A intensa relação da cidade do Rio de Janeiro com o carnaval

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O carnaval é uma data que norteia o presente e o futuro dos cariocas. É comum se pensar viagens e outros planos para depois da festa popular. “Quando o carnaval acabar começo a dieta e arrumo uma namorada”. No entanto, pouco se fala sobre a constante presença desta festa no passado em alguns dos fatos históricos mais marcantes da Cidade Maravilhosa.

No ano de 1840, a alta sociedade carioca começou a realizar bailes de carnaval no Rio de Janeiro. Inspirados nas festas que aconteciam na Europa, os encontros eram regados a muita bebida, comida e ritmos tipicamente europeus, como a valsa e a quadrilha. Enquanto isso, nas ruas da cidade, milhares de foliões brincavam o entrudo – festa portuguesa em que pessoas fantasiadas dançam e jogam limões de cheiro, farinha ou água uns nos outros. Nesse período, a família real estava no Rio há 32 anos e a desigualdade social, a escravidão e outras mazelas ainda eram extremamente presentes na cidade. O carnaval começava a tentar reverter essa opressora realidade, pois muitos nobres iam para a rua festejar com o povo.

Os primeiros registros de blocos carnavalescos licenciados pela polícia no Rio de Janeiro datam o ano de 1889. Os blocos eram: Grupo Carnavalesco São Cristóvão, Bumba meu Boi, Estrela da Mocidade, Corações de Ouro, Recreio dos Inocentes, Um Grupo de Máscaras, Novo Clube Terpsícoro, Guarani, Piratas do Amor, Bondengó, Zé Pereira, Lanceiros, Guaranis da Cidade Nova, Prazer da Providência, Teimosos do Catete, Prazer do Livramento, Filhos de Satã e Crianças de Família. Isso se deu um ano após a abolição da escravatura. Muitos historiadores apontam os blocos de rua como um sinal de liberdade. Nesse caso, tudo foi bastante simbólico, porque os negros recém-libertos foram às ruas para festejar com as pessoas que compunham esses eventos pela cidade do Rio de Janeiro.

“É necessário lembrar que o carnaval, para uma parte dos cariocas, sempre teve a dimensão de ser um tempo de subversão da cidadania roubada. Inventamos na rua a cidade negada nos gabinetes poderosos, sobretudo no contexto de transição entre o trabalho escravo e o trabalho livre, nos últimos anos da monarquia e nos primeiros da república, quando a festa ganhou contornos populares mais contundentes e uma parte significativa dela passou a ser um canal de expressão de descendentes de escravos. A partir daí a festa confunde-se com a própria história da cidade, como é até os dias atuais. Entrudos, corsos, batalhas de confetes e flores, blocos de arenga, rodas de pernada, ranchos, cordões, grandes sociedades, bailes de mascarados, escolas de samba, onças do Catumbi e caciques de Ramos, simpatias e suvacos balzaquianos, bate-bolas suburbanos e centenárias bolas pretas, dão pistas para se entender como as tensões sociais – disfarçadas ou exacerbadas em festas – bordam as histórias desse terreiro de São Sebastião/Oxossi”,pontua o historiador Luiz Antonio Simas, que atualmente é consultor da área de carnaval do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro.

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No final dos anos 1920 e no começo da década de 1930, as escolas de samba começaram a se organizar como agremiações, deixando para trás o passado, quando se pareciam mais com os blocos de carnaval de hoje em dia. Esse período coincidiu com a chegada de Getúlio Vargas ao poder. Getúlio, já estabelecido no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, – antiga sede do governo federal – buscou na Itália de Benito Mussolini a inspiração para a nossa festa. Nessa época, a folia italiana era mais organizada, com pessoas marchando em linha reta, instrumentos que faziam parte da cultura nacional, músicas que edificavam o país e notas de zero a dez no final das apresentações. Vargas, que buscava uma imagem mais próxima da cultura popular, abraçou a ideia do italiano e tudo isso ganhou uma pitada de Brasil. Em 1935, o governo brasileiro passou ajudar financeiramente para que as escolas tivessem mais recursos na hora de desfilar. Dois anos depois, foi instituído que os sambas-enredos deveriam homenagear a história do país. Com algumas mudanças, muitos dos elementos incorporados ao carnaval na Era Vargas estão presentes atualmente: “O Estado varguista buscava disciplinar as manifestações das camadas populares, com o objetivo de controlá-las. Os negros, por sua vez, buscavam trilhar caminhos de aceitação social. As escolas de samba surgiram como resultados dessa realidade, em que o interesse regulador do Estado vai ao encontro do desejo de aceitação das camadas populares. Dessa tensão e dessas intenções as escolas de samba se cristalizam como agremiações típicas do carnaval carioca”, informa, Luiz Antonio.

Além da história da cidade, o carnaval está embrenhado na vida das pessoas que residem no Rio de Janeiro. No ponto de vista antropológico é possível dizer que o carnaval ajuda a formar a personalidade coletiva do povo carioca. Há quem defenda que quem nasce no Rio de Janeiro é mesmo uma festa democrática e solidária, mas embalada por tristes contradições.

“O carnaval é uma festa nacional que contribui muito para a formação do carioca, do brasileiro. É uma festa importantíssima para o processo de crescimento desse povo. O povo brasileiro e o carnaval seguem crescendo juntos”, diz o antropólogo Roberto da Matta, que frisa que esse assunto renderia um livro.

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Um dos pontos dessa roupagem que a festa popular proporciona ao povo carioca é a questão dos conflitos socioeconômicos. Durante os dias de folia, enquanto os blocos e escolas de samba passam, as pessoas de todas as classes sociais se misturam. “O carnaval é a festa das classes economicamente menos favorecidas, para usar esse termo que não é bom. Ele tem uma moldura francesa, vinda dos bailes de máscaras, mas no Brasil é uma festa popular. Do povo mesmo. Um senhor, nos anos 1970, acho que na Mangueira, quando eu estava colhendo um material de pesquisa sobre o carnaval, me disse: ‘O carnaval é uma festa que ajuda a nos tirar da tristeza. Que nos dá alegria depois de um ano de sofrimento’. O carnaval é uma transformação. Uma inversão. As celebridades, que as pessoas assistem o ano todo, ficam nos camarotes assistindo essas pessoas desfilarem. O carnaval é de todo mundo, todos participam. Por isso essa paixão”, comenta Roberto, que emenda em seguida:

“O carnaval continua sendo um enigma: um grupo de pessoas que sofre ano inteiro, por uma série de motivos, realizar uma festa tão grandiosa é algo fantástico. Supõem que o povo brasileiro é desorganizado, mas durante o carnaval conseguimos fazer uma festa extremamente organizada, capaz de encantar o mundo tudo. Encantar, inclusive, pessoas de países que funcionam melhor que o nosso.”

Mexe na história, mexe na vida dos cariocas e mexe na paisagem da Cidade Maravilhosa. O carnaval não para. De acordo com o estudo “Rio de Janeiro, 1850-1930: A Cidade e seu Carnaval”, do pesquisador Luiz Felipe Ferreira, o Rio sofreu profundas alterações físicas catapultadas pelo carnaval. E vice e versa:

“As modificações sofridas pelo carnaval carioca durante a segunda metade do século XIX e início do século XX estão estreitamente relacionadas com as transformações urbanas pelas quais passou o centro da cidade no período. De 1850 a 1930, o Rio de Janeiro deixa de ser uma acanhada cidade de feições coloniais para refletir, em seu espaço urbano, sua condição de capital de um país integrado à economia capitalista global. Refletindo esta nova realidade, o carnaval carioca irá buscar, nos modelos parisienses, uma expressão que reflita os ideais burgueses de refinamento e integração com o mundo. Mas as novas ruas e praças do Rio de Janeiro, feitas para o flanar burguês, irão acolher, e mesmo impulsionar, um novo carnaval, de cunho popular, que se impõe. Os bailes, as mascaradas e os desfiles de alegorias da burguesia irão, no período carnavalesco, dividir as ruas do centro carioca com os cordões, os blocos, os cucumbis e os ranchos de acento eminentemente popular. Esta verdadeira batalha pelo domínio das ruas da região central do Rio de Janeiro e as mútuas influências sofridas por estes diferentes ‘carnavais’ irão propiciar o surgimento de uma forma nova e singular de carnaval que, em alguns anos, definiu internacionalmente não somente a cidade do Rio de Janeiro, mas também todo o país.”

Provavelmente, se essa relação entre as ruas do Rio de Janeiro e o carnaval não fosse tão intensa, hoje em dia, ao andar pelo Centro da cidade, caminharíamos por um lugar com uma paisagem urbana bem diferente da atual.

Economicamente o carnaval do Rio de Janeiro é um sucesso. Dentro e fora da Sapucaí. Segundo dados do estudo “A Economia Criativa do Carnaval”, de Luiz Carlos Prestes Filho, no ano de 2000, a festa gerou receita de R$ 416,1 milhões, atraindo uma média de 310 mil turistas. No ano de 2006, com a mesma média de 310 mil turistas, o carnaval movimentou R$ 665 milhões. Em 2012, o carnaval atraiu para o Rio de Janeiro 850 mil turistas, gerando o movimento de R$ 1.100 bilhão. Os números só aumentam. No Sambódromo, a arrecadação de bilheteria regularmente atinge R$ 63 milhões em apenas dois dias, com a venda de 70 mil ingressos para o desfile das escolas de samba do grupo especial. Nesta última década os dias de folia geraram todos os anos 264,5 mil postos de trabalho, para a execução de 470,3 mil tarefas. No ano de 2014, a Associação Brasileira dos Shoppings previu a contratação de 260 mil trabalhadores temporários para o Natal. O carnaval gera mais empregos que o Natal. Considerando que o desemprego é um temor para qualquer sistema econômico, o carnaval ganha ainda mais importância no real cenário carioca.

Um desses empregos que ganham destaque durante o carnaval é o de bordadeira. Uma profissão que em uma parte do ano passa despercebida ganha holofotes quando a festa popular se aproxima. As bordadeiras de Barra Mansa, sul do estado do Rio de Janeiro, sabem bem disso. O grupo de mais ou menos 40 pessoas recebe um número acima da média de trabalho encomendado pelas escolas de samba do Rio. Esses pedidos começam a chegar a partir de agosto, ou seja, mais de seis meses antes da folia começar.

Em média, essas pessoas ganham cerca de um salário mínimo por mês para bordar fantasias e bandeiras das escolas. Parece pouco, mas para muitos deles é a única renda certa no ano, já que como bordadores e bordadeiras dependem das cada vez mais escassas encomendas. Eduardo Marques, de 23 anos, que é secretário da prefeitura de Barra Mansa e bordador de carnaval há dez anos, tem nesse trabalho uma possibilidade de ganhar “um extra”. Dinheiro que usa para pagar o curso de direito que está fazendo.

“Uma intermediara entra em contato com as escolas, depois ela passa o trabalho para nós. Nós recebemos pela nossa mão de obra. Eu tenho emprego fixo na prefeitura, para mim é um extra, mas que me ajuda bastante com meus estudos. Para muitas pessoas que fazem esse trabalho, muitas vezes, é o único dinheiro que recebem. Muita gente precisa mesmo disso, porque não é mais tão comum contratarem bordadeira ou bordador. O trabalho para o carnaval aumenta sempre. A cada ano tem mais coisa para fazer. Esse ano estamos fazendo bordados em geral para Mangueira, Viradouro, Imperatriz e União da Ilha. Já fizemos para a Beija-Flor em outras épocas, também”, diz Eduardo que aprendeu a bordar com a irmã mais velha e a tia, quando ele ainda era um adolescente.

O trabalho das bordadeiras de Barra Mansa existe há mais de 30 anos e já foi citado em diversos estudos que falam sobre carnaval. O mais marcante deles foi o livro “Artesãos da Sapucaí”, de Carlos Feijó e André Nazareth. A obra também retrata o trabalho de diretores de carnaval, pesquisadores, carpinteiros, aramistas, bordadeiras, peruqueiras, chapeleiros, iluminadores e coreógrafos, divididos em categorias de base, construção, ornamento e finalização.

Carlos Lessa, ex-presidente do BNDS (Banco Nacional do Desenvolvimento Social) ressalta a força econômica do carnaval, mas faz uma ressalva quanto à elitização da festa: “Há anúncios na Alemanha para vender lugar nas alas do carnaval carioca. Isso modificou a festa, pois aumentou as cores e diminui o balanço. Muita gente que pode pagar não sabe dançar. Para suprir isso, as fantasias estão cada vez mais enfeitadas e coloridas. As bordadeiras de Barra Mansa, que fazem um grande trabalho, ganham com isso. Entretendo, o povão, de modo geral, está ficando de fora das grandes escolas de samba. Com isso, eles vão migrando para escolas menores ou para os blocos de rua. Os desfiles das grandes escolas geram mais dinheiro que os blocos. Mas os blocos colocaram de volta o povo na festa. No ponto de vista econômico, os blocos de rua não são tão fortes. Nem tão organizados. Eles são interessantes por esse motivo de colocar as populações mais carentes na festa outra vez. A Beija-Flor faz com que Nilópolis, um município carente, que vive a atmosfera de uma grande escola, mas isso não é mais tão comum nas grandes agremiações. No entanto, no sentindo econômico, as escolas grandes ainda são importantes para o povo, principalmente devido à geração de empregos. O Bola Preta pode fazer o mesmo pela cidade do Rio de Janeiro, mas ainda não faz”,diz o economista, que fundou um bloco carnavalesco, o “Minerva Assanhada”.

Uma grande escola de carnaval, no auge dos trabalhos, emprega cerca de 300 pessoas. A economia gira quando uma escola de samba compra materiais para construir um carro alegórico. Um turista que deixa sua cidade, ou país, e se hospeda em um hotel para acompanhar os desfiles ou participar dos blocos, também participa do processo desse giro econômico. Quando um vendedor ambulante reforça seu estoque para suportar a elevação na demanda, quando grandes empresas montam camarotes na avenida para receber seus convidados e quando outros setores da sociedade se envolvem nos quatro dias de folia nota-se a cadeia produtiva do carnaval, que alavanca esse verdadeiro fenômeno econômico. Apesar de haver alguma discordância, para muitos analistas essa é a data comemorativa mais lucrativa do Brasil, superando – além do Natal – a Páscoa, o Dia das Mães, dos Pais, das Crianças e o Réveillon.

Como era de se esperar, no período de folia, a demanda por serviços de turismo cresce vertiginosamente. De acordo com o Ministério do Turismo, o carnaval 2013 (um dos anos mais marcantes nesse quesito) gerou 6,2 milhões de viagens dentro do país, alcançando uma movimentação financeira de R$ 5,7 bilhões, algo em torno de 2,5% a 3% do faturamento previsto para o setor naquele ano. Só o Rio de Janeiro recebeu 900 mil turistas entre brasileiros e estrangeiros.

Um levantamento feito pela Riotur em parceria com a secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado aponta que em 2014, o carnaval movimentou cerca de R$ 2,270 bilhões, dos quais aproximadamente R$ 1,790 bilhão foram provenientes do turismo. O restante foi oriundo dos investimentos das escolas de samba, eventos paralelos, decoração e organização de blocos de rua. Em 2014 foram 920 mil turistas no Rio de Janeiro. A expectativa para 2015 é de que todos esses números subam ainda mais.

Embora o sucesso turístico do carnaval seja evidente, o Ministério do Turismo tem planos ainda mais ambiciosos. Em 2013 foi realizada em Brasília uma reunião, na qual estavam presentes membros da Assembleia Legislativa, Liga Independente das Escolas de Samba e da Associação Independente dos Blocos de Carnaval de Rua da Zona Sul do Rio de Janeiro, para discutir formas de fazer com que o Carnaval se torne um produto turístico capaz de encantar turistas e gerar emprego e renda durante todo o ano para as comunidades envolvidas com a festa.

Uma das propostas discutidas nesse encontro foi a possibilidade da criação de uma escola de carnaval voltada para a preservação cultural e a formação e qualificação de mão-de-obra em profissões relacionadas à festa, como guias de turismo, por exemplo.

“Rio de Janeiro sem carnaval é aniversário sem parabéns: pode até acontecer, mas não seria tão bom”, vibra Douglas Vieira, folião que costuma desfilar em diversas escolas de samba do grupo especial e da série A.

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