Derramar a canção

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Do tempo não escapamos. Já contam vinte e cinco anos que Marisa Monte lançou seu álbum Verde Anil Amarelo Cor de Rosa e Carvão. O ano era 1994 e a música brasileira, naquele momento, pôde ser regalada com esse que foi elencado pela revista Rolling Stones entre os 100 maiores álbuns do cancioneiro. O que se pode considerar como sendo uma façanha e tanto quando analisamos o desenrolar da história e computamos a quantidade de excelentes trabalhos feitos e com o quais esse álbum teve que competir. Não foi à toa essa conquista. “Verde Anil” galgou merecidamente esse posto e o presente artigo busca entender as razões que o colocaram lá e que fizeram de Marisa uma das vozes mais emblemáticas do Brasil.

A década de 90 passava por uma transição no mercado fonográfico, superando o engessamento criativo que limitou ou isolou os artistas tornando-os reféns dos ritmos que estavam dominando o cenário. O axé, o sertanejo, o pagode e o funk eram as apostas das rádios e dos programas de TV, ainda que houvesse um movimento de oposição vindo da MTV ou das tradicionais rádios, que não abriam mão de continuar promovendo a música de artistas já consolidados. Havia uma demanda desses ritmos massificados e a “MPB” – expressão tão equívoca – tentava furar o cerco de alguma maneira para manter o padrão de qualidade conquistado nos anos 70 e 80 ou mesmo para apresentar artistas novos.

Marisa Monte representa a voz dessa furada de cerco, o respiro no meio de uma avalanche de “jabás”, de sucessos encomendados ou de músicas com gosto duvidoso. O que chamam “lixo musical” eu prefiro chamar apenas de música que seguiu um afluente mais fácil, mais palatável, mais assimilável.  Não foi esse o caminho tomado por Marisa. Já no fim da década de 80, Marisa dava provas de seu talento incomum. Da participação na peça de Miguel Falabella, no Colégio Andrews, até a viagem para a Itália, junto com Nelson Motta, foi um salto curto. Havia quem notasse na afinação poderosa e no cristalino som da soprano Marisa (que queria ser cantora lírica), mas faltava o empurrão decisivo. Foi Nelson quem o deu, apresentando Marisa ao métier da produção musical, o que levaria a cantora a gravar um especial para a Rede Manchete que, depois, se transformaria no seu primeiro e bem aceito álbum “MM”, em 1989.

O que nos interessa é compreender o estrondo de “Verde Anil”, seu terceiro álbum de estúdio, que seguia a passos largos aquilo que Caetano Veloso nomeou como “linha evolutiva” da música. Marisa trazia nesse álbum o espectro da história da música brasileira. Vê-se, em Marisa, aquilo que o produtor Arto Lindsay sinalizou: a gana pelo derramar a canção. Isto quer dizer que ela havia encontrado exatamente a sua turma de músicos e o que ela queria fazer com sua voz. Não ser mais uma cantora lírica, mas sim uma cantora popular, no sentido estrito da palavra: uma cantora que derramasse a canção de um Brasil multicolorido, que cantasse um resumo de quase tudo o que até então o Brasil havia colecionado de repertório.

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Na entrevista que deu a Charles Gavin no programa “O som do vinil” em 2013, Marisa explica a concepção de “Verde Anil”. Por influência de sua parceria com Carlinhos Brown, havia uma necessidade de tornar o Brasil o protagonista da cena, o motivo pelo qual valeria à pena se fazer música. Era urgente cantar o Brasil e encontrar o que há nele que extrapola os limites de seus símbolos fixados e oficializados. “O Brasil não é só verde azul e amarelo. O Brasil também é cor de rosa e carvão”, escrevem Brown e Marisa. Há mais do que essas três cores na paleta dessa nação tão diversificada em raças, ritmos e corpos. Marisa, com a ajuda de Brown, pensou nas cores que criam esse país, que são a cor de rosa, a cor do amor e o carvão, a cor do povo.

“Verde Anil” nasceu de um espírito eclético típico de Marisa, presente no álbum “MM” e no álbum “Mais” (1991). Tal espírito, rebelde a qualquer nominalismo, parece reportar à Tropicália, ao não se sujeitar a nenhum rótulo, a nenhuma definição estilística. Marisa canta o quê? Rock, samba, blues? Ou tudo isso amalgamado? Não vejo junção;  vejo deságue. Vejo uma música que é pura torrente, força inquietante que só obedece ao anseio de uma voz. Vejo um derramar da canção, apenas. Para alcançar esse resultado, Marisa montou uma epopeia musical, à moda de Milton Nascimento com o “Clube da Esquina”, convocando músicos de variados talentos e timbres, como Carlinhos Brown, Nando Reis, Arnaldo Antunes, Gilberto Gil, Naná Vasconcelos, Paulinho da Viola, Marcus Suzano, Arthur Maia, Jorginho Gomes, Celso Fonseca, velha guarda da Portela, Laurie Anderson, Arto Lindsay e Philip Glass.

O álbum inicia com “Maria de Verdade”, canção composta por Carlinhos Brown. O violão de Nando Reis anuncia o que virá: o canto suave de Marisa falando de uma mulher poderosa que, com seu “louco mover paixão”, tem a força tremenda para ser o que seu limite permite: “farinhar bem”, “revirar trens” e “derramar a canção” “nas direções”; essa mulher é a própria Marisa/Maria “de verdade” que, com o canto, ecoa eflúvios da “alma sempre boa”, “mesmo que doa”, mesmo que a vida seja pesada. Em seguida, vem o rock “Na estrada” ainda na exaltação do poder da mulher que “vai voltar”, que “vai chegar”. Tchururutchutchutchu!

O samba dá as caras com “Ao meu redor”, no sincopado pandeiro de Suzano, em que Marisa expõe a ambiência da alma apaixonada ao cantar a ausência presente de um amor que “não está por perto e ainda estão tão perto” em todos os momentos, “até quando eu não quero”. Mas o samba segue e, em forma de chorinho, Marisa dá voz aos bambas, em “Dança da solidão”, clássico de Paulinho da Viola de 1972 e “De mais ninguém” composta por ela e por Arnaldo Antunes. Marisa canta a dor do amor “de quem tem”, de quem se aventurou e se amargurou e que agora sobrou apenas dançar na solidão, no “compasso da desilusão”.

“Segue o seco” tem a pegada forte do Nordeste marcada na percussão do trio Brown/Suzano/Jorginho. Marisa evoca a dor da boiada, da enxurrada, da trovoada que secou. O “caminho é seco” e ele existe coirmão às “lágrimas de São Pedro”. Mas quando elas cairão? Será preciso “ir lá em cima pra derramar você”? Ou será preciso continuar a derramar canção? O lirismo de “Alta noite” que exibe uma paisagem solitária e liberta, mas cheia de paz e que é a mesma paisagem de “Enquanto isso”, que descortina seu ciclo “da noite escurecendo ao lado do entardecer” revelando uma natureza maior do que nós; como também a beleza de “O céu”, o rock de Nando Reis, com violão de Gil, que pinta o firmamento negro e cintilante, a “rua do avião”, a pista de “paraquedas e salto”, “sem começo e fim” dizem “sim, a canção derrama”.

A canção derrama através de vazantes, de tonalidades: os “pálidos” “Blue eyes”, no cover de Lou Reed e a “sandália de prata” de “Balança a pema”, no samba-rock de Benjor. Em “Bem leve” as vazantes serão as tramas “em cima de madeira” pousando a pele; “dali da beira, uma palavra cai no chão”; e nasce outra canção, aparece outra vazante que não é “imbuia, cerejeira, jacarandá, peroba, pinho, jatobá, cabreúva, garapeira”; essa vazante é a chão do quintal em Oswaldo Cruz. O disco encerra com “Esta melodia”, samba de Bubú da Portela e Jamelão em que Marisa canta acompanhada do dolente violão de Paulinho da Viola até desembocar no coro surpreendente das “tias” da Portela (Doca, Surica e Eunice). A canção evoca o dia que amanhece “rompendo” sem o amor nos braços, mas com a “doce melodia” tentando dar suporte a uma vida que só é suportável porque existe o samba.

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