Buraco do Lume: ágora, cenário de disputas, política e efervescência patrimonial

O especialista em patrimônio cultural Claudio Prado de Mello é contra a construção do espigão naquele local do Centro. Para ele, há inúmeros prédios e imóveis vazios que podem ser reaproveitados, e também em tempos de mudanças climáticas, destruir uma grande área verde é um erro. Ele também conta toda a história do espaço

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O tema que atualmente mais preocupa Urbanistas, Arquitetos e Preservacionistas ligados à instituição do Tombamento é definitivamente o chamado Buraco do Lume.  Mas afinal, o que o Buraco do Lume?

Ali, no coração do centro do Rio e basicamente na segunda mais movimentada encruzilhada do centro financeiro e histórico da cidade temos a confluência da Avenida Rio Branco com a Rua São Jose e a Avenida Nilo Peçanha. O local hoje recebe todo o trânsito da Rua da Carioca e da Av. Rio Branco e distribui o fluxo para o Castelo, Praça XV, aeroporto e áreas além.

No passado e antes do início do século XX essa confluência não existia fisicamente, pois aquele local fazia parte do Morro do Castelo que foi o núcleo da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro desde 1567. O morro foi demolido a partir de 1904 por interesse do Prefeito Pereira Passos para a abertura da Avenida Central e a partir de 1920, por ordem do prefeito Carlos Sampaio, para dar espaço a Exposição Internacional de 1922 e com justificativa que a cidade seria mais arejada com seu desmantelamento.

O que antes existia ali aonde hoje é o Buraco do Lume era a face mais íngreme do morro e na direção dos fundos da Fortaleza de São Sebastião que ficava acerca de 63 metros acima. Na franja do declive do morro havia os fundos do casario antigo da Rua São José. 

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Detalhe do mapa centro do RJ, 1808-1812. Observe as cotas de altitude com 2 cumes

Após a celebrada Exposição de 1922 a Prefeitura se encontrava afundada em dívidas por causa das inúmeras obras e o local da esplanada do Castelo ficou meio que abandonado e com vastas áreas cobertas por capins altos, daí chamarem de “o Capinzal“ . Mas em 1930, um projeto chamado Plano Agache pretendia dar uma solução a malha urbana da cidade que oscilava entre o plano orgânico da antiga cidade colonial e o plano ortogonal, iniciado com as grandes reformas de Pereira Passos em 1902. Para solucionar o impasse, surgiu a forma poligonal, como se mantém até hoje. 

Mas foi somente a partir de 1937 que efetivamente começaram a dar soluções para aquele segmento e decidiu-se pela demolição do casario antigo da Rua São Jose e com isso, a região acabou por se tornar uma confluência importante da cidade.

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Vazio do morro do Castelo arrasado (Augusto Malta 1929); Instituto Moreira Sales

Esse polígono, tal como um triângulo, passou por variados projetos de alinhamentos que depois de tempos eram alterados e o local serviu como terminal de ônibus, estacionamento clandestino, canteiro de obras de prédios próximos até que na década de 1960, o terreno foi destinado ao Banco do Estado da Guanabara (BEG) e depois parte do terreno foi vendida a um Grupo chamado LUME Empresarial, depois associado a outro chamado Halle. 

Na parte mais baixa do terreno foi então criada a Praça Melvin Jones (atual Mario Lago que teve a troca de nome efetivada, em 2009, no mandato de Eduardo Paes, quando a placa do logradouro com o novo nome foi finalmente instalada).  A praça mudou de forma algumas vezes e antes do anfiteatro tinha um interessante projeto de uma passarela de três acessos sobre um sobre um lago inferior redondo com papiros e plantas lacustres. 

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O Buraco do Lume, mostrando a cratera (Aerofoto, 1975 [Acervo PCRJ]) e antiga foto ( 1979) com o ajardinamento mostrando o lago e os passadiços ( Foto de Ruy Lopes )

Decidido a criar um grande edifício comercial de 55 andares, os Grupos Lume e Halles iniciaram as obras, abrindo um buraco gigantesco para construção das fundações até que no início dos anos 1970, os pagamentos não foram feitos e um grande imbróglio judicial se iniciou entre eles. Na sequência, as obras foram interrompidas e devido a grande cratera o local virou uma área alagada insalubre infestada de mosquitos e ratos e dessa forma o local passou a ser chamado jocosamente de “Buraco do Lume”.

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O Buraco do Lume, de outro ângulo, tomado pela água empoçada – O Globo, 21/07//1975 O Buraco do Lume, cercado de tapumes, e a praça urbanizada. – Jornal do Brasil, 14/08/1978.

Na sequência, diante dos Grupos falidos e entre as questões jurídicas e financeiras, a Prefeitura decidiu intervir e acabou com o buraco alagado, aterrando-o. E foi assim, que o terreno passou a ser ocupado com estacionamento e somente bem depois que passou a ter arvores plantadas e aos poucos virou área de lazer da população. 

Na parte de baixo, a Prefeitura criou a princípio um lago provido de passadiços e depois uma espécie de anfiteatro e com o tempo virou local de reuniões, manifestações políticas, samba de roda e socialização da população que sai do trabalho e vai tomar uma cerveja. Mais recentemente o local se tornou um reduto dos partidos de esquerda e aonde políticos fazem reuniões publicas com seus eleitores. As segundas as reuniões reúnem pessoas do PT e às sextas pessoas do PSOL. Mais recentemente, uma estatua de bronze representando a Vereadora assassinada Marielle Franco feita pelo escultor Eduardo Duvivier foi instalada pela Prefeitura, reforçando o local como reduto político da esquerda e como parte da polarização da política nacional, o local continua a ser local de contendas e disputas.

Um imbróglio envolvendo o conceito de tombamento

O que é Tombar? Em termos de Cultura, Tombar um bem cultural é estudar suas características e criar condições dele ser Preservado para o futuro e as gerações vindouras . Para se fazer um Tombamento de um Bem Cultural é necessário fazer estudos minuciosos, tomar medidas de tamanho e volume e documentar todos os detalhes de forma que caso ocorra algum infortúnio, o bem tombado possa ser reparado, restaurado ou até reconstruído.

No Brasil, muitas instituições do Tombamento tem sido utilizadas nos últimos anos para fins outros se não atender as demandas da Política. Minha experiência a frente de um Órgão de Patrimônio mostrou que se pode fazer muito pouco até que os órgãos atinjam autonomia e se tornem autarquias independentes de forma que seus Presidentes e Diretores não sejam pressionados por superiores do Executivo que não tem conhecimento e nem sensibilidade pelos assuntos do Patrimônio e estão interessados em votos dos eleitores ou outros benefícios menos nobres… 

E entre dificuldades de se trabalhar e impedimentos vindos de varias partes, surgiu o tombamento do Legislativo (e Judiciário) que por meio de Leis ou Decretos e sem estudos preliminares, sem verificação das condições dos monumentos, são publicados conforme a vontade dos políticos profissionais e sem previsões surgem e caem como balões de ar quente!  E nesse caso veremos de como a instituição do Tombamento necessita de cuidados e maior seriedade … Vejamos!

Nos anos 80, ao ver a Justiça reconhecer o direito do Grupo Lume ao terreno (gerando desconforto à população) a Prefeitura tentou ajudar, providenciando rapidamente o Tombamento da Praça pela Lei 1422 feito pelo Órgão Municipal de Tombamento, que  a partir de 2012 passou a se chamar IRPH (Instituto Rio Patrimônio da Humanidade fez o tombamento). 

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Mas, como o terreno do Buraco do Lume era uma propriedade particular e não foi desapropriado, criou-se o decreto complementar (6.159/1986) que atribuía o terreno como parte da ambiência da Praça e permitia apenas o uso do terreno para fins culturais.

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Tudo permaneceu apaziguado até que em 2019 o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, através do projeto de lei complementar 128/2019 tentou revogar os parâmetros vigentes para a área e acabou gerando uma reação por parte do Governo do Estado que fez o tombamento do Terreno contemplando o dito Buraco do Lume, mas não mencionando a Praça, o que torna a lei no mínimo questionável.

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Todavia, já em 31 de julho de 2020, o Projeto de Lei Complementar 174/2020, apelidada “Lei dos Puxadinhos” teve seu texto finalizado e revoga justamente o que restringia o uso do terreno, que previa uso exclusivamente cultural.

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Para agravar, em dezembro de 2022, o Deputado Rodrigo Amorim (PTB) apresentou o Projeto de Lei 6.515/22 que propôs a revogação da Lei Estadual 8.878/20 e o consequente destombamento do Buraco do Lume, que foi aprovado pela ALERJ e seguiu para o Governador para ser sancionada.

Por seu turno, em Janeiro de 2023, membros do Conselho Estadual de Tombamento da SECEC RJ, prepararam um dossiê de 23 páginas, encaminhado ao Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) contendo o pedido de tombamento emergencial do Buraco do Lume em caráter emergencial e do qual não temos noticias do andamento. 

Lembro que para um Tombamento Provisório (ou Emergencial) não é necessário a aprovação do Governador e tão somente a sua Ciência . Já para o Tombamento Definitivo, aí sim é necessária à devida aprovação do Governador e se for indeferido, o bem perde o Tombamento Provisório.

À guisa de conclusão podemos pensar os seguintes pontos :

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O Buraco do Lume e o Largo da Carioca dialogando
  1. Concordando com o Deputado Luiz Paulo (PSD), o local é um terreno único configurado como uma praça e não faz sentido desmembrar o terreno em dois.
  2. A área foi concebida dentro de um manejamento paisagístico do Plano Agache que concluiu por criar a Nilo Peçanha no Projeto de Alinhamento e estabeleceu uma forma poligonal àquela área e de certa forma dialoga com outro polígono que segue em frente no Largo da Carioca.  Esse conjunto se completa, da amplidão ao olhar e a vegetação da área do Buraco do Lume emoldura a finalização do segmento .
  3. A construção de um novo espigão naquela área contradiz as diretrizes dos tempos atuais nos quais as emissões de carbono contribuem para as mudanças climáticas e ameaçam o planeta. Ainda HOJE, em São Paulo, as vésperas da cidade completar 471 anos, uma chuva de meia hora inundou a cidade, penetrando no sistema subterrâneo de Metrô e causando danos irreparáveis à cidade. Nesse sentido precisamos pensar em áreas verdes, áreas de absorção de água. O bolsão de vegetação na área do Buraco do Lume deveria ser aumentado e a sensação térmica daquele segmento seria  sensivelmente menor nos dias mais quentes .
  4. O Centro do Rio passa por um momento crítico ! Ali do lado, na Rua México e Av. Graça Aranha temos uma INFINIDADE de lojas fechadas e edifícios esvaziados. O Centro do Rio não precisa de mais prédios para avolumar a parte edificada. Um novo prédio na região vai retirar o charme que o ponto tem, a visibilidade e a ambiência que os prédios existentes já mostram, sob pena de perder chances de sua “habitabilidade” . Ate porque, se o Projeto Reviver Centro pretende atenuar a gentrificação e trazer as famílias de volta ao espaço urbano central, essas famílias vão precisar de arvores e de terra a não apenas asfalto e espigões de concreto. 
  5. A Especulação Imobiliária não precisa se fazer presente nessa área ! Temos projetos de requalificação habitacional belíssimos acontecendo na Av. Presidente Vargas. O Porto Maravilha está repleto de áreas reconstruíveis e requalificáveis que podem recompor as áreas habitacionais sem prejuízo ao aproveitamento do espaço urbano e por certo, muitos outros terrenos poderão gerar incentivos econômicos para a região .
  6. É obvio que existe um  viés de política partidária nesse trecho especifico do centro da cidade e não sejamos hipócritas em negar isso. Mas precisamos lembrar que a área que é politicamente usada não é a área do litígio e sim na parte de baixo da praça aonde existe o anfiteatro e o fato de se construir mais um prédio nas imediações não vai apagar as manifestações políticas e nem vai dissipar os manifestantes. 

E para fechar, cabe sempre lembrar que uma Cidade, um Urbe , mais do que um conjunto de casas, de ruas, de meios fios e bancos de praças, é um quadro de vida de Sociedades e essas sociedades precisam de voz. 

Na Antiguidade Clássica, a Ágora (“assembleia”, “lugar de reunião”),  é um termo grego que significa a reunião de qualquer natureza, geralmente uma reunião de pessoas. A ágora parece ter sido uma parte essencial da constituição dos primeiros estados gregos.

No Rio de Janeiro existem poucas Ágoras, a Praça Mario Lago é uma, o anfiteatro dos  Arcos da Lapa é outra, a Cinelândia idem, as areias da Praia de Copacabana também conta! Não são muitas que existem, mas o que faz de um espaço publico uma Ágora não é uma calcada, um banco ou qualquer outra coisa física … o que faz de um local de uma cidade uma Ágora de verdade é as pessoas se sentirem ouvidas…  e mesmo eu, que me rotulo como de Centro-Direita considero que a Liberdade de se poder falar e de se poder ser ouvido não tem preço .

E por fim, mas não em ultimo lugar, lembrar que quando a equipe que fez a Candidatura da cidade do Rio de Janeiro como Paisagem Urbana da Humanidade perante a UNESCO deveria ter ampliado os limites de preservação de forma que áreas importantes como o Centro Histórico do Rio pudessem ter sido contemplados e essa hora ter-se-ia mais elementos para argumentar a preservação da Praça Mario Lago tal como ela esta construída e que preserva a historia da Cidade de pelo menos mais de 100 anos e isso já é alguma coisa.

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E pelo que vemos a História do Buraco do Lume vai continuar a mover as pessoas de forma apaixonada e visceral, alguns contra a sua preservação e outros a favor.

No meu ponto de vista, se existe direito do Grupo Lume sobre a propriedade privada, que o Poder Público (União, Estado ou Prefeitura)  adquira a área e preserve a Praça Mario Lago, ajardinando e embelezando criando na área um bolsão verde que humanizará ainda mais a região.

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Arqueólogo, Prof Mestre em História. Foi Diretor Geral do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), membro do Conselho Municipal de Cultura, Membro do Conselho Estadual de Tombamento (SECECRJ) e Presidente do Conselho Estadual de Tombamento do Estado do RJ. Atualmente é diretor do IPHARJ e membro do Conselho da Cidade – PMRJ.

2 COMENTÁRIOS

  1. Sou a favor do prédio comercial, mais empregos para quem precisa e menos risco de virar uma cabeça de porco ou virar uma surcusal da cracolândia.

  2. O povo vai perder um espaço público e 3 ou 4 pessoas vão ganhar dinheiro com esse espaço sem nunca se quer pisar lá.

    É isso…O dinheiro manda.

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