Centro Dom Vital: uma literatura de inspiração católica?

Papini é dessa constelação de grandes escritores do séc. XX – alguns dos quais conversos, outros católicos de berço – que produziram o que há de melhor numa literatura onde a fé é o centro nevrálgico, ainda que não óbvio

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Alceu Amoroso Lima em seu escritório na antiga sede do Centro Dom Vital na Praça XV

Caminhando num desses dias quentes de janeiro pelo centro do Rio, fazendo a já costumeira parada nos livreiros que se estendem pela saída do metrô da Carioca até a av. Rio Branco, tive a grata alegria de encontrar um pequeno volume da coletânea de contos Palavras e sangue, do escritor italiano Giovanni Papini. Além da grandiosidade do autor, por si só um monumento da literatura italiana e universal, o pequeno volume de bolso tornava-se ainda mais robusto pela tradução, de ninguém menos que Mário Quintana, e pela introdução, assinada por Alceu Amoroso Lima. E chamou-me a atenção justamente uma afirmação do nosso Tristão de Athayde nessa introdução: no final da década de 1960 – quando saiu a edição – poucos falavam de Papini, enquanto em 1950, quando Alceu o visitou em Florença, ele era, segundo suas palavras, “talvez o mais universalmente conhecido dos escritores italianos, depois de Pirandello.”

Papini é dessa constelação de grandes escritores do séc. XX – alguns dos quais conversos, outros católicos de berço – que produziram o que há de melhor numa literatura onde a fé é o centro nevrálgico, ainda que não óbvio. Nessa lista entram nomes universais como Georges Bernanos, que viveu uma temporada no Brasil durante a Segunda Guerra; François Mauriac, laureado com o Nobel de Literatura em 1952; Paul Claudel, o dramaturgo e poeta; enfim, um lista considerável que ainda tem muitos nomes no Brasil, como os poetas Murilo Mendes e Jorge de Lima; o próprio Tristão de Athayde, Alceu Amoroso Lima; Gustavo Corção, autor de Lições de Abismo, seu único romance, traduzido em diversas línguas; D. Marcos Barbosa, poeta, dramaturgo e tradutor do Pequeno Príncipe (a quem já me referi nessa coluna, por sua amizade com Cecília Meireles); Antônio Carlos Villaça, o memorialista do inesquecível O nariz do morto.

A todos esse autores podemos, infelizmente, aplicar o que Alceu afirmou no já citado prefácio do livro de Papini: hoje, desses luminares da literatura, poucos falam. Fica assim, apagada uma importante página da história da literatura tanto universal quanto pátria: um dia, sobejou uma literatura que se arvorou de beber na fonte espiritual e cultural de dois milênios de cristianismo. Inserem-se numa linha que inclui, por exemplo, um Santo Agostinho, com suas Confissões, a primeira autobiografia de que se tem notícia; de um Dante Alighieri, que com sua Divina Comédia, inaugurando a língua italiana, cantou em versos o que a escolástica expressou em sumas e questões disputadas; um Chateaubriand, que com seu O gênio do cristianismo influenciou toda uma geração no romantismo que se seguiu.

Alguém poderia pensar que, pelo fato de serem esse autores comprometidos com a fé, a sua literatura fique prejudicada, escrava de certo dogmatismo, ou a serviço de um devocionismo. Nada mais equivocado. Não há nada de óbvio em obras como Tempo e eternidade, coletânea de poemas de Jorge de Lima e Murilo Mendes publicada em 1935; a realidade metafísica surge de forma inteligente e sagaz em Lições de Abismo, de Corção; Diário de um pároco de aldeia, premiado pela Academia Francesa, é um retrato das mais profundas questões do coração humano sob a pena de Bernanos; o teatro de Paul Cladeul, com obras como O anúncio feito a Maria, refletem todo uma meditação acerca da natureza humana. Mesmo obras onde a fé aparece de forma mais explícita, como em Poemas do Reino de Deus, de D. Marcos Barbosa, não falta a inteligência de relacionar essa fé com a concretude do mundo e a infinitude de uma vida: “Varredor que varres a rua,/ tu varres o Reino de Deus./ Não foi nesta rua que o Cristo,/ sangrado, passou?”.

Mas nem tudo são esquecimentos. Mesmo hoje surgem alguns sinais de que é possível ainda falar de uma literatura de inspiração católica. Pensemos na nossa Adélia Prado, que recebeu no ano passado o Prêmio Camões, o maior da língua portuguesa, cuja poesia transborda de metafísica. Pensemos também no norueguês Jon Fosse, ganhador do Nobel e Literatura em 2023, a quem o Papa Francisco saudou em carta por “sua capacidade de evocar a graça, a paz e o amor de Deus Todo-Poderoso no nosso mundo, tantas vezes obscurecido.” Convertido ao catolicismo em 2013, Fosse já disse entender sua escrita como uma forma de oração.

Em julho do ano passado, o Papa escreveu uma bela Carta sobre o papel da literatura na educação. “De uma forma ou de outra”, dirá o Santo Padre, “a literatura tem a ver com o que cada um de nós deseja da vida, uma vez que entra numa relação íntima com a nossa existência concreta, com suas tensões essenciais, com seus desejos e os seus significados.” Em nossos dias, onde essas “tensões essenciais” parecem tão prementes, há de se renovar o apelo para que muitos corações tomados pela sensibilidade literária e pela fé possam expressar isso como testemunho público. Conheço muitos jovens de precioso talento para a prosa e a poesia com essas características. Falta, porém, maior coragem e maior apoio. E é isso que pretende ser também o Centro Dom Vital, como sempre o foi. Um espaço onde surjam e se desenvolvam os literatos inspirados na beleza da fé.

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