por Lucas Duarte Costa Lima¹
Em meio à vertigem progressista que assola nossa urbe tropical, observo com particular interesse o pequeno oásis de memória e civilidade que é o chamado Buraco do Lume. Local onde outrora se erguia o altivo Morro do Castelo – berço da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro – hoje se vê ameaçado pela mesma obsessão modernizante que, em 1922, decretou a morte do próprio morro.
Não posso deixar de notar a ironia. O terreno que sobreviveu à primeira onda de “desenvolvimento” agora enfrenta sua segunda provação, desta vez sob a égide do que chamam de “revitalização”. Como se a vida – essa mesma que pulsa diariamente nas manifestações populares, nos encontros fortuitos e na sombra generosa das árvores – precisasse ser “re-vitalizada” por torres de concreto e vidro.
Vejo algo de profundamente sintomático em nossa incapacidade de preservar espaços públicos que funcionam. O Buraco do Lume, com seus 2.800m² de área verde, representa mais que um simples terreno no Centro do Rio – é um testemunho vivo de como a organicidade urbana pode triunfar sobre o planejamento tecnocrático. Durante mais de quatro décadas, este espaço desenvolveu naturalmente sua vocação como ágora carioca, um lugar onde a cidade respira, pensa e se manifesta.
A pretensão de erguer ali um “espigão residencial” revela nossa persistente tendência de confundir desenvolvimento com verticalização, progresso com destruição. Observo com curiosidade como o próprio sistema de transparência da Prefeitura – em sua honesta confusão burocrática – não reconhece o terreno como edificável. Até a máquina administrativa, em seu automatismo, parece intuir o absurdo da proposta.

Considero que o argumento da propriedade privada, neste caso, beira o risível. Como nos lembra a ex-procuradora Sonia Rabello, o usucapião não é mera tecnicalidade jurídica, mas o reconhecimento legal de uma realidade social consolidada. O Buraco do Lume pertence à cidade não por decreto ou escritura, mas pelo uso contínuo, pela apropriação cultural, pela prescrição do tempo – esse juiz implacável que transmuta espaços em lugares.
Não me oponho cegamente ao desenvolvimento urbano. O Centro do Rio, de fato, clama por revitalização. Mas preciso destacar a diferença fundamental entre revitalizar e desvitalizar. Enquanto existem inúmeros prédios vazios aguardando reconversão, enquanto quadras inteiras dormitam no abandono, a obsessão por construir justamente sobre uma das últimas áreas verdes do Centro revela mais sobre nossa patologia urbana do que sobre qualquer necessidade real de desenvolvimento.
O conservadorismo que defendo aqui não é a mumificação da cidade, mas a preservação inteligente daquilo que funciona, daquilo que tem significado, daquilo que confere humanidade ao espaço urbano. Em tempos de mudanças climáticas e crescente alienação social, destruir uma área verde que serve como pulmão e ágora é mais que um erro urbanístico – é um atentado à própria ideia de civilidade urbana.
Vejo no Buraco do Lume um teste decisivo para nossa capacidade de pensar a cidade além da lógica do metro quadrado construído. É um chamado à reflexão sobre que tipo de urbanidade queremos legar às próximas gerações: uma cidade que preserva seus espaços de respiro e encontro, ou mais um amontoado de torres que, em sua pretensa modernidade, apenas replicam a mesma solidão vertical que já conhecemos bem demais.
Defendo que a verdadeira revitalização do Centro do Rio passa necessariamente pela preservação de seus espaços públicos funcionais, pela valorização de sua memória viva e pela compreensão de que desenvolvimento urbano não pode ser sinônimo de amnésia coletiva. O Buraco do Lume não é um vazio a ser preenchido, mas um espaço pleno de significado a ser preservado.
¹Lucas Lima é Arquiteto e Urbanista, professor universitário e Auxiliar de Justiça do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG e em História, História da Arte e Geografia pela Universidade das Ilhas Baleares (Espanha), possui mestrado pela EA-UFMG e MBA Executivo em Gestão de Negócios de Incorporação Imobiliária pela FGV. Atua como professor nos cursos de Arquitetura e Urbanismo do Uni-BH e UNA em Belo Horizonte. Sua formação multidisciplinar, permite uma visão ampla e crítica sobre as questões urbanas contemporâneas, especialmente na interface
Excelente artigo. Obrigada pela referência.