Água do Papel, Papel da Água

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Há pouco tempo iniciei meus estudos na obra de Gaston Bachelard, filósofo a quem sempre admirei pela poesia inerente ao seu modo de pensar. Bachelard encanta, seduz; promove um jogo estético constante.  E isto fica evidente pelas imagens que ele adota como meio de excitar a reflexão e a memória. Sim, a memória! Porque filosofar é um ato que nos obriga não só a compor e recompor conceitos, como também a reviver todos os afetos que a alma contém em seus devaneios. A filosofia, nos ensina Bachelard, é um devaneio elevado.

A materialidade da água é uma das fontes de devaneio, é um dos princípios elementares da reflexão filosófica. Não obstante foi Tales de Mileto o primeiro filósofo a inquirir a origem das coisas, a arché de onde tudo o que somos e tudo o que nos ronda emergiu. Tales “descobriu” a água como pensamento e, a partir dela,nos descobriu. A água é o nosso ser primitivo, nossa fonte de formas e potências, o “sangue da Terra”, como diz Bachelard. Do manancial aquático nascem os corpos e para esse fundo arqueológico retornamos ao morrer. A água é uma bacia amorosa onde a vida fluídica da Terra se concentra e desloca forças materiais e espirituais.

Corpo e espírito são banhados por água; nossa consciência é feito os devires, os movimentos imprevistos e deslizantes da água: ora translúcida ora turva, ora fria ora quente, ora rasa ora profunda. Sendo assim, os labores do espírito, os produtos de nosso pensamento serão regidos por água: nos refrescarão, nos acalentarão, nos iludirão, nos revelarão, nos dissolverão. Enfim, serão o que a matéria prima do mundo insinua o tempo todo que sejamos.

O Teatro é uma dessas atividades aquáticas do pensamento cujo papel é nos enxaguar de nossos próprios cancros, purificando o impuro, clareando o fundo abissal de nossas almas. Mas o Teatro está aí também como fonte hidratante que, ao consumirmos, reabilita o organismo deixado à mingua, a fim de fortalecer o que não pode ser destruído: nosso espírito, nossa luz.

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O espetáculo Cartas para a Alemanha da atriz e diretora Elze Maria Barroso inspirou-me a pensar sobre esse tema e sobre essa relação da água com o espírito. Ou, antes, da água com o poder de criação. Foi a poética da água que conduziu Elze a criar uma performance tão vigorosa e tão humana. Água, esse ventre universal de onde seres tão maravilhosos nascem/morrem aos borbotões, atravessou a alma de Elze e o resultado foi a composição de um belo banho espiritual.

Em cena, sozinha, Elze transborda uma água ancestral: a água erótica. Atravessada por um amor liquidado há 13 anos, Elze explora no tablado as formas de transparecer sua saudade, sua mágoa e sua força de resistência. O tablado torna-se, pelas mãos de Elze, um campo especular por meio do qual conhecemos de perto o coração da artista. A água, como não poderia deixar de ser, predomina no espaço cênico, curiosamente em um espaço duro, fazendo oposição à rigidez de um solo que recebe o corpo puro e desnudado de uma mulher que apenas amou.

Essa mulher que amou tem muito a dizer, a desaguar. Por isso, o espetáculo concebido por Elze navega na onda do teatro contemporâneo, pós-dramático, em que a estética não se encerra numa simples imitação de emoções vividas por um personagem. No teatropósdramático não se representa uma vida. Pelo contrário, serememora uma vida, de maneira narrativa, confessional, irritando o que seria a caduca expectativa por um teatro mimético, desejante de ser um retrato do real. Elze nos mostra, ao revés, o que muitos dramaturgos contemporâneos têm ousado desde os anos 60, a saber: a necessidade de transformar o Teatro num espaço em que se compartilham vidas, em que se emparelham corações e mentes, sem a divisória engessada que separa o “público”do “artista”, a tão famigerada “quarta parede”, sem a relação dura do espectador demasiado conceitual, que quer entender a obra, em vez de recriá-la dentro de si, em vez de deixar o reflexo cristalino da água colorir seu interior.

Na arte que Elze desempenha com beleza e desenvoltura corporal vimos o teatro agir feito água: liquidando formas petrificadas de experiência cênica, ousando na tentativa de buscar elementos simples e concretos (garrafas de vinho, sacos plásticos, pisca-piscas, giz escolar, etc.), que desempenhem uma linguagem ao mesmo direta e subentendida. Elze nos atenta para a poesia escondida de coisas mínimas que, por trás de suas superfícies, deixam à mostra uma verdade universal e transparente: em suma, somos liquidados pelo amor, liquidados por nossas paixões, até o ponto em que é preciso que nós liquidemos aquilo que nos liquida.

Elze não é um personagem, um ser distanciado de um drama que fomos ali para assistir. Não assistimos a Elze; ela nos assiste segurando sacos de água, bebendo vinho ou repetindo um gesto mimoso que nos ensina a fazer tal como fazia com seu amante. Elze é Elze mesma, sem maquiagens: em estado aquático, ondulante e límpido, mostrando sua vida aos olhos de quem viu refletido na água esparramada pelo chão as lágrimas de uma mulher que sofreu e superou.

Cartas é a enxurrada de água de um amor que saciou a sede de duas pessoas de países diferentes: Elze, a brasileira e ele, o objeto de seu amor, o alemão. A quentura de uma mulher latina, tropical, temperando e sendo temperada pela frieza de um homem germânico; duas águas postas e contrapostas no estado dramático do amor. As cartas de Elze são a água do papel que, comprimida nas três paredes do edifício teatral, lança luz e cor sobre nós; elas são, no silêncio da sala e da audiência,as palavras desaguadas de um amor; os lamentos e as exaltações dessa experiência aventureira entre duas culturas que se cruzam no caminho, na passagem entre o agora e o não-mais-agora, entre o imediato e o passado, o liquidado, o que se diluiu.

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