A tempestade destruiu a cidade. De quem é a culpa?

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O Rio de Janeiro foi pego de calças curtas. Mais uma vez. A canção fala das águas de março, mas elas têm sido de fevereiro, janeiro e todos os outros meses do ano. Na semana passada, recebemos uma tempestade com velocidade de furacão que virou a cidade pelo avesso. Muito pior: acabou com vidas e ainda trará inúmeros gastos em termos de reparos, limpeza e indenizações.

Nessas horas, é muito fácil culpar o prefeito Marcelo Crivella pela total falta de resiliência da metrópole carioca. Isso, contudo, não é justo. A administração municipal atual tem suas falhas, mas não é todo problema que pode ser depositado na sua conta. Aqui, temos o mais concreto exemplo de uma péssima herança estrutural.

Quando os portugueses aqui chegaram e trataram de sumir com os indígenas que nos deixaram o legado do termo “carioca”, fundaram uma cidade bem típica do urbanismo português: fortificações e comunidades religiosas nos morros, conectadas por trapiches e estruturas administrativas nas praias. Lisboa é assim. Salvador é assim. Luanda é assim. E o Rio foi assim.

Isso porque, provavelmente o Rio tenha sido a cidade brasileira mais modificada em sua topografia. Em seu cenário original, dispunha do mosaico morro-praia-morro-praia-morro. Domorro de São Bento, para um lado, a Rua Direita (primeiro de Março) seguia a praia até chegar aoMorro do Castelo. Do outro, expandiu pelo Largo da Prainha (Rua Sacadura Cabral) até o Morro da Conceição. Do Morro do Castelo, a Rua Santa Luzia, também à beira mar, ia até o Convento da Ajuda (hoje Cinelândia), já encostado no impoentente Morro de Santo Antônio, ligado por aqueduto ao Morro de Santa Teresa. Inicialmente, tal modelo funcionava, mas as inúmeras lagoas e pântanos começaram a ser um obstáculo para o crescimento de uma cidade que fazia seu planejamento à moda de Antônio Machado: “caminhante, o caminho se faz ao andar”. E, no caso carioca, o planejamento se fez ao crescer mesmo.

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Sem muita ordem, apenas na necessidade de expandir em terreno hostil, recebemos de presente dos nossos ancestrais uma série de aterros e demolições. O pântano abaixo do Morro de Santo Antônio logo foi aterrado para virar o icônico Largo da Carioca. Pela atual rua Uruguaiana, passava uma enorme vala de escoamento. Os rocios – áreas destinadas à expansão urbana no urbanismo português – iam sendo expandidos a duras penas. As atuais Praça Tiradentes e Praça da República começaram como rocios.

Não dá para responsabilizar os portugueses por isso: a maior parte das transformações veio no Brasil independente mesmo. Ao andar pelo centro do Rio, desconfie de ruas tortas: elas indicam obstáculos naturais que não existem mais. A Rua Sacadura Cabral é sinuosa, pois aquilo era uma enseada. A Rua do Riachuelo é curva, pois seguia o caminho entre pântano e morro. A Rua Santa Luzia não é paralela a nada ao seu redor, pois eram praia. E a Primeiro de Março recai no mesmo caso! Desconfie também das ruas muito regulares, pois indicam terrenos ganhos à base de aterros ou demolições. O traçado bonito das ruas da Lapa é fruto de um planejamento do final do Século XIX, após o aterro do grande pântano que ali havia com os rejeitos da demolição do finado Morro do Senado (onde hoje é a Praça da Cruz Vermelha). Outro mangue, enorme, se estendia do Campo de Santana até a região do Estácio e Praça da Bandeira. Foi transformado em canal, que escoava no mar lá na altura dos atuais trevos da Presidente Vargas – até que aterraram a região portuária e tiveram que virar o canal a 90 graus e continuar com ele por uma nova via (hoje chamada Francisco Bicalho).

Por sinal, a região portuária é toda um imenso aterro. Aquelas ruas sinuosas da Saúde e Gamboa margeavam o mar. Quarteirões e quarteirões foram ocupados por aterro, onde hoje estão os silos e armazéns portuários. Até ilhas foram emendadas à terra firme. Falando em ilha… Sabia que a Ilha do Fundão é, na verdade, um aterro de seis ilhas?

E os morros foram sendo derrubados. Para onde a cidade expandia, pegava-se terra de morro para cobrir pântano e canalizar mangue. O morro do Castelo, local de fundação da cidade, virou esplanada. O morro de Santo Antônio ficou apenas com a lembrança de um pedacinho onde está o convento. E por onde a cidade andava ia se escavando encosta de morro e planificando terras para ocupação humana.

Não quero me estender muito, mas você já se perguntou sobre o tanto de praia que não é praia? Praia do Caju, Praia de São Cristóvão, Praia do Flamengo, Praia de Botafogo… Hoje dão de frente para terra e mais terra: tudo aterro. A margem da Lagoa Rodrigo de Freitas? É aterro. O lado leste inteiro da Avenida Brasil, do Caju à Penha? É aterro! Com o advento de técnicas mais modernas, a magnitude dos aterros e demolições de morros continuou a passos largos. Até a ocupação recente de bairros como Barra da Tijuca e Jacarepaguá envolveu uma boa dose de aterro e ocupação de terras rasas. E é aí onde quero chegar…

Uma cidade que cresceu à base de escavações de encostas de solo sedimentar, canalização de rios e pântanos e inúmeros aterros não pode, sem o mínimo de planejamento a longo prazo, se proteger dos efeitos catastróficos das tempestades. Com certeza você já regou uma plantinha. O que acontece quando acidentalmente você coloca água demais? Ela volta. O solo não absorve.

É exatamente isso o que acontece com o Rio. Em geral, terrenos conquistados por aterro têm seu solo saturado. Os aterros mais antigos, que eram feitos até com entulho, são os piores nesse sentido. O solo já é muito úmido por natureza. Quando chove muito, ele não consegue absorver a água na velocidade necessária e a água transborda. Num cenário natural, haveria um pântano naquele lugar, não ocupado pelo ser humano, com ecossistema em equilíbrio. As chuvas fariam o pântano encher, mas não há problema, pois o mesmo escoaria num sistema de rios, contornando os morros, até chegar ao mar. O problema é que os pântanos viraram terra molhada, em cima da qual colocamos camadas de concreto e asfalto impermeáveis; os rios viraram canais subterrâneos com embocadura limitada e os morros foram escavados ou deixaram de existir. Ou seja, quando a água transborda, espalha para toda parte, vai para todo o lado da planície concretada que nunca era para ter sido feita, e carrega morro abaixo residências e construções que deixaram sua encosta exposta com terreno propício a deslizamentos.

Um problema estrutural desses não se resolve numa administração pública, somente. Ele foi sendo criado ao longo de séculos, sob as pressões da especulação imobiliária. Como nunca houve uma política séria de longo prazo em termos de regulação da expansão urbana (embora seja possível citar algumas tentativas pontuais de qualidade), áreas de imensa fragilidade que iam sendo tomadas da natureza eram maciçamente ocupadas com edifícios densamente posicionados lado a lado. E assim, as enchentes que eram um leve incômodo no tempo dos nossos avós (quando as casas ainda tinham quintais grandes por onde escoava um pouco da água) passam a ser uma tormenta total e completa pois com blocos de edifícios coligados, não há nem mais um pedaço de solo exposto para ajudar a água a escoar.

Dificulta ainda mais o cenário o fato de que inúmeros cariocas vivem em encostas de morros ou em terrenos adjacentes a encostas de morros. Nossos morros são “barrentos”. Eles deslizam facilmente. E, ao deslizar, levam tudo o que está abaixo – sobretudo vidas inocentes. E não falo apenas de favelas, mas também de muitos loteamentos oficiais e regulares que estão em áreas completamente impróprias, com residências e mais residências à espera de uma catástrofe.

A Praça da Bandeira não enchia por culpa do prefeito da época da enchente. Enchia porque era um pântano aterrado, numa baixada, e ocupada vorazmente por edifícios que pavimentaram todo o solo. É uma bacia impermeável cujo subsolo é cheio de terra encharcada. Não tem como não encher. Aliás, tem… se for construído um sistema imenso e caríssimo de piscinões que recolhem todo o excesso de água e aguentam a vazão dos temporais (por enquanto). A Rocinha não foi dilacerada no último temporal por culpa do atual prefeito, e sim porque expandiu em encosta sobre solo impróprio para construções. Aliás, há deslizamentos históricos de residências de alta classe em Santa Teresa – isso não é privilégio da favela.

Para finalizar, deixo uma conclusão alarmante. Boa parte do Rio de Janeiro nunca deveria ter sido construída onde está hoje. Mangues e pântanos deveriam ter sido deixados intactos, apenas com a mínima intervenção de autopistas de passagem suspensas sobre eles (o Mangue do Itacorubi em Florianópolis é um bom exemplo disso). Encostas deveriam ter permanecido livres e toda ocupação humana deveria ocorrer principalmente em áreas de terra firme, distante dos eixos de escoamento de água. O problema é que não dá para remanejar tanta gente – rica e pobre – para outras regiões da cidade. A construção de uma cidade resiliente demanda a modelagem dos piores cenários possíveis, dos fenômenos climáticos extremos, e a execução de obras (que, por sinal, serão caras) que impeçam seu poder destrutivo, em paralelo a medidas enérgicas quanto à expansão da cidade em áreas inapropriadas. Enquanto a única prevenção for o toque de sirenes e alertas meterológicos, estaremos correndo do problema e não antecipando sua solução.

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Luiz Coelho é planejador urbano, sacerdote anglicano e artista visual. Tem formação em Engenharia Cartográfica (IME), mestrado em Informática (UFAM) e é doutorando em Planejamento Urbano e Regional (UFRJ). Também é formado em Teologia pelo SETEK, com doutorado em liturgia por Sewanee: the University of the South. É servidor público municipal, atualmente lotado no Instituto Pereira Passos e serve a Paróquia Anglicana São Lucas, em Copacabana. É membro filiado ao PSOL.
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1 COMENTÁRIO

  1. E o povo que também é mal educado e contribui jogando lixo na rua, inclusive o lixo de casa que jogam na rua mesmo sem ser no dia e horário em que passa o caminhão da coleta. Só que as pessoas esquecem que o lixo é nosso, e pelo simples motivo de incomodar, o jogam na rua.

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