Centros Históricos: O Brasil Precisa Parar de Tratar Tesouros Urbanos como Peso Morto

Relatório da CBIC mostra como o Brasil negligencia a reocupação de centros urbanos, apesar de infraestrutura pronta, localização privilegiada e potencial de sustentabilidade.

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Ao ler o instigante artigo do arquiteto e urbanista Vicente Loureiro, intitulado “O futuro das cidades está no centro”, publicado no dia 25 de abril nas edições do Nova Iguaçu Online, Correio da Manhã e Correio da Lavoura, deparei-me com a referência a um estudo que chamou muito a minha atenção: a publicação “Reocupação de centros urbanos degradados”, lançada pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção – CBIC em outubro de 2024.

Movido pela relevância do tema e pelo impacto que ele pode — e deve — ter nas políticas urbanas da nossa cidade, especialmente no que diz respeito à recuperação de seu centro, resolvi procurar e ler o documento completo.

Ao estudá-lo com atenção, considerei oportuno compartilhar com meus leitores os principais comentários, propostas e conclusões dessa publicação que, em minha visão, merece ampla divulgação e debate público.

O estudo está disponível na íntegra no seguinte sítio:

https://jcmestrategia.com.br/wp-content/uploads/2024/11/Reocupacao-de-Centros-Urbanos-Degradados.pdf

Foi a partir dessa leitura que nasceu este artigo.

O Brasil está desperdiçando o que tem de mais bem localizado

Em um país que convive com crescimento urbano caótico e deslocamentos infernais, as áreas centrais — onde se concentram transporte público, prédios históricos, infraestrutura consolidada e memória coletiva — deveriam ser prioridade. No entanto, o que se vê é um abandono generalizado. A CBIC, entidade que representa a indústria da construção civil, levanta a bandeira: reocupar centros urbanos é mais do que uma medida estética — é um projeto de cidade justa, eficiente e sustentável.

A insegurança e o estigma ainda afastam moradores e investidores

Um dos obstáculos mais citados por gestores públicos e empresários é a insegurança. E não apenas a criminalidade em si, mas a percepção de insegurança — alimentada pelo esvaziamento, pelo fechamento do comércio à noite e pela ausência de moradores. A presença crescente de pessoas em situação de rua, aliada à falta de políticas públicas articuladas, contribui para o estigma.

 Retrofits esbarram em heranças jurídicas e técnicas do passado

Antes de prosseguir, vale explicar que o retrofit, conceito central na reocupação dos centros urbanos, consiste na modernização e atualização de edificações antigas, preservando sua estrutura e valor histórico, mas adaptando-as às exigências contemporâneas de uso, segurança e sustentabilidade. Diferentemente da simples reforma comum, que apenas corrige ou substitui elementos, e da restauração, que busca reproduzir fielmente o aspecto original da construção, o retrofit equilibra preservação e inovação, permitindo que o imóvel antigo se torne funcional e relevante para os dias atuais.

Reformar prédios antigos — muitos tombados, em disputa judicial ou mal documentados — é tarefa para corajosos. O processo de licenciamento é lento, a legislação é fragmentada, e há enorme escassez de mão de obra especializada. Em Salvador, a Prima Empreendimentos levou mais de dez anos entre a compra e a operação do Hotel Fasano, enfrentando entraves de financiamento, exigências de órgãos de patrimônio e o descompasso entre valor de mercado e avaliação bancária.

O financiamento ainda é tímido e mal adaptado à realidade do retrofit

Pequenas e médias incorporadoras, que seriam ideais para atuar no retrofit urbano, não conseguem acessar crédito com facilidade. Bancos resistem a financiar reformas de prédios antigos, especialmente se forem tombados. Marcelo Falcão, fundador da Somauma em São Paulo, diz que ainda há preconceito contra o centro: “muitos investidores evitam a região por medo, sem ver o que de fato está mudando”. Além disso, os ciclos do setor imobiliário são longos — de 5 a 6 anos — e exigem estabilidade e visão de Estado, não apenas de governo.

Sem diversidade de uso, o centro morre às 6 da tarde

Durante muito tempo, o centro das cidades foi encarado como zona exclusivamente comercial. Isso gerou espaços pulsantes no horário comercial, mas desertos e inseguros no período noturno e aos fins de semana. O novo modelo urbano precisa permitir — e estimular — o uso misto: moradia, comércio, cultura, lazer, serviços públicos e mobilidade. No Rio, o programa Reviver Cultural criou zonas temáticas como a Rua da Cerveja, para atrair público e empreendedores criativos.

Os exemplos positivos

O Brasil já tem bons exemplos — mas ainda são exceções

A boa notícia é que várias cidades começaram a se mexer. O Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Belo Horizonte, Salvador e São Luís vêm mostrando caminhos possíveis para a reocupação dos centros urbanos, embora cada uma enfrente seus próprios desafios estruturais.

Rio de Janeiro – um novo bairro no coração da cidade

O Reviver Centro, programa lançado pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 2021, representa um dos esforços mais organizados para revitalizar uma área central no Brasil. O objetivo é transformar a região — tradicionalmente voltada para comércio e serviços — em um espaço de moradia, cultura, lazer e vida noturna.

Entre as principais ações estão:

Operação Interligada: mecanismo que permite aos incorporadores transferirem parte do potencial construtivo para zonas de metro quadrado mais caro, equilibrando riscos de investimento.

Incentivos fiscais: redução de ISS, ITBI e estímulos à produção de moradias.

Flexibilização de uso: imóveis comerciais passaram a aceitar escolas, habitações e atividades culturais.

Reviver Cultural: revitalização de ruas como a Rua da Carioca, que se tornou a Rua da Cerveja.

Meta de fixação de população: a expectativa é atrair 20 mil moradores até 2030, aproveitando a infraestrutura existente como as cinco estações de metrô, o Aeroporto Santos Dumont e o Terminal Novo Rio.

O impacto é visível: cerca de 4.000 novas unidades foram licenciadas no Centro entre 2021 e 2024. Empreendimentos como o residencial Bueno, no Saara, venderam 100% das unidades em poucas horas, mostrando a forte demanda por habitação no centro do Rio.

Em tempo. Sobre as operações interligadas, eu gostaria de registrar uma reflexão que me parece importante, ainda que o tema não seja tratado no estudo da CBIC. Trata-se de um instrumento previsto no programa Reviver Centro, que permite que incorporadores utilizem o potencial construtivo gerado por empreendimentos na região central em outras áreas da cidade — em especial, nas zonas mais valorizadas, como a Zona Sul. À primeira vista, parece uma estratégia engenhosa para atrair investimentos para o Centro. Mas, na prática, ela tem sido alvo de críticas por potencialmente favorecer o adensamento excessivo em regiões já saturadas, enquanto o Centro continua enfrentando esvaziamento e abandono.

Segundo esses críticos, o mecanismo acaba funcionando como uma espécie de moeda de troca: o empreendedor ganha incentivo para construir no Centro, mas aplica o bônus construtivo em bairros como Ipanema, Botafogo ou Leblon — onde o metro quadrado vale muito mais. Com isso, a política urbana corre o risco de reforçar os desequilíbrios históricos do Rio de Janeiro: a cidade continua expandindo sua densidade nos mesmos pontos de sempre, sem conseguir reverter o esvaziamento das áreas centrais. O que deveria ser um instrumento de reequilíbrio urbano, acaba, paradoxalmente, perpetuando a lógica que empurrou o Centro para a decadência. É uma distorção que precisa ser debatida com mais seriedade.

São Paulo – infraestrutura, incentivos e ambição

O Requalifica Centro, da Prefeitura de São Paulo, é um dos mais robustos programas de requalificação do Brasil. Lançado em 2021, ele pretende levar 220 mil novos moradores ao Centro em até dez anos.

As principais ações são:

Isenção de IPTU por cinco anos para imóveis reformados.

Redução do ISS para serviços ligados ao retrofit.

Apoio à habitação social, incluindo fundo perdido de até 25% do custo de reformas.

Programa “Pode Entrar”: aquisição de imóveis novos pela Prefeitura para famílias de até seis salários-mínimos.

Organização interna: criação do comitê Todos pelo Centro, integrando Casa Civil, Fazenda, Urbanismo, Segurança e SP Urbanismo.

Além disso, houve investimentos em segurança com ampliação de câmeras (Smart Sampa) e apoio à revitalização comercial, que resultou em abertura de novos negócios no Centro.

Recife – governança integrada e renovação cultural

Recife criou em 2021 o Gabinete do Centro, estrutura dedicada à revitalização de áreas como o Bairro do Recife, Santo Antônio, São José e Boa Vista. O programa Recentro articula ações em diversas frentes:

Incentivos fiscais: redução de IPTU, ISS e ITBI para novos projetos e retrofits.

Facilidade de licenciamento: equipe dedicada para aprovar projetos no Centro.

Reocupação cultural e educacional: instalação do novo campus do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco – IFPE em edifícios históricos.

Projetos de coliving: estímulo à moradia compartilhada como alternativa moderna para jovens e trabalhadores do Porto Digital.

Há também obras de requalificação urbana, como a restauração do Mercado São José e o parque de esculturas Francisco Brennand. Recife demonstra que a reocupação não é apenas habitacional: é também cultural, educacional e econômica.

Belo Horizonte – pioneirismo no retrofit residencial

Belo Horizonte já trabalhava com a ideia de reocupar o Centro desde o Plano Diretor de 1996. A Construtora Diniz Camargos, por exemplo, realizou projetos de conversão de edifícios comerciais em residenciais como:

Edifício Chiquito Lopes: antigo prédio corporativo, transformado em apartamentos de um e dois quartos.

Excelsior Residence: antigo Hotel Excelsior, que agora abriga moradias e uma escola profissionalizante para jovens carentes.

Dificuldades enfrentadas:

Falta de incentivos fiscais para retrofit.

Longa demora na aprovação dos projetos.

Falta de linhas de crédito específicas para retrofit habitacional.

Ainda assim, Belo Horizonte consolidou o conceito de cidade compacta e de 15 minutos, favorecendo a mobilidade a pé e a integração entre moradia, lazer e trabalho.

Salvador – o luxo como ponte para a revitalização

Em Salvador, o retrofit do prédio do antigo jornal A Tarde resultou no Hotel Fasano Salvador, símbolo de como a iniciativa privada pode puxar a transformação de centros históricos.

O processo foi difícil:

Negociação de licenças com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN levou anos.

Dificuldade de financiamento bancário.

Necessidade de preservar a fachada histórica e adaptar o prédio ao padrão internacional de hotelaria de luxo.

Apesar das barreiras, a inauguração do hotel impulsionou novos investimentos em imóveis vizinhos e reforçou a vocação turística do Centro Histórico.

São Luís – o desafio da escala monumental

O Centro Histórico de São Luís guarda milhares de imóveis coloniais tombados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, muitos de proporções gigantescas (1.000 m² a 3.000 m²). Os desafios são imensos:

Alto custo de retrofit, inacessível para pequenos investidores.

Falta de regularização fundiária.

Dificuldades jurídicas na transmissão de propriedades.

Mesmo assim, a cidade aposta na combinação de incentivos fiscais, programas públicos e parcerias para dar nova vida ao seu riquíssimo patrimônio histórico, que hoje sofre com o esvaziamento e a degradação.

Outros movimentos em curso

Movimentações pontuais em outras cidades brasileiras

Além dos exemplos mais detalhados de Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador, Belo Horizonte e São Luís, o estudo da CBIC também registra que outros municípios começam a se movimentar em direção à reocupação dos seus centros urbanos, embora ainda de forma mais inicial ou localizada.

Porto Alegre – Revitalização do Cais Mauá

Na capital gaúcha, o documento cita que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES já discute projetos de revitalização urbana envolvendo o Cais Mauá, uma área estratégica na margem do Guaíba. A iniciativa busca atrair investimentos privados para transformar antigos armazéns e espaços degradados em polos de convivência, cultura, comércio e serviços, nos moldes do que se observa em intervenções de retrofit e reocupação.

Campinas e Sorocaba – Estímulo à Requalificação dos Centros

Em Campinas e Sorocaba, ambas cidades do interior paulista, o documento aponta que existem discussões sobre parcerias para estimular a requalificação dos centros históricos. Embora ainda não estejam consolidadas em programas amplos como o Reviver Centro ou o Requalifica Centro, essas iniciativas mostram que a preocupação com a ocupação qualificada dos centros urbanos começa a se espalhar para além das capitais.

Importante observar que essas três referências são feitas no estudo de forma breve, como sinalização de tendências e oportunidades, sem detalhamento de ações ou políticas públicas concretas implementadas até o momento 

Oportunidades e riscos

O que ainda bloqueia a transformação

Apesar dos bons exemplos, os obstáculos persistem: ausência de financiamento adequado, entraves legais, dificuldade de articulação interinstitucional, baixa densidade populacional, imóveis desocupados, insegurança (ainda que mais percebida do que real) e pessoas em situação de rua sem políticas públicas integradas. Além disso, a legislação atual muitas vezes ignora necessidades como acessibilidade, ventilação e uso misto das edificações.

Por que reocupar é vantajoso para todos

A CBIC aponta que investir nos centros não é custo — é receita futura. Imóveis abandonados não geram impostos, consomem recursos públicos e fomentam a degradação. Já centros vivos movimentam comércio, turismo, serviços, arrecadação e cidadania. O modelo brasileiro ainda é tímido perto de países como a Holanda, onde 80% do mercado imobiliário é baseado em retrofit. Mas já se percebe um movimento de virada, impulsionado por diálogo entre poder público e iniciativa privada.

Conclusão do documento sob análise: o centro não está morto — ele só está esperando coragem

O centro não morreu. Foi empurrado para a irrelevância por falta de visão, de política pública consistente e de vontade de enfrentar a burocracia. Ele possui tudo que uma cidade moderna precisa: infraestrutura, transporte, localização, história e identidade. Mas carece de uma atuação firme do poder público — com estímulos claros, segurança jurídica e urbanismo inclusivo. A reocupação dos centros é a chave para cidades mais sustentáveis, humanas e inteligentes. Basta que se entenda: não é o centro que tem que se adaptar à cidade. É a cidade que precisa reconquistar o centro.

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