Centro Dom Vital: A Semana Santa de Machado de Assis

Na crônica publicada em 1894, Machado de Assis revive as liturgias da Semana Santa carioca e transforma memória e fé em literatura comovente e atemporal.

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Estamos em dias de Semana Santa. Do Domingo de Ramos até o Domingo de Páscoa, cristãos do mundo inteiro – católicos, ortodoxos, protestantes – celebram a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Outrora, a Semana Maior, ou Semana das Semanas, como também é chamada pela tradição, marcava a cidade do Rio de Janeiro por intensos atos devocionais públicos. Procissões, sermões e ofícios faziam com que a cidade carioca revivesse um pouco da via crucis e do Calvário. Hoje, muito circunscrito à realidade das paróquias, os ofícios e as procissões se perdem no meio da correria da grande cidade cada vez mais marcada pela secularização.

“A semana foi santa — mas não foi a semana santa que eu conheci, quando tinha a idade de mocinho nascido depois da guerra do Paraguai.” Assim começava machado de Assis uma de suas mais belas crônicas (audácia a minha; como se machado tivesse uma crônica feia que seja!), publicada em 1894. Sempre muito comedido no assunto religião, a ponto de ser tido quase que por arreligioso, não é isso que essa crônica nos apresenta. Nela, vemos o Bruxo do Cosme Velho com um ar quase que místico, deixando-se enlevar pelo sabor da liturgia e da fé, sem perder nada do seu olhar de observador arguto. Vejamos, por exemplo, esse belo parágrafo:

As semanas santas de outro tempo eram, antes de tudo, muito mais compridas. O Domingo de Ramos valia por três. As palmas que traziam das igrejas eram muito mais verdes que as de hoje, mais e melhor. Verdadeiramente já não há verde. O verde de hoje é um amarelo escuro. A segunda-feira e a terça-feira eram lentas, não longas; não sei se percebem a diferença. Quero dizer que eram tediosas, por serem vazias. Raiava, porém, a quarta-feira de trevas; era princípio de uma série de cerimônias, e de ofícios, de procissões, sermões de lágrimas, até o sábado de aleluia, em que a alegria reaparecia, e finalmente o Domingo de Páscoa que era a chave de ouro.

Imaginemos nós o que não devia ser o acompanhar os diversos ritos e devoções na Semana Santa carioca do final do séc. XIX. Talvez um Ofício de Trevas no Mosteiro de São Bento, ao som do cantochão dos monges; procissões a sair da velha Catedral de N. Sra. do Carmo, na Praça XV, e da Igreja de São Francisco de Paula, no Largo São Francisco, com sua Ordem terceira a carregar tochas, pálios e andores; sermões de lágrimas e de dores inflamadamente pregados do púlpito da Candelária ou no Santíssimo Sacramento da Av. Passos. Um outro tempo, onde para reunir multidões às ruas não era difícil, e a Igreja com suas celebrações ainda era um relevante ponto no roteiro social.

Mas se esse parágrafo da crônica machadiana não foge tanto do padrão já conhecido, os parágrafos finais mostram um Machado profundamente marcado pela realidade da fé. Deixemos mais uma vez que ele fale, com sua voz sonora e embargada pela suavidade e emoção transmitida pela liturgia:

[…] Nem sei se chegareis a entender o que sucedeu agora, indo ver o ofício da Paixão em uma igreja. Outrora, quando de todo o sermão da montanha eu só conhecia o padre-nosso, a impressão que recebia era mui particular, uma mistura de fé e de curiosidade, um gosto de ver as luzes, de ouvir os cantos, de mirar as alvas e as casulas, o hissope e o turíbulo. Entrei na igreja. [..] Soou o cantochão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me embalar pela música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a levaram de oeste a leste. Atrás dela foi o coração, tornado à simpleza antiga. E eu ressurgi, antes de Jesus. E Jesus apareceu-me antes de morto e ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galiléia, e, abrindo os lábios, disse-me que a sua palavra dá solução a tudo.

Percebe, leitor, a sensibilidade do nosso Machado em matéria litúrgica? Os sinais e os gestos da liturgia têm justamente essa finalidade: chamar os nossos sentidos para a realidade que não é sensível, mas espiritual. É por isso que o culto litúrgico é o Mistério Pascal: os ritos não só recordam algo acontecido no passado, mas tornam presente o mistério celebrado. É por isso que o velho Machado, indo ouvir um ofício de Semana Santa, pode com toda realidade dizer que estava ao lado de Jesus na Galileia… Mas vejamos ainda como se deu esse delicioso diálogo entre o Mestre que é Deus-Homem e o nosso mestre das letras brasileiras:

— Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva, e aí está o Eclesiastes que diz ter visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.
— Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. — Vede a injustiça do mundo. “Nem sempre o prêmio é dos que melhor correm, diz ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade.”
— Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.
— Mas é ainda o Eclesiastes que proclama haver justos, aos quais provêm males…
— Bem-aventurados os que são perseguidos por amor da justiça, porque deles é o reino do céu.

E assim por diante. A cada palavra de lástima respondia Jesus com uma palavra de esperança. Mas já então não era ele que me aparecia, era eu que estava na própria Galiléia, diante da montanha, ouvindo com o povo. E o sermão continuava. Bem-aventurados os pacíficos. Bem-aventurados os mansos…

Que Machado de Assis gostava muito do livro do Eclesiastes, isso já foi diversas vezes observado pelos críticos literários. Caía-lhe bem ao gosto o realismo quase pessimista desse livro sapiencial das Escrituras. Mas o que essa crônica traz de novidade é que machado percebeu, como muita doçura, que não há pessimismo que resista às palavras de esperança do Evangelho. Como gostaríamos que Machado continuasse a narrar esse encontro com Jesus na liturgia da Semana Santa. Mas, como diz Gustavo Corção, comentando justamente essa crônica, machado termina assim, “com aquele seu ar de quem não sabe que está dizendo coisas enormes.”

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