As regras ignoradas e a política do uso e abuso do espaço público no Rio

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Pode o governo da Cidade decidir o que quiser sobre o uso e a ocupação privada da orla das praias do Rio? Não há regras para disciplinar este uso?

Resposta: há sim! Há mais de um ano, pelo menos, o Conselho de Patrimônio Cultural do Estado do Rio explicitou os critérios para o uso e a ocupação da orla de Copacabana, seja por equipamentos permanentes, seja por equipamentos ditos temporários.

Estes critérios foram definidos já que aquela orla, especialmente a de Copacabana, pelas suas calçadas, são tombadas (preservadas) como patrimônio cultural. E, mais do que isto, faz parte do conjunto da paisagem cultural reconhecida pela UNESCO como patrimônio mundial; reconhecimento este apresentado pelo País, que se comprometeu com a sua preservação nas três esferas de Governo – o federal, o estadual e o da Cidade do Rio.

Carol Sampaio As regras ignoradas e a política do uso e abuso do espaço público no Rio
Carol Sampaio, organizadora do Bloco da Favorita

Compromissos ignorados – Mas, seguindo uma cultura governamental “malandra de ser”, os gestores teimam em ignorar os compromissos de preservação depois que obtiveram os seus objetos de desejo político; no caso, o reconhecimento do Rio como paisagem cultural mundial.

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O caso dos mega eventos na orla de Copacabana do Rio ilustra com perfeição esta “esperteza” governamental.  A chamada “abertura” do Carnaval de 2020 no Rio foi inventada pela atual gestão do Prefeito Crivella, sempre com os dois olhos voltados para as eleições municipais deste ano: Carnaval, festões, folias – o circo que sempre agrada boa parcela do povo, como os romanos já sabiam.

No último domingo passado, dia 12 de janeiro, há 40 dias para iniciar a semana carnavalesca, foi inventada uma abertura para a folia de fevereiro, usando o mega palco armado nas areias da praia de Copacabana para outro megaevento que ocorreu há apenas 11 dias atrás: o Réveillon 2020.

Justiça seja feita. O uso indiscriminado e abusivo do espaço público daquela praia – Copacabana – com a tomada de suas calçadas, areias e ruas pelo comércio de toda espécie e pela multidão atraída pelos mega espetáculos não se iniciou agora. Já nas gestões anteriores, inclusive na época da Copa e da Olimpíada, até arenas foram montadas no local.

Não tem fim o geral sentimento de que os espaços públicos, sobretudo os mais destacados e privilegiados, são o objeto de desejo da apropriação, uso e exploração individual

A população desconhece o volume de pedidos, já que eles não aparecem em qualquer lugar na internet (deveriam estar lá). E sempre há uma pressão enorme sobre os órgãos de patrimônio para conceder a autorização. “Mais uma autorização, que seria a última, e que é importante para economia desvalida da Cidade. Vai dar emprego, cuidar daquilo que está largado e mal cuidado pelo poder público…” Sempre o mesmo discurso, há 500 anos, para justificar a apropriação privada de áreas públicas de uso comum do povo.

São constantes e muitos os pedidos de ocupação ditas transitórias dessas áreas públicas privilegiadas. A maioria negados, não pela Prefeitura, mas pelos órgãos estadual e federal de patrimônio cultural, já que a orla do Rio, do Santos Dumont ao Forte Copacabana, é considerada patrimônio mundial. 

São pedidos que vão desde monumentos religiosos (como uma réplica do Cristo Redentor nas areias do Leme), novas estátuas personagens a serem homenageados – (além daquelas que já existem: Clarice Linspector, Carlos Drummond, Tom Jobim, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Ayrton Senna, Zózimo Amaral, Millôr Fernandes…) – desfiles de moda na praia, rodas gigantes e equipamentos de shows, eventos religiosos, e até estandes de agências de carros.

Todos querem um pedacinho da orla para chamar de seu. Daí a imperiosa necessidade de não só ter os critérios de ocupação, como de explicitá-los.

Talvez a nossa cultura explique melhor esta “gana” por apropriar-se do que é coletivo. Primeiro, dizendo que é temporário para, conforme sabemos, se tornar definitivo e para sempre, pois ninguém vai bancar a briga de desocupar.  Sobretudo porque qualquer processo na Justiça, como sabemos, pode durar no mínimo uns 20 anos …

E aí já vai valer a pena bancar a briga com o argumento fajuto que qualquer ocupação estará “dando emprego“, de “favorecer a economia e o desenvolvimento” da Cidade.

Critérios de autorização – No ano de 2018, depois do episódio de desocupação do estande de carros da praia de Ipanema, o Conselho de Patrimônio do Estado do Rio de Janeiro (CET) discutiu durante mais de 12 reuniões, e aprovou uma deliberação, no processo E-18/001.1334/2017 para “explicitar e dar transparência” aos critérios de autorização de todas as intervenções nas orlas de Copacabana, Ipanema e Leblon.

Finalmente, na 1367ª reunião havida em 5 de junho de 2018, o Conselho de Patrimônio (CET) aprovou a Deliberação nº 2, pela qual explicita os critérios para autorização na orla, critérios estes que já vinham sendo aplicados, e que se originaram de estudos havidos na própria Prefeitura, na gestão do Prefeito L.P. Conde. 

A ata com a explicitação dos critérios foi publicada na internet, no site do INEPAC, fls.58 a 62 . Mas, até aonde consta, o processo foi enviado para publicação no Diário Oficial, há exatos 18 meses, sem êxito. Registre-se que estes mesmos critérios foram objeto de aprovação pelo Comitê Gestor da Paisagem Cultural Mundial na reunião de 25 de setembro de 2019, mas cuja ata ainda não foi publicada pelo IPHAN.

O fato da burocracia estadual ter empacado a publicação no Diário Oficial não implica nem que não haja critérios, nem que fique dispensada a autorização do órgão estadual de preservação. Significa apenas um velho e opaco costume de esconder as regras para que, talvez, em precisando, seja mais fácil manipulá-las, quando for de interesse específico de algum figurão.

Mas, no caso da orla, as regras estão aí, nas atas do Conselho Estadual de Preservação, publicadas ao menos na internet por iniciativa do INEPAC. Porém, tanto por ocasião do ano novo de 2020, quanto pelo palco “temporariamente” permanente para espetáculos até o Carnaval, o fato é que a Justiça, embora instada pelo Ministério Público estadual, como por uma ação popular, nos dois casos, resolveu liberar geral.

No caso do espetáculo do palco da Favorita, cuja liminar solicitada em Ação Civil Pública pelo MPE foi indeferida, o fato da falta de autorização do órgão de preservação cultural sequer foi mencionado! O argumento básico foi o da segurança X a liberdade de reunião, com completo desprezo à observância das regras de preservação do patrimônio cultural. 

Desconhecimento? Ignorância? Não incorporação destes valores na órbita dos julgadores?

Enfim, passos são dados. Regras existem. Mas, a resistência é enorme. Mas, eu creio, um dia chegaremos lá.  Para isso, a transparência e o conhecimento são fundamentais. Assim, neste site, fazemos questão de mostrar que há soldados lutando, sempre, em muitos lugares. 

Um dia, este exército de Brancaleone irá obter muitas vitórias e a cultura irá mudar, aos poucos…

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1 COMENTÁRIO

  1. Excelente publicação, cara e saudosa Sonia Rabello.
    Sem falar que os sucessivos governos se aproveitam de uma urbanização feita há um século por Pereira Passos e desde então, somente na gestão de Carlos Lacerda algo que privilegiasse o espaço público tenha sido feito.
    Todos sabem, mas parece que os prefeitos e governadores não estão nem aí, para a criação de NOVOS ESPAÇOS PÚBLICOS, principalmente para privilegiar a necessidade humana por estes ambientes dada a explosão demográfica que o Rio de Janeiro sofreu.
    Para estes gestores, parece que se aproveitar do que está feito significa administrar uma cidade tão grande.
    Não à toa, o povo é “socado”, sem qualquer cerimônia, nos morros e encostas, desde o episódio do retorno dos soldados/escravos da Guerra de Canudos, quando foram “largados” no Morro da Providência, porque o presidente Prudente de Morais descumpriu sua promessa de oferecer-lhes moradia digna.
    Assim, entre presidentes, governadores e prefeitos relapsos e incompetentes, o Rio de Janeiro conta com mais de mil comunidades completamente sem urbanização e, obviamente, sem os seus espaços públicos.
    Desculpas de falta de verba, de pessoal, de equipamentos e até de legislações para a urbanização adequada não faltam, porém, autorizações, mediante propinas, é claro, para invasão de espaços públicos consagrados e raríssimos estão sempre sendo expedidos, não importa a quem vão incomodar.
    O povo que se exploda… Já dizia Justo Veríssimo…

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