Domingo passado, ao tratar do novo Banco de Bens Culturais Procurados (BCP) do Iphan, me comprometi a aprofundar o assunto do tráfico de obras de arte no Brasil. Como o desabamento do forro da igreja conventual de São Francisco, ocorrido em Salvador, está na ordem do dia, peço o obséquio para tecer considerações desse lamentável ocorrido – que inclusive causou uma vítima fatal, deixando a pauta da circulação de bens culturais para a próxima semana.
É mister iniciar recordando que temos denunciado a mudança no foco da preservação nos últimos anos, no qual a arte colonial passa a representar uma espécie de categoria ‘antiquada e obsoleta’. Ora, tratar um segmento majoritário do patrimônio cultural brasileiro (correspondente a cerca de 40% dos tombamentos) como algo secundário é perigoso e impertinente, pois compromete os pilares que formulam o que entendemos como a memória nacional, refletindo nocivamente em como nos vemos e somos vistos. Por oportuno, quero deixar claro que saudamos a valorização de outros vetores da memória e do patrimônio, mas tais ações não podem ser desenvolvidas em detrimento ao que já é protegido por lei, como parece ocorrer ultimamente.
Além disso, parte da imprensa, das autoridades e dos especialistas muitas vezes recorre a certos axiomas para elencar causas e mitigações após incidentes trágicos semelhantes. Essas informações – por vezes imprecisas – circulam livremente na opinião pública e no senso comum e podem produzir ainda mais ruína.
A primeira afirmação muito difundida, costuma contrapor toda a “riqueza do Vaticano” ao mau estado de conservação dos edifícios católicos. Essa generalização me parece surgir de uma incompreensão da estrutura burocrática e hierárquica da Igreja no Brasil e no Mundo, composta por instituições com naturezas jurídica e administrativa diversificadas. Li aqui e ali, por exemplo, que a “diocese” deveria se responsabilizar pelo ocorrido na Bahia. Acontece que o desabamento se deu numa igreja conventual pertencente à Ordem dos Frades Menores – também chamados genericamente de franciscanos – que não é administrada pela Arquidiocese de Salvador. Noutros casos, alguns deles amplamente noticiados, igrejas à beira da ruína pertencem a irmandades, que são geridas por leigos – logo, pessoas não ordenadas; não sacerdotes.
Algumas irmandades e confrarias tem vivido uma grave crise de gestão e finanças, por vezes abalando a integridade e o escrúpulo de instituições bicentenárias. Não são raros os casos em que parte de suas possessões foi dilapidada ao longo dos últimos 50, 60 anos. Zelar por seus monumentos tombados, que é obrigação das mesmas, exige muito dinheiro e capacidade de comando, algo que parece ter se tornado mais exceção do que regra.
Paróquias e capelas – por sua vez – estas sim pertencentes às dioceses, também dependem das expensas das comunidades para a manutenção das mesmas. Algo não muito diferente do que ocorria mesmo à época da união entre Igreja e Estado, que durou todo período colonial e imperial: uma breve pesquisa nos arquivos históricos nos revelará que a maioria das obras e ampliações dos templos era feita à base da esmola e benfeitorias dos fregueses locais. Portanto, o tal “ouro do Vaticano” é uma solução falsa, que não resolve e nem ilumina a questão.
Outra informação imprecisa se refere à incumbência dos órgãos de patrimônio. Vamos sublinhar: quem deve zelar pelos bens tombados em primeiro lugar são seus proprietários, sejam eles a Igreja, um órgão público, um museu ou qualquer pessoa física e jurídica. Os órgãos de patrimônio, por sua vez, devem ser solidários nessa responsabilidade de preservação. E como eles cumprem esse papel? Através de ações de identificação, proteção, reconhecimento, publicação, promoção, difusão etc. Porém, ainda que conservação e preservação sejam uma atividade fim dos referidos órgãos, eles não são os principais “players” do fomento para tais ações; muitos sequer possuem autonomia administrativa ou dotação orçamentária. Noutras palavras, quando um bem cultural se arruina ou sofre um sinistro, nem sempre significa que a jurisdição que cuida de fiscalizar aquele monumento não apontou a necessidade de intervenções ou foi negligente. Mas pode indicar que as estratégias de financiamento para mitigar os riscos não foram postas em prática de maneira eficiente. Isto é, faltou que o dinheiro chegasse a contento.
Passamos, assim, para a questão das possíveis soluções. Sim, no geral há burocracia para o licenciamento das obras em bens tombados. Aqueles mais ameaçados poderiam, através de uma portaria ou ato normativo análogo, receber um tratamento especial para flexibilizar e acelerar a aprovação das intervenções. Porém, a principal solução para casos emergenciais seria, a meu ver, a criação de um fundo, com a participação de instituições financeiras e empresas que possuam missão, valores, metas ou objetivos ligados à preservação do patrimônio cultural. Sem embargo aos mecanismos de fomento mais usados, com a Lei Rouanet e alguns editais, esse fundo específico atuaria para “plugar” de maneira mais eficaz os demandantes de ações inadiáveis e o dinheiro necessário para tais intervenções. Órgãos de tombamento, entidades não governamentais – como a CNBB e seus regionais – e outros pares poderiam compor um conselho técnico que estabeleceria critérios de distribuição, elencando aquelas propostas prioritárias para determinado ciclo.
Não há solução mágica. Sem recursos financeiros, fortalecimento das instâncias de fiscalização e tutela (inclusive com acréscimo de corpo técnico e melhoria das condições de trabalho) e participação ativa e zelosa dos proprietários, sinistros como o ocorrido em Salvador podem se repetir em muitos centros históricos do Brasil, inclusive no Rio. É preciso cuidar melhor desses locais, que são os principais mananciais da memória das nossas cidades e lugares.
