Crônica do Cariello – A bailarina

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Foto: Andreas Surya

Logo cedo, a faxineira conta das ameaças da milícia a seu filho, que se viu obrigado a fechar o pequeno negócio que mantinha, no bairro distante onde vivem. E relata a rotina de desconfiança e medo e violência e silêncio imposta por essa milícia, que agora cobra pedágio do seu amigo taxista, com quem ela vem trabalhar na Zona Sul todos os dias. 

Na tela do celular, mensagens e informações trazem notícias dos acontecimentos mais recentes, de treta e tiro e desamparo e desespero, dessas coisas que passaram a ser normais noticiar. E atestam um pouco mais da nova realidade do país, que de tão insana parece distópica, mas é muito verídica. 

Enquanto passo o café na cozinha, o podcast em francês anuncia que a situação na Europa não anda boa e as expectativas para o resto do mundo também são desanimadoras. E traz novidades da loucura generalizada de intimidação e provocação e disputa e guerra que está acontecendo em toda parte.

Com tudo isso na cabeça, desço para a rua da vila onde moro. Fecho a porta da casa, respiro fundo e acerto o passo. Mas interrompo a ação ao ver, ao longe, uma criança e um senhor, talvez seu avô, abrirem o portão da vila. A menina está vestida de bailarina, é certamente aluna da escola de dança que funciona na última casa do conjunto. 

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Ela solta a mão do avô e se põe a saltar no caminho entre o portão e a escola, exibindo seus jetés e pliés e coupés e balancés, cheios de graça e leveza. Paro tudo para observar a garota, que passa por mim piruetando, toda de rosa, enchendo a rua e a manhã de poesia. 

Continuo meu trajeto, fecho o portão da vila e ganho a rua cheia de carro e buzina e gente e pressa. Passo em frente ao bar e vejo na televisão a notícia da mais nova barbaridade do momento. Os dois clientes matinais maldizem o governante com todos os insultos dos quais se lembram. 

Recuo alguns passos, estico o pescoço e dou uma última olhada na vila. Vejo a pequena bailarina entrar na escola, enquanto seu sossegado avô ainda não chegou ao meio do caminho. Coloco os fones, escolho um dos arabesques de Debussy e saio para o dia, com um sorriso no rosto, apesar de vocês. 

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