Andando pelas ruas do Rio de Janeiro nos dias de Carnaval, eu contei cinco pares de tênis ou sapatos abandonados. E apesar da sujeira e de alguns furos, todos pareciam que ainda aguentariam pular mais um pouco.
Pedaços de fantasias, perdi as contas de quantos vi por becos, ruas e avenidas. “Fantasia boa é a que se perde por aí”, pensei. Eu mesmo perdi os óculos da minha já batida roupa em referência ao personagem Wally, da série de livros “Onde está Wally?”. Onde foram parar os óculos do meu Wally? Ninguém viu, achou.
Muita coisa se perde e se acha num bom Carnaval. É território livre para permissões. Mas tem que ser numa boa, sem pressão, sem controle, sem mapas. É deixar acontecer ou não acontecer.
A clássica música cantada por Daniela Mercury, que pede que a fantasia seja eterna, fala do viver e festejar. Fantasiar é criar uma nova vida, mesmo que em apenas quatro dias, mesmo que parte dela fique pelo caminho.
O Carnaval é a verdade que muita gente não sustena viver ou não quer aceitar para si e para os outros. “Ah, mas a cidade fica suja, muita gente, muito caos”. Por isso que é bom! São nossos institos mais primitivos (como diria o outro) puxando o bloco da nossa existência.
Minhas primeiras memórias de Carnaval são de quando eu ainda era bem criança, no bairro de Curicica. Barraquinhas vendendo batidas coloridas, turmas de bate-bolas, grupos vestidos de indígenas com roupas brilhosas, muita gente, barulho, me sujava todo de espuma e brincava com confete. Eu voltava para casa e demorava a dormir com aquele caos na memória. Eu gostava. Felicidade era o que eu sentia.
Nessa época, meu amigos ganharam roupas de bate-bola. Minha mãe perguntou se eu queria. Eu disse que não. Falei que preferia me vestir de índio. Não tive essa fantasia. Foi a primeira que se perdeu. De lá para cá, eu segui deixando pedaços de mim pelo caminho dos becos, ruas e avenidas dessa cidade que se suja para brincar feliz.
O artigo, como crônica poética, é muito bom, e incita em nós uma reação emotiva que nos conecta à memórias da infância/juventude, que são (quase) sempre doces. Porém, há algo que me incomoda, e não sei se é porque eu que sou muito ranzinza, ou se algo de fato está fora do aceitável: por que naturalizamos tanto o desperdício de coisas e o descarte descuidado daquilo que não nos é mais útil?
Imagine que você é convidado para uma festa na casa de alguém. Você vai com sua roupa e algumas peças extras caso precise trocá-las, dado que a festa promete ser “um arraso”. Você leva também algumas comidinhas em embalagens descartáveis para contribuir com a comilança do evento. Pois bem, desempacotada e consumida a comidinha, você descarta, em qualquer lugar da casa e sem o mínimo cuidado, as embalagens que não precisa mais. Depois de horas de dança e êxtase físico, você descarta, em qualquer lugar da casa e sem o mínimo cuidado, sandálias, roupas de baixo, e outros itens, simplesmente por estarem usados demais. Tal atitude pode ser considerada respeitosa em relação ao dono da casa? Você leva em consideração o trabalho que alguém terá para organizar toda essa bagunça? O descarte descuidado desses itens é inevitável? Ou cada um poderia ser um pouco mais solidário em relação ao dono do local e a quem terá o trabalho de arrumar e limpar tudo?
Me parece que o mesmo vale para a cidade, que é uma extensão, para o público, do espaço privado. Sendo o espaço público pertencente a todos, sem exceção, não seria respeitoso tratá-lo como se pertencesse a cada um de nós? Na prática, pertence. Tratar o espaço público com zelo é sinal de que você entende que este espaço pertence a todos, e todos merecem respeito e cuidado, até porque você também usufrui deste espaço. É sinal também que você tem plena consciência de que limpar e organizar este espaço é um trabalho árduo e exaustivo, portanto o esforço para torná-lo menos árduo e cansativo é sinal de consideração e solidariedade a quem faz esse trabalho.
A folia, a alegria, o compartilhamento do espaço público, tudo isso deve ser incentivado. Mas enxergar o espaço público como um local natural onde descartamos aquilo que não nos serve mais me parece uma falta de noção do que nos causa transtorno. Se não temos essa noção, estaremos sempre causando transtornos uns aos outros.
É urgente que repensemos nossa relação com o espaço público e como nossas pequenas atitudes têm impacto sobre ele e sobre a vida de quem dele faz uso. Isso vale para lixo, para uso de veículos, para barulho, enfim para tudo que afeta o público.