Ao afirmarmos o poder e a identidade mesma do evento literário, deparamo-nos diante de um fenômeno imensamente maior que aquele da escrita. A ato literário engloba uma realidade mais complexa que a simples comunicação humana. No âmbito literário, escrever é apropriar-se da realidade, seja em vista da sua comunicação, seja, em vista da sua transformação. A escrita literária remodela o “dito” (discurso) e a realidade.
O evento literário (quase me corrigindo) não depende exclusivamente da escrita, pois os “aedos” gregos não teriam difuso por séculos (a era ágrafa da Grécia arcaica) a estupenda epopeia de Homero, se isso dependesse do avanço da escrita na Grécia, que retornará muitos séculos depois, em Atenas. Neste caso, a “comunicação literária” (a literatura em sua função de rede) como evento apresentou-se englobado no conjunto das relações complexas societárias, como se pode explicar na Grécia ateniense do 6º séc. a.C., tal como se apresentam na arte (tragédia), na arquitetura, na educação (alfabetização e a Lei da cidade), no retorno da escrita, bem como no “boom” econômico de Atenas, com o desenvolvimento agrário, a criação de uma frota comercial e de guerra. E a coroa da literatura será a “nova” escrita filosófica que caracterizará a típica cultura ateniense nos sécs. V-VI a. C.
Pode-se dizer, neste modelo, que a literatura sinaliza a relevância máxima da produção literária em uma sociedade, com certa complexidade. A literatura pode ser vista como um especial sinalizador, um ato comunicativo com um alto desempenho social. Outras vezes, até, pode ser comparado à uma forma ‘substitutiva’ da realidade. A realidade, comunicada literariamente substitui o mero relato empírico de um narrador comum ou individual e assume um papel característico de “representação” mais profunda da realidade a que se refere.
Neste ponto, podemos estabelecer uma das muitas funções da literatura. Este fenômeno emerge quando uma forma social se avoluma de densidade, e da simples tribalidade, alcança significativos progressos, uma relevância social e econômica, um papel político relevante, inclusive, a ponto de se impor ou influenciar outras formas societárias no âmbito de sua influência. As ciências humanas e socais denominam como o “nascimento” de Civilizações, que estudadas criticamente, elucidam o entorno geográfico, político-econômico, militar e cultural de um determinado espaço e tempo, influenciados por sua potência.
A comunicação literária, de um lado, emerge em convergência com diversas decisões sociais, ligadas a determinados grupos sociais, que incluem forças sociais relevantes, como os sacerdotes, os aedos, os políticos, os agentes de educação social (a Paideia grega).
A literatura, por isso, ao estabelecer-se e ser como tal reconhecida em uma determinada sociedade, apoderou-se da “vox” coletiva, parece ser a “vox” do inconsciente coletivo, uma “vox populi”. A literatura pode ser determinada, à diferença de outras formas sociais de comunicação, pelo seu mecanismo “ficcional”, sua natureza estética (gera uma forma de reação social). A literatura é constituída permanente pelas escolhas de cânones sociais variáveis de sujeitos identitários, no percurso da história de uma forma social.
O Brasil do século XIX possui um cenário interessante, para estabelecer alguns parâmetros de observação das relações entre literatura (arte em geral) e representação social.
Muito antes do fim do séc. XIX, em 1822, com a Proclamação da Independência por parte da coroa local (D. Pedro I), de certa maneira as expressões artísticas com acento “nacionalista” ou mais de “independentismos” já se manifestavam em solo brasileiro, por parte de diversos grupos e classes artísticas, políticas e culturais. Talvez o Romantismo tivesse sido o palco mais eficaz para os “laboratórios estéticos” da poesia, da epopeia, do romance e de outras formas estéticas representativas, no Brasil.
As classes dirigentes do recém Brasil independente facultam às artes o poder de responder, neste novo contexto, à inquietante questão: afinal, que somos agora?
No fim do séc. XIX, na capital do novo império, o Rio de Janeiro, há uma efervescência de formas, grupos e criações literárias que buscaram entregar à esta atônita sociedade latino-americana (ex-colônia do Império lusitano ultramarino), em forma de delegação social, uma sua própria configuração, entre herança lusitana e novidade brasileira, mas caracterizada pela consciência de “tornar-se” Brasil, para além de Portugal.
Talvez o ano de 1922 tenha sido, em meio aos festejos do centenário da independência, um permanente ponto de referência, com a celebração paulistana da Semana de Arte Moderna, que depois irá repercutir sobre a identidade literária da cultura brasileira contemporânea.
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá,
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores
(Canção do Exílio, Gonçalves Dias)