Filipi Gradim: Hashtag somos todos esnobes

A cultura do desperdício em nossas vidas

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A leitura de Música na noite e outros ensaios de Aldous Huxley abriu-me uma janela imensa. Através dela pude vislumbrar as duas coisas que a filosofia nos ensinou serem as fontes confiáveis de todo conhecimento, a saber: vivência e conceito. No âmbito desse, a obra de Huxley me promoveu o acesso à noção de esnobismo, que até então me escapava ao entendimento; e, no âmbito daquele, retomei uma situação antiga vivida que, na época do ocorrido, me casou indignação e até mesmo aborrecimento, justamente pelo fato de que meu entendimento do conceito de esnobismo era insuficiente para uma mente ainda imatura. 

Aos catorze anos, na escola, um coleguinha de sala disse-me, sem peias, que eu era esnobe. Recusei o predicativo por causa da falsa imagem que aquela consideração propagava, pois eu associava esnobismo ao nicho socioeconômico dos ricos. Eu, sendo pobre, não poderia, pela contingência, ser esnobe. Mas, o nível intelectual da fase adolescente impediu de entender que há mais objetividade e, portanto, verdade, naquilo que outros opinam sobre nossa pessoa do que deseja nosso vaidoso amor-próprio. Cid, meu colega, tinha razão: decerto sou esnobe.  

Graças à ação mágica da literatura, me vi refletido nas páginas escritas pelo célebre autor de Admirável Mundo Novo. No artigo “Esnobismos selecionados” eu estava lá fazendo coro entre os esnobes. Justo eu? Sim. Já que “todos os homens são esnobes a respeito de alguma coisa”[1]. Isso bastou para constranger a crença ingênua de que meu ser não concordava com aquela ideia. Mas, para calar a indignação antiga em relação ao colega da escola, era preciso mais do que universalizar o esnobismo, introduzindo-me no cerne do conceito. Tive que encarar a crítica ácida de Huxley e sua breve definição sobre a ideia de esnobismo, quando escreve que esnobar significa “poder estimular atividade” através de “desperdício organizado”; desperdício esse que, ao ser praticado regularmente, “jamais pode descansar na sua busca por atualização”[2].  

Inevitável: nas linhas do artigo de Huxley me reconheci como esnobe, quando o autor enumera as casuísticas do desperdício. Consoante sua visão, existem o esnobismo de cultura, que esbanja tanto o saber quanto a ignorância; o esnobismo de posse, que desperdiça pela mera cobiça de acumular coisas; o esnobismo de arte, que aprecia arte pelo prazer de colecionar a obra de artista morto; e o esnobismo de modernidade, onde se encontram os consumidores da cultura líquida apontada por Bauman, ou seja, os esnobes que desperdiçam coisas porque é bem mais aprazível substituir do que comprazer-se com o que se tem. Tendo em vista tais exemplos extraídos de situações comuns a todos, me indago: quando não agi desse ou daquele modo?  

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O excelente Cultura do desperdício – por uma sociedade mais consciente (2017) nos estapeia com luva de pelica, apontando a deficiência que não queremos ou não sabemos reconhecer: somos todos esnobes. O documentário, em virtude de seu rico material baseado em fontes estatísticas revela o óbvio: o desperdício é generalizado. O “bicho-homem” esnoba os insumos materiais que explora da natureza e assim o faz através de uma ação organizada. O processo se dá tão regularmente que existe, inclusive, uma rota do desperdício que engloba toda a cadeia produtiva. No setor alimentício, por exemplo, a rota começa pela colheita, onde 10% dos produtos são perdidos, depois 50% no manuseio e no transporte, 30% nas centrais de armazenamento; e, por fim, 10% nos supermercados e na mesa do consumidor.  

Além dos alimentos que se perdem, seja por descarte seja por acidentes de percurso, a rota do desperdício obedece à mesma lógica com respeito aos materiais recicláveis (plásticos, papeis, vidros etc.). Sendo que essa categoria de materiais sofre mais a ação do desperdício quando já foi utilizada pelo consumidor. Os números são alarmantes: 250 mil de toneladas de lixo são despejadas nos quase 3 mil “lixões” espalhados pelo Brasil, compondo a cartografia do esnobismo que, por conseguinte, redesenha, na mesma proporção, o que seria o mapa da fome. São inúmeras pessoas que vivem da coleta desse lixo que, lamentavelmente, se torna alimento. 

Luciana Chinaglia entende o desperdício como sendo “cultura da desordem” fomentada pela inépcia do poder público que serve mal por satisfazer apenas interesses pessoais, e pela ignorância da população que, desconhecendo as consequências, age sem responsabilidade[3]. No entanto, se somos agentes do problema, somos, em paralelo, agentes da solução. Se caotizamos a relação entre produção e consumo, cabe-nos o poder de encontrar a medida que apruma a balança econômica. Por isso, no mundo atual é possível se defender outro ciclo de produção, onde o conceito “lixo” – produto exclusivo desse esnobismo – dá lugar ao conceito “reciclagem”. 

Por meio de uma conversão econômica, oconsumo – até então pautado na noção de abundância de insumos naturais – abre um novo ciclo de produção capaz de refutar o esnobismo. “É preciso”, diz Rosa Alegria, “conscientizar as pessoas de que essa abundância precisa ser valor econômico. O desperdício, em vez de ser lixo, passa a ser o valor econômico que entra nessa economia nova, a economia circular, para resolver os problemas do mundo. (…) Você poder aproveitar aquilo que sobra em valor para nutrir as pessoas que precisam”[4].  

Eduardo Gianetti é pontual: “o desperdício é uma categoria moral”, segundo a qual o humano, com seu ardor consumista, age por entender que “não pode faltar; tem que sobrar”[5]; e se ocorre a carência, há mesquinharia. Gianetti frisa que o desperdício é desnatural, posto que é invenção humana e, por isso, categoria “eminentemente moral. “Têm mais de centenas de bilhões de estrelas no universo e não dá pra dizer que isso é um desperdício. Na floresta amazônica, com a sua exuberância e seus excessos, do ponto de vista estritamente objetivo e natural, não cabe a ideia de desperdício. A ideia de desperdício quem introduz somos nós”[6].  

Conquanto a fala de Gianetti se dirija ao consumo de recursos materiais, o peso moral que o desperdício carrega consigo abre margem para se pensar em outro nível de compreensão, onde o humano não constitui aquele que consome coisas, mas aquele que é consumido. A fim de complementar a linha de raciocínio, convoco para o debate Aristóteles e Kant. Sendo assim, me interesso em saber se, dentro da cadeia do desperdício o humano desperdiça a si?  

Somos esnobes com tudo, inclusive conosco e com os outros. Considerando a hipótese, diríamos que desperdiçamos os outros e nós mesmos ao perdermos tempo, como declara o senso comum. O hábito nos leva a referir à perda de algo distinto de utensílios e alimentos por meio da sentença: “perco tempo”. E cremos perder algo material ao perdermos tempo. Todavia, o equívoco está aí. Exceto se o tempo for uma coisa, não o perdemos. Mas Kant explicou por A+B que o tempo não é coisa, pois caso fosse se limitaria aos acidentes da matéria. O tempo não é condicionado pela matéria, mas é forma condicionante de toda experiência interna de coisas que ocorrem simultânea ou sucessivamente em nós. Implícito como princípio racional a priori, o tempo nunca pode ser consumido, pois é ele quem garante que qualquer coisa existente venha a ser consumida, pois o próprio consumo é ação dada pelo tempo. É, pois, mais coerente pensar que em vez de “perder” tempo, perdemo-nos a nós mesmos no tempo. 

Em recente leitura da Ética de Aristóteles percebi uma brecha para compreender o modo de se perder no tempo, quando o filósofo aborda a generosidade, que é virtude “no que toca à riqueza”[7]. Para ele, todas as virtudes morais se situam no meio entre dois vícios, e cada vício demarca um ponto extremo em relação à virtude, sendo ou excesso ou carência. No caso da generosidade, o vício por excesso se chama mesquinhez e o vício por carência prodigalidade, entendendo que cada deficiência sofre de desequilíbrio em relação à posse e à oferta de riqueza.  

Evidentemente Aristóteles está se referindo à riqueza material; mas, não nos custa muito transferir a lógica fundante da ética para outras riquezas, como as de alma, que nos torna, enquanto pessoa, algo cujo valor é inestimável e, portanto, livre de qualquer taxação de preço. Então, no caso de ser riqueza material ou espiritual, o pródigo e o mesquinho são pessoas que desperdiçam os próprios bens ou o bem de outrem. A bem dizer, são duas tipologias esnobes.  

Só o generoso é bom, virtuoso, pois sua ação se equilibra “tanto no dar quanto no obter”, realizando ambos “na maneira certa”, blindando-o contra o esnobismo[8]. Por seu turno, o pródigo desperdiça porque “se excede em dar sem obter e é deficiente no obter”, enquanto o mesquinho “é deficiente no dar e se excede no obter ou tomar”[9]. O pródigo é o desperdiçador porque seu ato de dar e transferir riqueza (material e espiritual) não é justo; gasta muito de si e do que tem, ou seja, violenta o limite de seus recursos internos e externos, e, como todo esnobe, “queima” quantias de matéria e de alma, sem fazer distinção se o ato é dirigido no momento certo e para as pessoas certas; simplesmente o realiza porque lhe falta autocontrole. 

Pela visão do senso comum o pródigo é o “homem bom” porque dá aquilo que sobra; enquanto o mesquinho é o “mão de vaca”, cuja deficiência no dar bloqueia a ação generosa. Por ângulos diferentes, o mesquinho gasta quantias de matéria e de alma, mas quando se trata de riquezas que não são as suas. Dos outros ele consome o possível e o durável; consome desde dinheiro a carinho, desde comida a conselhos; ele os esgota material e emocionalmente. Porém, de si, o mesquinho oferece o mínimo; não por força de vontade, mas por pobreza de espírito. Seu caráter é falho e, por isso, não sabe dar, mas tomar dos que tem. Ele esnoba porque visa no outro, no generoso ou na natureza, a possibilidade de explorar uma fonte abundante; e, na primeira oportunidade descartá-la, substituindo por outra, e assim sucessivamente.  

O pródigo e o mesquinho se exumam da observância à forma como agem e, por isso, se opõem à virtude generosa. Assim ocorre com todo o esnobismo: somos inconscientes da falha de caráter. Por isso me espantei quando, através do colega de escola, soube de meu esnobismo. Ser avaro com os outros, explorando neles a riqueza física e mental até o limite do que podem oferecer, sem retribuir à altura; ou, por tolice, oferecer aos outros as mesmas riquezas, mais do que merecem receber, não é comportamento de se estranhar, nem em mim nem em ninguém. O difícil é saber se é possível uma conversão ética que reoriente o caráter humano; e, junto da conversão econômica, nos conscientize que somos a matéria mais desperdiçada no universo e no tempo, por sermos os verdadeiros responsáveis e inventores dessa cultura do esnobismo. 


[1] HUXLEY, Aldous. Música na noite e outros ensaios. Trad. Rodrigo Breunig. Porto Alegre: L&PM, 2015, p.169.  

[2] Idem, pp.172-173.  

[3] Documentário “Cultura do desperdício: por uma sociedade mais consciente” (2017), de Sergio Lopes e Paula Galacini. 

[4] Idem, ibidem.  

[5] Idem, ibidem. 

[6] Idem, ibidem.  

[7] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro IV, §1. Trad. Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2002.  

[8] Idem, ibidem.  

[9] Idem, ibidem.  

Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.

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