Alexandre Arraes: O Rio dos rios que morrem

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Em uma das passagens mais emblemáticas de sua obra-prima Os miseráveis, editada em 1832, o grande escritor Victor Hugo narra como o personagem principal, Jean Valjean, atravessa os esgotos de Paris para salvar um jovem revolucionário ferido, perseguido pela Polícia. O episódio, celebrizado na literatura universal, acabou levando a Prefeitura da capital francesa a promover o saneamento do sistema, parte do qual, antes da virada para o século XX já havia sido transformado em museu e até hoje atrai milhares de turistas para um passeio, não muito perfumado, é verdade, mas que conta parte da história de como a cidade se livrou de um de seus maiores problemas.

Aqui no Rio de Janeiro, hoje, há quase 200 anos da minuciosa descrição de Hugo, e da transformação da obra de Paris numa atração turística, estamos numa situação ainda pior que aquela: a estatal Cedae, essa obra-prima da burocracia improdutiva, consegue tratar apenas cerca de 46% dos esgotos que produzimos – uma performance que nos coloca em 51o. lugar no ranking das 100 maiores cidades brasileiras, segundo dados de uma instituição séria, o Instituto Trata Brasil. Muito ruim, mas ainda conseguimos piorar: no levantamento anterior, tratávamos 47,13% dos efluentes! Não é de se estranhar já que o investimento da Cedae na capital foi de ridículos R$ 14,1 milhões em 2017. Para não ir muito longe: a vizinha Niterói, sob os cuidados de uma empresa privada, dá destinação correta a cerca de 94% de seus despejos. Ou seja, está longe de fazer o que fazemos aqui: descarregar os esgotos nos rios e lagoas, asfixiando-os e os levando à morte, transformados em fétidos escoadouros em direção ao mar. Verdadeiro crime ambiental sem punição. Se nada for feito com urgência, logo, seremos o Rio dos rios mortos.

O primeiro passo para nos salvar dessa vergonhosa situação é romper o leonino instrumento jurídico que recebeu o singular nome de “Termo de reconhecimento recíproco de direitos e obrigações” que, por motivos nunca bem esclarecidos, cometemos a imprudência de assinar em 2007. Na prática estabelece obrigações para o município e direitos para a Cedae. Esse documento, firmado pelo governador Sergio Cabral, prefeito Cesar Maia e presidente da Cedae, Wagner Victer, atribuiu à estatal, uma lucrativa exploração da distribuição de água, a responsabilidade pelo (não) tratamento de esgotos por um período de – acreditem! – 100 anos! Além disso, a empresa ficou autorizada a despejar os efluentes diretamente na rede de águas pluviais, transformando ralos em cloacas.

Desde 2017, em outra fase de meu mandato, denuncio o absurdo desse instrumento jurídico, que consagra a relação nefasta do Município do Rio com a Cedae, tanto em audiência pública quanto em representações junto ao Ministério Público. Infelizmente, sem resultados concretos. “Chega sempre a hora em que não basta apenas protestar: após a filosofia a ação é indispensável”- retomo Victor Hugo. Agora, nesse novo momento na Câmara Municipal, junto com outros colegas vereadores, criei uma Frente Parlamentar que se dedicará a promover novas ações objetivas com vistas a forçar a revisão dessa infame situação.

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Em manchete de sua edição de 18 de agosto passado, O Globo traçou um panorama claro da situação, mostrando que, segundo dados do Ministério da Economia, em 18 dos 25 estados analisados no período 2010-2017, as estatais de saneamento gastaram com salários de seu pessoal R$ 8,5 bilhões a mais que o investido no tratamento de água e de esgotos. E mais: que a taxa de coleta de esgotos nesses estados era inferior a 50% do necessário. Cedae incluída, naturalmente.

Fica óbvio que, se quisermos verdadeiramente mirar a universalização dos serviços de saneamento, serão necessários investimento e gestão privados. Após a completa descaracterização da iniciativa apresentada pelo Senado, a nova esperança é o projeto de lei que o Governo Federal enviou à Câmara dos Deputados. Ele propõe mudar as regras do setor e abrir o segmento à iniciativa privada – que já mostrou que pode investir bem mais que estados falidos e suas empresas públicas ineficientes. É claro que o lobby das estatais mostrou os dentes e fortes emoções devem resultar do debate entre os deputados.

O que não pode é cidades como o Rio de Janeiro continuarem eternamente nessa posição vexatória, à espera de que seus rios, lagos e praias um dia voltem a acolher peixes e banhistas sem riscos para a saúde. Sabe-se, também, que anos de descaso não se resolvem em pouco tempo e basta tomar como exemplo o Rio Tâmisa, em Londres, que foi declarado poluído em 1610 e em 1858 foi “batizado” como “O Grande Fedor” –  cheirava tão mal que chegou a impedir sessões do Parlamento, situado à sua margem. Depois de décadas de investimento e vontade política, o Tâmisa foi recuperado e, hoje, é palco de competições de vela e remo e vive cheio de pescadores, à cata das 121 espécies que voltaram a povoar suas águas.

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