O primeiro a me falar sobre o ‘Solar da Fossa’ foi o jornalista Tony Martinelli – ex- Manchete – que morou no casarão de Botafogo, em época de vacas magras.
Eu me lembro do antigo casarão de dois pavimentos com paredes pintadas de rosa-claro e janelas azuis, que ficava na antiga Fazenda do Vigário, na rua Lauro Müller, 116, em Botafogo, próximo a entrada do Túnel Novo.
Quando criança, passei várias vezes em frente a ele, em direção a praia de Copacabana. O casarão, um ex-convento colonial em Botafogo, na época, se chamava ‘Pensão Santa Terezinha’ e ficava onde hoje está o Shopping Rio Sul, na entrada do túnel, e hospedou entre as décadas de 60 e 70 estudantes, atores, músicos, jornalistas, todos românticos, boêmios e duros.
O nome ‘Solar da Fossa’ é atribuído a uma brincadeira do carnavalesco Fernando Pamplona, que, em uma noite de 1967, separado da esposa, descarregou suas malas e sua fossa na recepção da pensão.
Depois do papo com o Martinelli, resolvi ler o livro “O Solar da Fossa”, do jornalista Toninho Vaz, autor , entre outras, das biografias de duas importantes figuras da cena contracultural brasileira: Paulo Leminski e Torquato Neto, ambos moradores do solar.
“O elemento vital na aura do Solar era o desejo de liberdade pessoal ou coletiva. Havia algo de revolucionário no ar”, conta o autor.
A contribuição do Solar como inspiração para a cultura brasileira da época é infindável. O time de moradores era da pesada: moravam ou frequentavam os corredores do Solar, Caetano Veloso, Zè Keti, Ruy Castro, Cláudio Marzo, Betty Faria, Gal Costa, José Wilker, Paulo Coelho, Paulinho da Viola, Maria Gladys, Darlene Glória, Abel Silva, Paulo Coelho, Naná Vasconcelos, Zé Rodrix, Guarabyra, Darlene Glória, Tânia Scherr, Sueli Costa, Antônio Pitanga, Ítala Nandi, Aderbal Freire Filho e Tim Maia, entre outros.
Maria Gladys, que na época namorava o ‘rei’ Roberto Carlos, trouxe Caetano Veloso, que trouxe os amigos baianos e artistas gráficos Rogério e Roberto Duarte, o cantor e compositor Tom Zé e a cantora Gal Costa. Naquela filial baiana do solar, orbitavam ainda, Gilberto Gil, o poeta Capinam, a cantora Nana Caymmi e o cineasta Glauber Rocha.
O livro de Toninho Vaz é uma viagem romântica, etílica – e, por que não dizer, lisérgica – e cultural aos anos 60. O solar virou refúgio de jovens porras-loucas, artistas, revolucionários e idealistas que encontraram no local um espaço livre para a criação e, claro, para farras intermináveis. A maioria, jovens que tinham envolvimento na militância estudantil, em ferrenha oposição ao regime militar vigente.
Caetano Veloso criou ali sua primeira canção tropicalista: ‘Paisagem Útil’; criou também ‘Alegria, Alegria’. Pode-se dizer que o solar foi o berço da Tropicália, movimento musical lançado em 1968 com o disco “Tropicália ou Panis et Circencis”. A capa do disco mostra vários moradores do solar e alguns visitantes habituais, como o poeta Torquato Neto e a cantora Nara Leão. O conceito e a criação da capa foram de Rogério Duarte, e a faixa-título “Panis et circenses”, com letra de Caetano, na canção imortalizada pelos Mutantes, fazia referência ao próprio solar:
“Mandei plantar folhas de sonhos no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar..”
Paulinho da Viola compôs ali ‘Sinal Fechado’ e usou um dos portais do solar para ilustrar a capa de um disco de 1971; foi lá também que Leminski escreveu ‘Catatau’; Chico Buarque e Marieta Severo tiveram um de seus primeiros encontros, diz Vaz no livro.
Todo mundo queria fazer parte daquele espaço democrático de experimentação artística. Lá era comum esbarrar nos corredores, em diferentes épocas, com gente como Capinam, Edu Lobo, Milton Nascimento, Jards Macalé, Ismael Silva, o coreógrafo Lennie Dale, Hugo Carvana; o artista plástico Hélio Oiticica, Toquinho, Zé Celso Martinez Corrêa, Sidney Miller, David Tygel, Ricardo Vilas, Ronaldo Bastos, Maurício Maestro e os irmãos Jorge e Wally Salomão.
Eram 85 apartamentos pequenos de um, dois ou três quartos. Alguns sem banheiros. O esquema era parecido com o dos modernos apart-hotéis. Funcionários lavavam as roupas e arrumavam os quartos.
“O resultado é que ali estavam porras-loucas, revolucionários, cabeludos, destemidos, grandes talentos e garotas espetaculares que não tinham medo de transar. Para melhor apreciar e entender o fenômeno da contracultura brasileira, o Solar deveria ir para a lâmina do microscópio.
Todos os vestígios típicos dos anos 60 vão aparecer nos 85 apartamentos da pensão Santa Terezinha, como era o nome oficial. Pelo menos nos três primeiros anos (dos oito de existência) todos pagavam aluguel, depois o esquema foi se alterando e, nos dois últimos anos, ninguém pagava mais nada.
Ficaram famosos os passeios da Maria Gladys, completamente nua pelos corredores do Solar, talvez sob o pretexto de fazer ‘laboratório de teatro’.
‘Audácia e ousadia eram impulsos comuns entre estes jovens’, como diz o Roberto Talma na abertura do meu livro. ‘No Solar da Fossa – onde havia um grande elenco de mulheres bonitas – se você não tivesse alguma literatura, um pensamento filosófico atualizado, uma conversa definida sobre arte, você não comia ninguém.’
O local era bem ao estilo sexo, drogas e rock and roll” disse, Toninho Vaz.
Para Toninho Vaz, o Solar da Fossa, emergiu naqueles anos cinzentos de ditadura, como espécie de reduto de resistência, mas também de sonhos. “O elemento vital na aura do Solar era o desejo de liberdade pessoal ou coletiva. Havia algo de revolucionário no ar”, conta o autor.
O Solar era uma grande torre de babel. Em dezembro de 1968, durante o AI-5, decretado pelo governo militar, antes de uma batida policial ao casarão, os moradores enterraram no gramado em frente ao Solar livros de Engels e Marx. A cultura foi seriamente abalada pelo AI-5. O Solar entrou definitivamente em decadência e após alguma resistência, em 1971, o sonho acabou quando o prédio foi demolido para a construção do Shopping Rio Sul.
“Em cima das melhores ideias socialistas, surgiu o símbolo máximo do capitalismo”, brincou Vaz.