a voz do Gonzaguinha, mas o cantor desce a escada e leva com ele a música rumo ao primeiro piso da embarcação, justo na hora em que eu me preparava para brilhar acompanhando no “heiê, haiê, haiê, hê, hê, haiê”.
A barca chega a Paquetá, que está em festa, como sempre me parece estar cada vez que visito essa pequena ilha sem carros e cercada de natureza. O pai do pequeno Batman desce na frente, puxando a fila e a orelha esquerda do mini super herói finalmente encontrado, pois a direita já está ocupada pela bronca da mãe. Os demais saem depois, vendedores ambulantes, fotógrafos amadores, famílias passeadoras, críticos de cinema, analistas políticos, músicos diletantes, todos esses personagens que colorem a travessia da Baía de Guanabara.