Crônica do Cariello: Mate em garrafa de Coca na geladeira que dava choque

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Na casa dos meu avós maternos sempre tinha mate em garrafa de Coca na geladeira que dava choque. Eu só me lembrava disso quando entrava na cozinha sedento e ainda molhado da piscina e abria a porta da velha geladeira. O primeiro choque era a descarga elétrica do eletrodoméstico enferrujado, que sabe se lá como nunca matou ninguém. O segundo, ainda pior, era abrir uma garrafa de vidro de Coca-Cola, encher um grande copo e descobrir no primeiro gole que ela havia sido preenchida com mate caseiro. E sem açúcar.

Não tinha muito refrigerante e sorvete na casa dos meus avós maternos (ao contrário dos paternos, que colaboraram com a alegria do doutor Nicodemos, o dentista da família). Tudo lá era dietético, que na época não tinha gosto de nada, contrariamente a hoje, quando já sabemos ser ruim. Minha avó era diabética e a única garrafa de Coca verdadeira ficava guardada para garantir a ela uma dose de glicose de emergência, necessária com certa regularidade.

Mas cachorro tinha, e muito, para a alegria dos netos. No mínimo uns quatro. E às vezes passava de dez, quando uma das cadelas dava cria. E tinha passarinho também, canário preso em gaiola, mas meu avô acabou doando para um viveiro, não sei se por cansaço ou piedade. Eu preferiria que tivessem sido soltos.

Futebol embaixo da mangueira do jardim, amora comida no próprio pé, toda a coleção de livros do Monteiro Lobato, revistas proibidas para menores cujo esconderijo descobri, tudo isso tinha, e ainda ópera no volume máximo no quarto, televisão ligada o dia inteiro na sala, rádio tocando os sucessos da FM na cozinha e uma gritaria do meu avô e da minha avó por todos os cômodos, porque a casa era enorme e os dois não ouviam muito bem.

Mas nem tudo ali era lúdico. Eu morria de medo de duas coisas: da madrugada, a mais escura que me lembro, e de uma antiga roca de fiar, na qual eu não tocava de jeito nenhum, com receio de espetar meu dedo e dormir cem anos. Na roca nem tinha agulha, mas eu preferia não arriscar, pois havia magia naquela casa, talvez levada pela vidente que vivia por lá, uma cartomante amiga da minha avó, da qual grande parte da família era cliente.

Tinha também um piano meio desafinado, no qual arrisquei minhas primeiras melodias (hoje esse piano vive na minha casa, mudou de endereço mas continua meio desafinado). E um violino antigo, que foi do bisavô da minha mãe ou do tio de não sei quem, e não me recordo de ter visto fora da caixa, eternamente pendurada na parede do quarto onde meu avô guardava sua monumental coleção de discos de música clássica. Tantos anos depois da partida dos meus avós, às vezes acontece de me pegar pensando neles e na infância do seu neto mais velho. Eu, no caso. Essas lembranças têm um sabor para sempre marcado na minha memória, de mate sem açúcar em garrafa de Coca, agora delicioso no paladar das minhas recordações. Em momentos assim, até da geladeira que dava choque eu sinto saudade.

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