Filipi Gradim: Imagine na meia-idade

Os 50 anos do clássico disco de John Lennon

Advertisement
Receba notícias no WhatsApp

Os memes conquistaram o mundo com seu humor impagável. Lembro-me que, no período que antecedeu a Copa do Mundo de 2014, me diverti com um desses que fazia troça com um bordão que se espalhou na época, o “imagina na Copa”. O que me arrancou o riso foi que a imagem trazia nada mais nada menos que a pessoa de John Lennon, vestida com o uniforme da seleção brasileira. A genial montagem reproduzia o bordão, mas distorcendo-o em parte, e o resultado ficou “imagine na Copa”, aludindo à música icônica de célebre beatle.  

Quando decidi pelo tema do presente artigo, me veio de imediato a estampa do meme e a absurda montagem de um John Lennon nada esportivo, vestido como se fosse aluno da Escolinha de Zico. A imaginação tem dessas coisas: distorce a realidade a nosso favor; é trocista, irreverente, cínica. Além disso, nos reporta para tempos e espaços vividos, mas que não podemos mais acessar, ou então nos oferece visão sobre possíveis realidades ainda não vividas.  

Imagine Lennon. Aos 80 anos. Hoje, em 2021. O que seria dele? Continuaria cantando, tocando seu piano branco, acariciando Yoko, mimando os filhos, defendendo injustiçados, de Mariele a George Floyd? Imagine Lennon hoje, de Iphone em punho, sacando selfies ou promovendo lives ao lado de McCartney e Starr. Que beleza de mundo seria! Teríamos ainda vivo, entre nós, um dos maiores artistas do século 20, senão o mais influente dentre eles. Se não o temos em presença física, o temos presente em nossa imaginação, que não cansa de revê-lo. 

O poder revisionista da imaginação me levou à constatação de duas datas emblemáticas que se conectam à vida de Lennon. A primeira diz respeito a 21 de março de 1961, quando ocorreu a primeira apresentação dos Beatles no Cavern, o pub que abriu as portas para o sucesso da banda. A segunda data, no entanto, refere-se a 9 de setembro de 1971, quando foi lançado o álbum Imagine, o segundo da carreira solo de John Lennon. Pela relevância da obra musical desse artista, seria impossível deixar passarem em branco os cinquenta anos do álbum. 

Advertisement

Imagine o Imagine alcançar a meia-idade. O que ele ainda terá a nos dizer? Será que o conteúdo poético das letras ainda surte efeito? Será que a música tornou-se madura aos cinquenta anos, da mesma forma que ocorre conosco? É bem verdade que alcançar a meia-idade não designa necessariamente evolução. Não se trata de número. A maturidade é um processo demorado e burilado com assertividade, com autoconhecimento e autocuidado. Mas e a música? Que fatores indicam que ela maturou? Ou a música não carece desse movimento? 

Em meu entender, a música progride; ela não é um bloco sólido, uma arquitetura que há anos se mantém de pé. A música é a espécie de arte cuja substância é temporal, móvel. E essa mobilidade se dá não na música propriamente dita, mas em nossa percepção de ouvintes, em nosso mundo interior e no mundo ao qual a música se refere. Quando Lennon compôs o álbum Imagine as canções falavam a linguagem dos anos 70, de uma década assombrada por terrorismos, ditaduras, guerras e vigilância armada, que o artista capturava e traduzia em forma musical. O mundo tinha uma textura violenta e opressiva que servia de material expressivo.   

E hoje? É possível imaginar Imagine na meia-idade? Aos cinquenta anos esse trabalho magnífico ainda tem fôlego? Esse efeito não dependerá muito do modo como o recebemos? Progredimos o pensamento a tal ponto de afinarmos com os ideais de Lennon? Talvez. 

O processo de criação de Imagine assinala a urgência de Lennon em querer se emancipar do crivo dos Beatles que, para ele, não representava marca definitiva. Dentre os integrantes, Lennon foi o primeiro a se desligar, devido à personalidade inquieta e insubordinada que o artista apresentava desde jovem. Os conflitos internos, resultantes de desentendimentos artísticos, de egos feridos, de amadorismo na gestão financeira, da morte do empresário Brian Epstein, do casamento com Yoko, aceleram a dissolução da banda e o nascimento de uma carreira solo que só terminou com o assassinato do cantor, em 1980.  

Antes mesmo de Paul McCartney anunciar o fim dos Beatles, em dezembro de 1970, Lennon já tinha material produzido para lançar seu primeiro álbum, o Plastic Ono Band; que, na opinião de Irapuan Peixoto, representa “um disco punk” por conta de sua “sonoridade de apenas guitarra, baixo e bateria”, gravado “de maneira mais simples possível, com som saturado e sujo, cheio de graves”.[1] Na verdade, essa “saturação” vinha sendo acumulada desde o White album, quando o artista se voltava para a estrutura simples do rock, desnudada de todo aparato orquestrado pelas mãos feiticeiras de George Martin. Canções como RevolutionHappines is a warm gun e Yer blues  prenunciavam mudanças na argumentação criativa de Lennon, segundo a qual a pureza sonora e a nudez formal substituiriam os arranjos rebuscados da fase psicodélica.  

Plastic Ono Band chocou a imprensa e o público porque escancarou um dos traços pessoais de Lennon, que é sua iconoclastia. “O conteúdo veemente das letras e crueza do som”, aliados às “mensagens diretas sobre drogas, as religiões e a política, misturadas com toques dolorosos de sua autobiografia eram descritas de maneira direta, com palavrões e sem ‘papas na língua’”.[2] Lennon alcançou com essa obra o ápice de sua rebeldia contra todos os sistemas, inclusive contra o próprio sistema que ajudou a edificar: o rock and roll

O escritor Gary Tillery chamou essa iconoclastia de cinismo idealista; posto que, tomada por certo furor egoísta, a postura de Lennon diante da sociedade era a de um homem cínico que desdenha do poder político, das convenções sociais e das convicções culturais, nutrindo uma “atitude niilista com relação a todos os esforços, crenças e valores humanos”.[3] Lennon sempre foi do tipo que se orgulhava de sua inteligência acima de média, de sua independência mental, e trabalhar sozinho, compondo um álbum apenas seu, seria motivo para fazer o cinismo saltar. 

O artista que compôs o álbum Imagine é um cínico que veio, desde Plastic Ono Band, desmontando esquemas ilusórios, criticando a sociedade em que vivia, questionando dogmas e doutrinas. Lennon só pôde alcançar o resultado de Imagine tendo passado pelo cinismo de God, canção na qual exorcizou demônios, expondo as fraquezas do homem que até ali considerava como um ser “acabado”. God derrubou as ilusões: Jesus, Buda, Hitler, Bíblia, I-Ching, Mágica, Elvis, Beatles. O sonho acabou. O passado passivo se desintegrou no agora inquieto e ativo.  

O cinismo defende o agora em detrimento do passado atado às crenças engessadas. Mas é possível promover essa derrubada de poderes sem, no entanto, quebrar o sistema inteiro. Lennon declarou: “não espere ver-me em trincheiras, a não ser que seja com flores. No que diz respeito a derrubar alguma coisa em nome do marxismo ou do cristianismo, quero saber o que vocês farão depois que derrubarem tudo. Quer dizer, não seria possível usar partes desses sistemas?”[4] Nesse sentido, seu cinismo é idealista, humanista, porque respeita a única coisa que vale em meio a todas as formas de doutrina e de poder: o indivíduo, o eu,  a liberdade de ser. 

O álbum Imagine consiste em uma narrativa do indivíduo liberto das camisas de força que empobrecem o espírito e impedem o que Lennon prezou, que é a capacidade humana de viver suas próprias experiências, de se abrir ao novo, ao agora, de ser socrático, questionador e, acima de tudo, “modificar seu comportamento de acordo com aquilo que se prega”. [5] Vê-se na capa e na contracapa do disco a intenção do artista. Lennon etéreo, imerso entre nuvens, tentando encontrar a serenidade perdida com os tormentos do disco anterior; mas também contemplativo, mirando o céu na tentativa não de se entregar a Deus, mas de ver com clareza. 

Analisando o álbum faixa por faixa, é possível cogitar a ideia de que algumas canções de Imagine são pontos de partida do cinismo lennoniano. Nessas canções encontramos o resíduo daquele “eu” desmembrado em God. É então que, em Crippled inside, o cantor nos apresenta um indivíduo real, carnal, que sofre, que se desmantela, escondido por detrás de máscaras sociais: “você pode pentear o cabelo/ e parecer bonitinho/você pode esconder seu rosto/atrás de um sorriso” ou “você pode se chamar a raça humana/você pode usar um colarinho e uma gravata/ mas uma coisa você não pode esconder é quando está aleijado por dentro”.[6] 

O indivíduo mascarado de Cripple inside se tortura pelas razões apresentadas em It´s so hard; situações essas tão frequentes no mundo neurótico em que vivemos hoje. Trata-se de um indivíduo esmagado pelo dever, ansioso diante de exigências que muitas vezes lhe são alienadas, não lhes pertencem: “você tem que viver/você tem que amar/você precisa ser alguém/ (…) você tem que comer/ você tem que beber/ você tem que sentir algo/ você tem que se preocupar”. Se viver é cumprir deveres, o indivíduo paralisa as forças e não encontra saída senão na falência e na derrota: “é tão difícil, é realmente difícil/ às vezes sinto que vou cair”.[7] 

Como se não bastasse, esse indivíduo – que sofre por deveres que lhe são exigidos em um movimento que parte de cima, de autoridades, para baixo, para aqueles que se subordinam – é induzido a ser o que doutrinas e crenças determinam como valor. I don´t wanna be a soldier, apesar de ser um evidente hino antibélico, um protesto contra a Guerra do Vietnã, vai além de uma crítica à guerra. O cinismo de Lennon provoca a desarticulação não só da guerra, enquanto poder, mas principalmente do poder enquanto autoritarismo, enquanto anulação do “eu”.  

A canção nos mostra um indivíduo revoltado que diz “não”, que traça limites entre a esfera do “eu” e do “outro”, a fim de salvaguardar direitos; e esse direito primordial é postulado sob a forma de um grito primal: eu não quero. O indivíduo não quer morrervoar, nem chorar; por isso, defende-se: “eu não quero ser um soldado”, “eu não quero ser um ladrão”, “eu  não ser um homem do clero”.[8] Ser “homem pobre”, ser “homem rico” equivale a “ser um fracasso” e a razão disso só vamos compreender com a letra da canção Imagine. 

How do you sleep?, embora seja um excelente rock, contribui pouco para a compreensão conceitual daquilo que Lennon, na qualidade de músico reflexivo, crítico, estava construindo. Por ser outra destilação de veneno contra McCartney (“como você consegue dormir?/ (…) O som que você faz parece música de elevador para meus ouvidos”), a canção vale mais para os interessados nas animosidades travadas entres os gênios do que para um estudo sério. 

No entanto, Gimme some truth injeta densidade ao pensamento de Lennon. A canção também representa o mesmo que I don´t wanna be a soldier: a obviedade do tema. É óbvio que se trata de um ataque à política macartista de Nixon que, além de belicista, perseguia qualquer pessoa que advogasse publicamente o comunismo. Ainda que “hipócritas de mente quadrada”,  “reprimidos”, “inconsequentes”, “neuróticos”, “psicóticos” causem aversão a Lennon; que esses tipos representem o que um espírito inconformista e libertário mais rechaça, o que está em questão não é isso. Nessa canção, Lennon faz um apelo comum a todos os homens de razão. Soa como uma espécie de Platão roqueiro clamando pela areté, pela virtude, no meio de uma Grécia apodrecida pela tirania. Porque havia guerra e ganância, era preciso virtude. 

E a virtude é verdade; ou melhor: é querer “um pouco de verdade”. O desejo de ser virtuoso por meio da verdade, como forma de não se contaminar com a podridão social produzida pela ganância, pelo autoritarismo e pela violência, responde anseios de outra canção: How? Lennon fez uso de duas indagações em seu álbum. How do you sleep? só questiona o valor artístico de Paul – o que vale apenas para um Lennon ressentido. Ao passo que How? questiona algo maior que vai encontrar eco no sentido total do álbum. Como é possível? É essa questão. 

Possível o quê? Viver, seguir, caminhar. Essa pergunta cabe tanto ao Lennon ainda inseguro com sua carreira beat solo, quanto a nós seres desse mundo. O cínico quer viver ao seu modo, sem obedecer aos paradigmas, aberto às experiências; mas o idealista quer definir uma meta, um sentido, pois seguir, isento de razão, é perder-se. Lennon não quer morrer, nem chorar; quer seguir. Mas como “ir em frente/ quando eu não sei para que lado me virar”; “ir em frente/ quando não sei que caminho estou encarando”?  “A vida pode ser longa/ E você precisa ser forte/ O mundo é tão duro”.[9] Então? O que fazer senão buscar a verdade como virtude? 

Lennon, pelo que vimos, concebe sua “verdade” por dois prismas: o amor e a comunhão. A canção Oh, Yoko! responde de modo exclamativo a pergunta de How? O sentido da vida é o amor, a única força que sustenta o “ir em frente”. O ser amado é aquele que oferece o esteio para o artista seguir e superar as dores e exigências da vida; é aquele por quem, entre momentos gloriosos e banais, chamamos o nome: “durante a noite”, “durante o barbear”, “durante o banho”, “durante o sonho”, enquanto as coisas passam. [10] 

Em paralelo ao amor, o que forma a verdade é a comunhão; que, embora denote tendências cristãs, em nada tem que ver com as parábolas do Filho do Homem. É quando a canção Imagine, tão tocada ao redor do mundo, justifica-se não por si só, mas pelo que Lennon traduziu de seu pensamento cínico idealista. A canção é sugestiva; nos incita ao uso da imaginação – que, para decepção de Kant, é a faculdade mental que em nós mais se atrofiou ao longo dos anos. Imaginar. Pensar além do vulgar, do comum,  do padrão, do limite, do aceitável, do normativo. Abrir-se, mas considerando o céu e sua transparência, sua evidência: “acima de nós” somente a razão, a claridade, a verdade e nenhum Deus; pois esse Deus antropomórfico, judaico-cristão, conforme dito na canção God, “é  um conceito pelo qual medimos nossa dor”.11 

Sob o céu da verdade, olhando para o alto na mesma proporção que para baixo, para as coisas da “vida dura”, Lennon apela: “imagine que não exista paraíso (…)/ nenhum inferno sob nós”, “imagine todas as pessoas vivendo o presente”, sem esperanças celestes e Juízo Final, imagine a vida no agora com suas impermanências. Mais além: “imagine que não há países/nada porque matar ou morrer/ nenhuma religião também/ imagine todas as pessoas/ Vivendo a vida em paz.” Por fim: “imagine que que não existem propriedades/ que não existe ganância nem fome”.[11] “Será que você consegue?”, quer dizer, consegue cogitar uma fraternidade do homem, um mundo ideal em que “todas as pessoas” compartilhem “o mundo inteiro”, sem distinção de credos, de etnias, de símbolos, de línguas, de orientações sexuais; sem territórios. 

Alcançar esse nível de pensamento; fazer do existir uma consequência da imaginação e do sonho; inverter a lógica cartesiana, burguesa e capitalista, em vista de um cinismo idealista, foram as provocações feitas por Lennon através de uma canção singela, composta inteiramente no piano, aparentemente indefesa; mas que causa o mesmo tremor de um canhão de guerra. Apenas na aparência a canção de Lennon é comunista, é agitprop da esquerda. O que ela pretende é romper barreiras do pensamento, considerando a imaginação como arma. Por isso, Nixon perseguiu Lennon. Por isso, ainda cantamos seus versos: porque imaginar ainda é possível.   


[1] PEIXOTO, Irapuan. Artigo Os 40 anos do álbum Imagine. Site HQrock: quadrinhos, músicas e afins. 

[2] Idem, ibidem.  

[3] TILLERY, Gary. John Lennon: o ídolo que transformou gerações. São Paulo: Universo dos Livros, p.84. 

[4] Idem, p.96. 

[5] Idem, p. 130.  

[6] LENNON, John. Imagine. EMI Records Ltd, 2000.  

[7] Idem, ibidem.  

[8] Idem, ibidem.  

[9] Idem, ibidem.  

[10] Idem, ibidem. 

[11] Idem, ibidem.  

Advertisement
Receba notícias no WhatsApp
entrar grupo whatsapp Filipi Gradim: Imagine na meia-idade
Advertisement
lapa dos mercadores 2024 Filipi Gradim: Imagine na meia-idade
Advertisement

Comente

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui