Damares: Nem monstro, nem líder – apenas uma pessoa mediana

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Ao escrever este texto, mais um escândalo explode envolvendo a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. A pastora, famosa pelos factoides relacionados a suas inúmeras falas passadas em congressos de caráter religioso, agora é acusada pela revista Época como cúmplice no sequestro daquela que é intitulada sua filha, mas que nunca foi formalmente adotada. A ministra, famosa por sua obsessão com a suposta ideologia de gênero, parece chocar a imprensa, os movimentos sociais e as elites brasileiras acostumadas a tolerar a diversidade (sem, contudo, realmente incluí-la). Damares, para essa gente, é um rasgo de loucura. Ousa dizer coisas que muita gente até pensa no privado, mas não caem bem na sala de estar, nos jantares e nos petits comités. Entretanto, Damares é muito mais mediana, muito mais corriqueira, que se pensa.



Quem já circulou pelo meio evangélico fundamentalista sabe do que estou falando. Damares representa uma linha de pensamento que se assenta numa longa tradição de autoexclusão da sociedade (e de suas evoluções como um todo). Conheço inúmeros relatos de professorinhas de EBD (escola bíblica dominical) que ensinavam seus alunos a decorar as questões de prova relacionadas à teoria da evolução e respondê-las para tirar nota boa, mas já sabendo que se tratava de uma grande mentira. Os espetáculos televisionados por igrejas neopentecostais, nos quais pessoas têm espíritos malignos “expulsos” pelo fato de serem homossexuais ou advindas de religiões espiritualistas ou de matriz africana acontecem, de maneira muito mais discreta, em inúmeras igrejinhas espalhadas pelo país. Há muita gente que pensa – e age – assim. Muito mais que nossas elites tupiniquins gostariam de acreditar.

Durante um bom tempo, o cristianismo fundamentalista adotou uma postura quase monástica. Isolou-se da sociedade. Por exemplo, o pentecostalismo clássico e as igrejas associadas aos movimentos de santidade funcionaram assim por décadas. Havia códigos de conduta e de vestimentas. Determinadas festas e círculos sociais eram estritamente proibidos, bem como os chamados prazeres do mundo. Seu espírito de coesão era atraente, principalmente nos círculos mais pobres da sociedade, e não é de se espantar que tiveram crescimento formidável junto a essa camada da população, que nem os movimentos sociais de esquerda, nem a direita tradicional, nem tampouco os setores progressistas e liberacionistas da igreja realmente conseguiram alcançar. O fundamentalismo é uma realidade, e veio para ficar.

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Já há algumas décadas, representantes desse grupo religioso-social têm alçado voos políticos, obtendo vagas no legislativo (sobretudo) e se compondo como cáucus intitulado “bancada evangélica”. Durante muito tempo, as elites políticas trataram esse punhado de pastores e afins como uma entidade caricata (como muitas outras que inegavelmente existem nas casas legislativas Brasil afora). A partir de certo momento, passaram a ser uma massa de barganha, sempre disposta a votar com os inúmeros governos contanto que certas temáticas relacionadas à diversidade sexual ou direitos reprodutivos fossem escamoteadas. Mas a inserção política desse grupo cresceu, e lhe deu uma visibilidade para além das igrejas. Catapultou pessoas medianas e relativamente comuns (como Damares) à berlinda política.

Para quem conhece o cristianismo fundamentalista, seus valores e princípios, Damares é uma personalidade muito mais corriqueira e ordinária que a mídia tenta retratar. E a grande falha de governos passados, elites políticas, partidos tradicionais da direita e esquerda, acadêmicos e demais setores que detiveram o poder foi nunca saberem dialogar com essa fatia numericamente considerável da população. Damares representa e dá voz, literalmente, a bastante gente cuja visão de mundo nunca fez parte do discurso político nos altos escalões do governo.

E, nessa visão de mundo, muitas das atitudes da ministra fazem completo sentido. Raptar a menina indígena é justificável pois, além da miséria econômica, na aldeia, ela estaria amarrada a potestades espirituais dos ímpios indígenas que não adoram ao Deus de Israel. Tentativas de cura para pessoas homossexuais são necessárias, pois a leitura bíblica fundamentalista aponta que quem mantém relações sexuais com pessoa do mesmo sexo vai para o inferno. Enfatizar que as crianças devem ocupar um certo papel social diretamente relacionado a seu gênero de nascença é necessário, pois, novamente, a leitura bíblica desse grupo aponta para grandes maldições que recaem sobre quem ousa divergir de um determinado modelo de família. E tudo se justifica com um ou outro versículo bíblico, pinçado fora de seu contexto, e sem a mínima análise de seu conteúdo no texto original. De verso em verso, explica-se tudo: até os falsos diplomas de mestrado.

Damares é a fundamentalista raiz, sem filtro. Não foi coberta de eufemismos ou embelezada para dar uma ideia de tolerância. Tem um longo histórico de falas públicas em que expressa exatamente o que seu grupo social acredita: que tem um mandato espiritual de salvar o Brasil do maligno, que os ímpios nunca entenderão isso pois não têm o discernimento do Espírito Santo, que é preciso salvar quem está no pecado (lésbicas, ateus, candomblecistas, evolucionistas, espíritas, transexuais, socialistas, defensores do estado laico, feministas, etc.) e que isso começa pelas crianças, assegurando que as mesmas não poderão ser ensinadas a conhecer certas coisas que soem como doutrinação. Para muita gente, isso parece loucura, mas a realidade é que há um razoável grupo de nossa população que pensa e crê exatamente dessa forma. E como seu pensamento é pré-moderno, justifica-se por detrás de uma definição muitas vezes maniqueísta de Deus. São pessoas que genuinamente veem-se como justas, escolhidas por Deus para combater esse bom combate, e dispostas a enfrentar a perseguição como mártires da fé. Como vivem dentro de relações sociais muito estritas, sem amplo contato com outros setores da sociedade, não se expõem ao confronto de ideias que leva a mudanças e conversão de mentes.

Enquanto o restante da sociedade não souber realmente dialogar com esse grupo, entendê-lo e buscar trazê-lo para a roda de debate, continuaremos a deixá-lo dentro de seu autoisolamento, onde a troca de experiências e a compreensão do(a) outro(a) simplesmente não ocorre. E isso é caminho certo para o recrudescimento de ideias e o encastelamento dessas pessoas em suas posições. A melhor coisa que pode acontecer, neste momento, para o cristianismo fundamentalista brasileiro, é um ataque agressivo da mídia à ministra Damares, pois corrobora a narrativa de martírio e mandato divino. Damares já está em rota de queda, sua bagagem é pesada. A questão é que ela deixará sucessores, com uma base de apoio bem estruturada. Sem diálogo com essa base (que começa, muitas vezes, na nossa própria família ou ambiente de trabalho), continuaremos a ver seus expoentes caricatos sendo eleitos e alçando cargos para os quais nunca tiveram o mínimo preparo.

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Luiz Coelho é planejador urbano, sacerdote anglicano e artista visual. Tem formação em Engenharia Cartográfica (IME), mestrado em Informática (UFAM) e é doutorando em Planejamento Urbano e Regional (UFRJ). Também é formado em Teologia pelo SETEK, com doutorado em liturgia por Sewanee: the University of the South. É servidor público municipal, atualmente lotado no Instituto Pereira Passos e serve a Paróquia Anglicana São Lucas, em Copacabana. É membro filiado ao PSOL.
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