Filipi Gradim: Além do que agita a borra das coisas

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Via de regra o entendimento dos intelectuais desavisados insere Arthur Schopenhauer (1788-1860) na ilustre galeria dos filósofos “pessimistas”, como se, no conjunto inteiro de sua obra, ele tivesse concebido um mundo regido pelo mal. Decerto, é de sua autoria a ideia de que “o mundo é o inferno e as pessoas que estão nele são, por um lado, as almas torturadas e, por outro, os seus demônios”; de que “se a finalidade mais imediata e próxima de nossa vida não é o sofrimento, então nossa existência é o maior contrassenso do mundo”; e, enfim, de que uma “dor infinita (…) se origina da miséria original da vida e da qual o mundo está repleto”. No entanto, ele não se subtrai a esse estado assombroso. O pessimismo não sumaria todo o pensamento do autor, mas lhe serve de princípio, restando, para o fim, o otimismo prático, tendo a Arte como suporte.

Schopenhauer contrariava, então, o princípio otimista de outro filósofo alemão, Gottfried Leibniz, que presumia a verdade de que o mundo em que vivemos, por decreto e deliberação divina, sendo sua obra, é “o melhor dos mundos possíveis”. Para Schopenhauer, como princípio metafísico e ético, o mundo em que vivemos é, antes, o pior possível, porque “o caráter das coisas deste mundo, nomeadamente do mundo humano, não é tanto, como se diz frequentemente, imperfeição, mas antes distorção, no âmbito moral, intelectual, físico e, em tudo.” Mas por quê?

Enquanto princípio pessimista, há uma razão para que a vida humana seja um tortuoso caminho, em que os indivíduos sofrem e infligem sofrimentos aos outros; e ela repousa no fato de que nos afastamos da virtude. Vale dizer que virtude, na opinião de Schopenhauer, é conhecimento; e conhecimento é vínculo “moral, intelectual e físico” por meio do qual “sabemos de nós mesmos”. A razão para haver distorção da virtude e para nos atrelarmos a uma vida que “é essencialmente um estado de necessidade e frequentemente de miséria, em que cada um tem que lutar e disputar por sua existência” está no “eterno é” de nosso ser, na vontade.

O que cientistas apontam como “força natural” e os filósofos nomeiam “primum móbile (primeiro motor] da vida”, Schopenhauer chamou de vontade. Trata-se, na verdade, de substituir a noção de que é a alma o princípio da vida e de que não é inteligente esse movimento e sim inconsciente e desmedido. De modo que vontade ativa irracionalmente desde a mínima à máxima forma de vida, sem que se meça no tempo e no espaço a grandeza de sua ação. As coisas vivas, incluso os humanos, agem por pressão da vontade que pesa sobre a condição existencial como gravidade que se carrega como constituição essencial do ser. Logo, ser/existir é querer; é voluntariar-se.

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Querer, no entanto, é o traço basilar e indiscernível imanente à vontade. Sendo assim, a vontade ocupa a função de “agente em todas as funções orgânicas, tanto quanto o é em suas ações externas”; e a forma para a qual age, ou seja, sua finalidade, é expressar a livre ação sobre o mundo, a capacidade magnética de desejar e de repelir qualquer estímulo, causa ou motivo. Ao desejar e repelir, a vontade faculta aos seres vivos que eles mantenham “o seu próprio ser diante do macrocosmo na medida do possível”, conforme as palavras do médico Joachim Brandis. Por manutenção do ser a vontade atua, tanto dentro dos indivíduos, no organismo, quanto fora, nas ações externas que o corpo executa com a colaboração das potências cognitivas do intelecto.

Nos humanos a vontade é orientada pelo intelecto e, por isso, é comandada pelo cérebro. Se nos desviamos da virtude, é porque, enquanto seres voluntariosos, fazemos mau uso do intelecto. Dirigimos, com tanta ênfase, o ato de desejar/repelir para a proteção do corpo, para atender a sede dos instintos, para realizar a satisfação do organismo e para tirar vantagem de algo que aplaque a necessidade de prazer, que o corpo exige do intelecto que ele se satisfaça apenas com o nível da animalidade, sempre efêmero e inconsistente e, por isso, empobrecido.

Sofremos porque, feito animais, a cobiça vence o conhecimento. Enquanto o querer não se satisfaz, há desassossego e é impossível contemplar o mundo; ele só nos interessa se for objeto de posse. O imperativo do querer é a manutenção do corpo/alma no meio do mundo e ele consome toda a energia vital logrando motivos que garantam segurança e saúde. De tal coisa não há garantia, pois, cada vez que a vontade encontra algo que a satisfaça, voltará novamente a sofrer carência de algo que cobiça, buscando novos motivos para suprir necessidades de manutenção. O querer, além de intenso e imensurável, não cessa de cobrar e de pesar sobre o corpo o cio de vida.

Se fosse insolúvel a inquietante relação do querer com sua finalidade, da vontade com os objetos que ela deseja ou repele, o mundo redundaria, sim, em miséria absoluta, porque a satisfação da vontade nunca encontra fim; e, assim, não para de sofrer. No entanto, a Arte é divisada no horizonte como o consolo ao sofrimento existencial, a solução possível de a vontade minimizar seu domínio sobre o humano e, com isso, de condicionar com contumácia o intelecto a serviço do instinto. O intelecto pode, com certo esforço, sair de um grau animalizado, às vezes grotesco, para um grau refinado, elevado; basta que o poder neutralizador da Arte venha a efeito.

Para Schopenhauer, a Arte é um medium, quer dizer, um “facilitador” que dispõe o humano numa posição diferenciada de seu caráter, porque ocorre na relação indivíduo-obra de arte uma significativa graduação de potência intelectual. Diante da experiência artística, o humano se amplia, se resguardando de exigências que estejam de acordo com interesses egoístas e fugazes. Ele deixa de ser puro sujeito do querer perturbado com necessidades privadas de sobrevivência (fundamentais, porém tortuosas), para se tornar puro sujeito do conhecer; situação na qual, como privilégio de sua condição, reside a serenidade necessária para o espírito.

Na experiência estética com a Arte, ou seja, no prazer diante de uma obra de fantasia, o indivíduo humano modifica o ser como ele se aparenta, ou seja, como um corpo qualquer em luta por sobrevivência no mundo. É transferida a necessidade do corpo para a liberdade do espírito, na medida em que se efetua uma “clareza de consciência” advinda da apreensão intuitiva da Ideia. A Ideia é a forma objetiva e transcendental, a imagem definidora, “a expressão, a significação pura”, o “ser mais íntimo que se desvela e fala”, contida no fundo das coisas que a realidade nos mostra como fenômenos. A Ideia é visão expandida e imersa ali onde tudo se mostra tão amiudado.

Ao contemplarmos a obra de algum intelecto genial (seja Guimarães Rosa seja René Magritte) ela insinua em figuras – que não são partes, mas tipos exemplares – a Ideia por dentro da realidade. Na tela ou no livro, vimos a pessoa retratada naquilo que existe não em particular, mas na universalidade; a humanidade reflete-se ali porque o que aparece não é “este” ser, mas “o” ser. A Ideia “não é propriamente uma figura espacial que oscila diante de mim, a qual pode aparecer em grande diversidade”; mas, antes, a Ideia é unidade presente no que é diverso e, portanto, fragmentado e disperso no mundo e ignorante quanto a sua significação e definição universal.

A universalidade nos é desconhecida, na medida em que só conseguimos nos enxergar como indivíduos. Se não há ajuda da Arte, nunca nos vimos como “mundo”, mas como esta ou aquela parte solta no tempo e espaço, sem unidade com nada. Ignoramos nosso ser porque queimamos energia no esforço de manutenção da vida, ameaçada por causas externas. O humano que somos nos escapa ao conhecimento porque não é interessante, não convém ao movimento banal de nossas vidas. Todavia, somos mais do que corpos desejantes e repelentes querendo satisfação e fugindo da dor: portamos qualidades eternas e imutáveis, partilhadas em comum, independente desta ou daquela circunstância étnica, social, religiosa, política ou econômica.

A Arte eleva o intelecto, retirando-o do encalço imperativo da vontade, através da contemplação da Ideia. O intelecto se liberta da condição de ter que buscar nas coisas exteriores motivos que o agradem ou o desagradem, apenas porque assim a vontade será satisfeita em sua necessidade individual de manutenção de seu próprio ser. A experiência artística eleva porque nos separa, num tempo provisório, daquilo que, segundo Melville, “mais enlouquece e atormenta”, de “tudo o que agita a borra das coisas”, de “tudo que rebente os nervos e endureça o cérebro”, porque todos esses tormentos são produtos do que a vontade visa naquilo que cobiça por prazer.

 Como não está sujeita à posse, a Arte favorece mais o intelecto que conhece do que o intelecto que só se interessa pelas coisas enquanto as mesmas possuem utilidade para o egoísmo da vontade. A Arte, apoiando-se na percepção da beleza, isto é, da “figura do objeto a expressar sua Ideia” pastoreia o conhecimento a fim de que prepondere sobre os sofríveis motivos do querer; e, assim, a mente intranquila com exigências mis muda de nível e se tranquiliza, tornando-se serena; pois o que está diante dela não suscita desejos ou repulsas; ao revés, corrige o intelecto, “agora livre de toda relação com o querer” alcançando o conhecimento de si mesmo enquanto um ser transcendental e distante de tudo o que está destinado a desaparecer.

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