Filipi Gradim: Feito uma oração

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Via de regra gênios da arte são gênios do esnobismo. O brilhante Aldous Huxley, em seu livro de ensaios Música na noite, foi quem me despertou para a essa conclusão, em uma sentença categórica: “todos os homens são esnobes a respeito de alguma coisa”. Da mediocridade à excelência, esnobamos tudo. É o caso dos artistas. O gênio artístico gosta de esnobar o que sabe fazer de bom. Logo, aprecia os desperdícios, as abundâncias, os acúmulos e as prodigalidades de seu talento. Um esnobe se regozija pelo fato de que nada basta e de que é preciso cada vez mais. Criar artisticamente exige volúpia e volúpia redunda em excesso.

Na cultura de massa, o esnobismo artístico se deu com Beatles, a banda que esbanjou lirismo, ousadia e criatividade nos anos 1960. Nos anos 1980, porém, assistimos à ascensão de um novo momento de esnobismo pop, na figura de Madonna. Conhecida como “camaleão” da música, Madonna assentou seu terreno na cultura de massa através de uma característica bem ao seu gosto, a saber: de ser uma artista de extrema versatilidade e diversidade, capaz mesmo de nunca se parecer consigo nos diversos trabalhos que realizava. Desde seus primeiros álbuns, Madonna já dava indícios daquilo que ela viria desperdiçar ao longo de toda sua carreira: seu talento natural para se metamorfosear em muitas Madonnas diferentes. Puro esnobismo!

Nascida em Michigan, na cidade de Bay City, em 16 de agosto de 1958, Madonna lidou, desde criança, com limitações e adversidades. A perda da mãe, quando contava com cinco anos de idade, o ódio mal resolvido com o pai, a independência forçada na adolescência, a vida suburbana em Detroit e, depois, a pobreza em Nova Iorque, a violência sofrida no casamento com Sean Penn – tudo isso se acumulou e formou o caráter firme e irreverente de umas das artistas mais significativas da história da música contemporânea.

Antes de compor o genial álbum Like a Prayer, Madonna atravessou um caminho difícil, que lhe rendeu a renúncia à bolsa de estudos em Dança na Universidade de Michigan. Pelos idos de 1977, ao escolher o sonho de ser artista em Nova York, Madonna abriu-se à coragem de uma jovem desbravadora de 19 anos. Mesmo trabalhando como garçonete para se sustentar, conseguiu voltar a estudar dança. Ao se intrometer no círculo de artistas da cena underground nova-iorquina, Madonna se envolveu romanticamente com o músico Dan Gilroy. De súbito, em 1979, no auge da disco music, se viu cantando e dançando na banda Breakfast Club; mas isso só durou até enamorar-se de outro músico, Stephen Bray, como quem fundou a banda Emmy. Por sorte, o produtor Mark Kamins impressionou-se com o talento vocal de Madonna, apresentou a moça ao dono da Sire Records, Seymour Stein, no que resultou na gravação de “Everybody”, seu primeiro single, lançado em 1982. O estouro da música nas pistas de dança foi imediato.

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 O primeiro álbum, intitulado simplesmente como Madonna, é lançado no ano de 1983, confirmando seu talento e magnetismo para atrair admiradores. Em pouco tempo a “marca” Madonna se estabeleceu no comportamento dos jovens e a cultura popganhou um novo ícone e uma nova referência da moda. Musicalmente, o primeiro álbum já nos mostra que a influência da disco impera no estilo de Madonna, vide as canções “Holiday”, “Lucky Star”, “Borderline” e “Burning up”. Ela própria admitiu na biografia lançada por Randy Taraborelli que sua estreia apresentou ao mundo a “rainha elegante de dança de rua”. O esnobismo do talento começava aí. Depois, em 1984, lança Like a Virgin, produzido por Nile Rogers. Nile conduz Madonna para uma sonoridade que flerta com a black music.  Assim, vimos a artista enfatizando ainda mais seu estilo dançante das músicas, sem esquecer de se manter ligada ao fenômeno do new-wave.

Em 1986, lança True Blue, álbum que marca a independência musical de Madonna. Todas as canções foram escritas e compostas ao lado de Patrick Leonard. Casada na época com o ator Sean Penn, Madonna dedicou o álbum ao marido e, por isso, esse trabalho carrega traços do relacionamento abusivo e conturbado que viveu. A crítica notou em Madonna uma evolução no aspecto vocal e compositivo, bem como no conteúdo de suas letras, que abordavam a gravidez na adolescência, o aborto, a violência, a pobreza, a latinidade e, assim, alcançavam um público adulto, desassociando a artista de seu vínculo exclusivo com a estética juvenil.

 

É nesse aspecto que Like a Prayer, lançado em 1989, reafirma a capacidade de Madonna para a metamorfose e para a transformação. O esbanjar versatilidade foi pecúlio de poucos na história da música – igual (e superior) a ela temos David Bowie. Na abundância de formas que incorporou, vimos Madonna transitar da dançarina urbana para a virginal adolescente como também da “material girl” para a amante latina sensual. Like a Prayer alça Madonna para um novo patamar ainda não imaginado. Além de ter arrebatado nas vendas, o álbum revelou uma cantora que recusava ser a imagem da mulher submissa ao crivo do heterocentrismo. Madonna não só se estabeleceu no mercado, bem como reforçou o poder feminino no universo pop.

Não bastou ter alcançado o reconhecimento de público e crítica. Madonna quis mostrar quem estava por trás desse êxito; e esse quem era uma mulher. A canção “Express Yourself” é o exemplo claro dessa vontade feminina de poder. No plano musical, a canção guarda uma composição mais complexa, com a presença de saxofones, tambores e guitarras. Sua levada empolgante serve como um fundo para o que a cantora evoca: “Vamos lá, meninas!” “Não sejam a segunda melhor”. Madonna luta contra a opressão, incitando a mulher a sair da secular submissão e ser a “rainha no trono”. Por isso, é preciso que a mulher dispense as ilusões materiais, as frivolidades que a cultura machista conserva, em troca do poder e cuidado de si: “o que você precisa é de uma mão grande e forte/ para levantá-la para o lugar mais alto”.

A própria capa já anuncia a política de afirmação de “Express Yourself. Madonna não aparece como em outros álbuns, centralizando seu rosto ou apresentando-a inteiramente vestida. Na capa de Like a Prayer, o foco é da cintura para baixo e mostra Madonna de umbigo de fora, vestida em jeans e adornada por acessórios. Na contracapa, ela aparece morena, esvoaçante e despojada, dona de um esnobismo da ousadia, incomum para a época. No interior do encarte, Madonna adere à campanha contra a AIDS, num momento em que sobre a abordagem de tal tema ainda pairava a nuvem do pudor. Ela lista “fatos a respeito” da doença, esclarecendo pontos que o preconceito vedava e alertava: “AIDS não é brincadeira ”.

 A canção título do álbum, como é de costume, abre a sequência de faixas. “Like a Prayer” já demonstra um estilo diferente dos trabalhos anteriores. Madonna envereda por um pop rock onde guitarras se fundem com a sonoridade gospel de um coro feminino. O objetivo é forçar uma atmosfera litúrgica na canção que aborda a ligação polêmica entre religião e sexo. “Estou de joelhos”, diz Madonna, “à meia-noite”, clamando por Deus, em um fervor que beira ao orgasmo espiritual: “sinto vontade de voar”, “como um sonho”; “sua voz me guia”, “feito uma oração”. No videoclipe da canção, Madonna foi ainda mais longe, esbanjando provocação. Introduziu nesse fervor religioso que se mescla ao fervor sexual a figura – impossível nos moldes tradicionais – de um santo negro que é libertado e lançado em uma sociedade violenta e racista.

“Cherish”, a mais delicada canção do álbum, tem uma levada levemente dançante e nos mostra que, mesmo afirmativa e amadurecida, a Madonna, emancipada de Sean Penn, não abandona seu erotismo: “cupido, por favor, mire sua flecha em mim”. A mulher que quer ocupar o trono do poder cansou-se de “encontros casuais” e também exige uma paixão que sangre “como um amor ardente”. A sensual “Love Song”, composta ao lado de Prince, abusa de inspirações da soul music. A canção não fala de amor, mas da lucidez feminina para não ser enganada novamente: “meu amor não é cego”, por isso, “não embarace minha mente”.

Outro momento romântico do álbum fica a critério da melodramática “Spanish eyes”, canção que Madonna compôs como uma balada carregada de influências espanholas.  A guitarra, que remete aos tempos de “La Isla Bonita”, revela a mulher desesperada que perdeu seu amante, dono de “olhos espanhóis”, para a violência urbana: “quantas vidas eles terão que tirar? / Ele teve que lutar contra todo o resto/ Ele era apenas um homem”.  

Like a Prayer é, na aparência, um canto de provocação; mas, na profundidade, é um álbum autoral e pessoal em que Madonna se abre pela primeira vez, expondo sua vida. Esse trabalho é um álbum de recordações familiares em formato de música, que fala “sobre minha mãe, meu pai e laços com a família”; algo que “precisa de muita coragem para fazer”. A melancólica “Promise to Try” aborda o difícil tema da morte da mãe que, acamada, fazia a “garotinha” sorrir “quando era ela quem sentia toda a dor”. “Oh Father”, por sua vez, declara a mágoa com o pai: “você nunca me amou”. A mulher poderosa de “Express Yourself” sabe ser dura e arredia evitando afetos tristes: “eu fugi de você/você não pode me fazer chorar”.

Por fim, Like a Prayer é genial porque usa a música como exorcismo de demônios, como um ritual religioso em que Madonna se prepara para purificar a alma, como vimos na experimental “Act of contrition”: “estou firmemente decidida/ a confessar meus pecados, a fazer penitência, a corrigir minha vida”. É um disco-desabafo, conceitual, cujo conteúdo é a ética de uma mulher consciente de suas forças e limites. Assim, ao se corrigir, Madonna ressalta o valor da união em família em paralelo com a emancipação de uma pessoa que quer ser ela mesma, como ocorre em “Keep it together”. Como também expulsa a figura de homens autoritários e violentos, como em “Till death us apart”. Nesse álbum, Madonna brilha como a cantora mais bem-sucedida dopop mundial, em um trabalho que arriscou todas as fichas.

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