CRÍTICA: “O AGENTE DUPLO” (CHILE, 2020)

Documentário ou ficção, o mais importante é o fato que Maite Alberdi coloca sob os holofotes a maneira como tratamos nossos idosos. Durante todo o trajeto fílmico, a única pessoa a receber visitas é Sérgio, justo quem não tinha um motivo real para estar ali

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Existem pelo menos dois momentos da vida em que dependemos do zelo dos outros: a infância e a terceira idade. No primeiro, somos zelados por nossos pais. Ao envelhecermos, os papéis se invertem. São os filhos que zelam por seus progenitores. Enxergo essa inversão na minha família. Meu avô de 96 anos, que sempre se orgulhou de sua condição patriarcal, hoje, é uma pessoa inteiramente dependente. Só que em algumas ocasiões, seja por negligência ou por falta de condições, aqueles que nos deram amor são colocados em uma dessas casas de repouso. Nessa hora, é preciso ter muito cuidado ao escolher o local. Qualquer carioca com mais de 40 anos é capaz de se lembrar da Clínica Santa Genoveva, instituição do Rio de Janeiro que, em 1996, foi denunciada por maus tratos que levaram idosos à morte. Esse cuidado é o ponto de partida do longa “O Agente Duplo”, dirigido pela cineasta Maite Alberdi.

Apesar de classificado como um documentário, o filme, candidato do Chile ao Oscar 2021, é uma dessas obras, tão em voga ultimamente, em que as fronteiras entre a realidade e a ficção são cada vez mais tênues. Sérgio, um senhor octogenário que ficou viúvo há pouquíssimo tempo, comparece a uma entrevista de emprego. O anúncio, publicado na sessão de classificados de um periódico qualquer, não é claro. Diz apenas que a vaga em questão é destinada a homens com idade entre 80 e 90 anos. Já na agência de empregos, na verdade uma agência de detetives, o entrevistador, o sisudo Rômulo, explica que uma cliente deseja saber se sua mãe está sendo bem tratada na casa de repouso onde vive atualmente. E como fazer isso sem chamar a atenção? A ideia é simples: plantar um espião dentro da instituição com o objetivo de anotar, filmar e prestar relatórios diários sobre a rotina do lugar.   

Desde o princípio, fica muito claro para os espectadores que Sérgio acredita em sua missão e está entusiasmado com ela. Desde o falecimento de sua esposa, a rotina do octogenário consiste em passeios pelas ruas e pelos parques onde desfruta da companhia dos pássaros. Quando quer mudar de ares, vai até o shopping-center mais próximo de seu apartamento. Com os três filhos criados, se sente solitário. Acontece que se sentir solitário é uma coisa, ser abandonado é outra completamente diferente. A filha do idoso entra em cena preocupada com aspectos como, por exemplo, se poderá visitar o pai durante o período – três meses – que este estiver fora. Além disso, existe uma questão jurídica importante: O que poderá acontecer caso alguém descubra a verdadeira razão da presença de Sérgio no asilo? Logo, ela também acredita na missão dele. E nós? No que nós realmente acreditamos?         

Eu passei o tempo todo – 1h24min – em dúvida em relação a natureza do conteúdo do longa-metragem. Em uma das cenas iniciais, enxergamos a cineasta Maite Alberdi agachada, junto de uma câmera, atrás de Rômulo. A simples aparição dela, neste breve instante, serve para embaralhar os fatos. Seria o entrevistador proprietário de uma agência de detetives ou um ator escalado para desempenhar um papel? Já dentro da casa de repouso, Sérgio encontra aquela que seria a mãe da cliente de seu contratante. As informações que lhe foram passadas conferem e isso parece corroborar para a autenticidade da história. Mas será que não lhe passaram os dados de uma interna qualquer? Se em “Collective”, película abordada na coluna passada, as fronteiras entre a realidade e a ficção são mascaradas por fatos absurdos, aqui, o mascaramento se dá por meio de escolhas da direção.    

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Documentário ou ficção, o mais importante é o fato que Maite Alberdi coloca sob os holofotes a maneira como tratamos nossos idosos. Durante todo o trajeto fílmico, a única pessoa a receber visitas é Sérgio, justo quem não tinha um motivo real para estar ali. Uma vez dentro da casa, a atuação do protagonista se ramifica, não se limita a cumprir a missão para a qual foi contratado. Sua entrega à rotina do lugar é tocante. Ele não negligencia o carinho ofertado por uma das internas e se compadece quando outra lhe diz que há muito tempo não encontra seus familiares. Para aquelas senhorinhas, Sérgio está muito mais para Sir Galahad, um cavaleiro de armadura branca que nos faz pensar em como cuidar corretamente da terceira idade, do que para um James Bond provecto. Ao término do filme, me peguei matutando: muitos asilos e casas de repouso do Rio de Janeiro podem estar precisando de cavaleiros assim.

Desliguem os celulares e boa diversão. 

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