Filipi Gradim: Janete Coragem

Os 50 anos da novela Irmãos Coragem

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A responsabilidade pelo fato de lidarmos com a ansiedade dessa forma contemporânea com a qual nos habituamos, a saber, a forma seriada de pensar e de agir em relação ao futuro, se deve, em parte, à teledramaturgia brasileira. A partir da década de 50, no Brasil, esperar por algo passou a ter endereço certo e horário nobre. Com o surgimento da telenovela, “o esperar pelo dia seguinte” se tornou um modo seriado de comportamento, levando as pessoas a se preocuparem com as cenas do próximo capítulo, a se prenderem ao destino de vidas imaginárias como se fossem reais e fizessem parte de sua vida. Tomou-se uma proporção tal que ganhou rede nacional, invadindo aparelhos televisores e dominando o lazer de milhares de famílias.  

janete Filipi Gradim: Janete Coragem
Janete Clair

A genial escritora Janete Clair (1925-1983) se acha entre as principais responsáveis por assinar esse novo estilo de expectativa cotidiana e de fazer com que o Brasil inteiro se dobrasse às reviravoltas e mistérios desse produto cultural fascinante que é a telenovela. Entretanto, consoante fomenta a canção de abertura de Irmãos Coragem, interpretada por Jair Rodrigues: “é preciso coragem/que a vida é viagem/destino do amor”. Janete compreendeu esse imperativo moral desde que se tornou a nossa senhora das oito (como ficou conhecida), assinando as principais novelas da Rede Globo, naquele momento a emissora líder de audiência. Não era fácil ser mulher, escritora popular, bem-sucedida e ocupar uma função de influência. 

Foi preciso coragem para uma mulher solteira assumir “o destino do amor” e se unir a Dias Gomes, um homem casado, escritor de extremo talento e de renome entre os intelectuais de esquerda; e, por isso mesmo tão distinto em caráter. Aquele artista de teatro, membro do Partido Comunista Brasileiro se separou da mulher e se tornou marido de Janete, mas também seu admirador e mestre. Ao lado de Dias, quando trabalharam na Rádio América, Janete, que era exímia datilógrafa, aprendeu a escrever artisticamente auxiliando Dias Gomes na redação dos romances do futuro esposo. Boa aluna que era, desenvolveu com ele a técnica dramatúrgica. 

Também foi preciso coragem para aceitar o convite de Dias Gomes de escrever Rumos opostos (1948), sua primeira radionovela como autora. Nessa época a radionovela era exibida duas vezes na semana no formato de 15 a 20 capítulos com duração de 15 minutos. Foi dentro desse limite estreito que Janete começou a mostrar sua potência, mesmo sem experiência. Dias Gomes confessou: “foi aí que vi que ela tinha um grande talento, uma imaginação portentosa.” A coragem animou Janete a alimentar sua ambição pelo queria alcançar, ou seja, a televisão: “não me conformava de estar fora da televisão. Gosto de respostas imediatas. Eu queria entrar para a televisão e não tinha oportunidade.” Com o surgimento de várias emissoras no decurso da década de 60 (Excelsior, Record e Globo), tornou-se mais fácil conquistar esse lugar.  

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Na Rádio Nacional, o fôlego criativo de Janete Clair foi tanto que a escritora emplacou simplesmente quinze novelas, durante a década de 50. Foi um ensaio do efeito devastador de suas narrativas. Mas então veio a morte prematura de seu filho, aos dois anos, e o choque de ter que lidar com o luto. Arrasada emocionalmente, Janete manteve firme a coragem: “depois de quatro anos” voltada ao cuidado do lar e dos filhos, “eu disse não. Não aguentava mais a vida de ficar dependendo do dinheiro de meu marido para tudo. Aí comecei a fazer novelas.” 

 Pelo fato de a telenovela, enquanto veículo de massa, conseguir “prender” o público, através da seriação dos capítulos e da expectativa do dia seguinte; e, principalmente, de mantê-lo sob sua custódia no plano da imaginação; então ela é um instrumento de domínio. Diante dos símbolos e mitos que a telenovela fabrica e despeja, o público se deixa encantar com o mundo que lhe é distante e se envolve empaticamente com o mundo que vivencia. Por isso, telenovela é pura projeção psíquica, onde o espectador, animado com o que vê, se identifica com o que é no real e com o que deseja no imaginário. Janete Clair foi mestre nessa técnica projetiva.  

 Em relação a isso foi bem clara: “só pensava no público, nas donas de casa, em atingir o agrado total das donas de casa”, ou seja, de conduzir o povo a um lugar imaginário e, ao mesmo tempo, real. Ademais, o motor criativo de Janete foi a empatia: “eu entendo muito o povo e seus problemas. Posso não morar no subúrbio, mas converso com meus empregados, com pessoas simples e humildes. Gosto de ouvir histórias. Minha cabeça funciona como um computador que registra tudo isso e enriquece meu arquivo de memória e de imaginação.” 

Arthur Xexéo observou que, “se ainda não havia uma técnica para se escrever telenovelas, Janete Clair estava pronta para inventá-la”. Com a novela Véu de Noiva (1969), a primeira que escreveu para a TV Globo, Janete apresentou seu estilo. Inspirada no formato que Bráulio Pedroso criou para a estrondosa Beto Rockfeller (1968), na TV Tupi, Janete seguiu os mesmos passos e entendeu que este seria o modelo tipicamente brasileiro de fazer novela, a saber: situando a trama na urbanidade ou em algum cenário brasileiro; aproximando o diálogo do modo coloquial de falar; e, por fim, apresentando personagens identificados com o cotidiano. 

No entanto, foi com Irmãos Coragem (1970) que Janete Clair se consagrou como autora. A trama estreou em plena euforia pela Copa do Mundo, em 8 de junho de 1970, no horário das oito horas. Ainda produzida em preto e branco, a novela foi dirigida por Daniel Filho, Reynaldo Boury e por Milton Gonçalves e contou com 328 capítulos, durando treze meses; a maior novela (em extensão) feita na história da teledramaturgia. Já experiente com Véu de Noiva, Janete Clair soube explorar bem a duração longa da novela, entremeando a história com conflitos paralelos e inserindo personagens que não só cumpriam a função de diversificar a narrativa, bem como para incrementar e reforçar o conflito principal. A bem da verdade, esse foi o grande desafio artístico enfrentado por Janete Clair: o de tornar a história relevante e atrativa para o público. 

Leitora voraz, Janete bebeu da fonte de Irmãos Karamazov (Dostoiévski), no romance As três faces de Eva (Thigpen e Checley) e na peça Mãe Coragem (Brecht). Conta-se também que Daniel Filho sugeriu a Janete que se inspirasse nos faroestes do diretor italiano Sergio Leone. Colando todos esses elementos, Janete construiu em Irmãos Coragem uma novela mista, que incluiu o recursocinematográfico do western, do bang-bang, e aliou ao conteúdo dramático de obras clássicas estrangeiras; que, mesmo assim, não se deslocavam da realidade brasileira.  

O cenário de Irmãos Coragem é o Brasil profundo, interiorano, imerso nas planícies do cerrado de Goiás. O faroeste caboclo se passa na cidade fictícia de Coroado. O conflito central é armado entre a família Coragem e um latifundiário despótico, em face do qual a população se ajoelha temerosa, o coronel Pedro Barros (Gilberto Martinho). João (Tarcísio Meira) e Jerônimo (Claudio Cavalcanti) são garimpeiros e, ao lado de Brás Canoeiro (Milton Gonçalves), lutam para se impor dentro de um contexto de exploração do trabalho promovido pelo coronel. Nos primeiros capítulos, Brás é espancado porque o capanga Juca Cipó (Emiliano Queiroz) cisma que ele engoliu um diamante. João e Jerônimo, honrando o sobrenome, enfrentam a injustiça cometida. Entende-se aí quais são os eixos conflitivos: o patrão e a classe trabalhadora. 

Monopolizando o comércio de diamantes, Pedro não admite que João negocie com estrangeiros e ameaça com violência quem o desobedece. Depois da surra dada em Brás, alguns jagunços e os capangas de Juca Cipó e Lourenço (Hemílcio Fróes) invadem a casa de João e agridem o velho e debilitado Bastião Coragem (Antônio Vitor). A “revolta na garganta” de Cema (Suzana Faini), esposa de Brás, ecoa até os corações destemidos dos Coragem contra “o maldito Pedro Barros”, “o dono de todos os garimpos”. Mesmo em posse do próprio garimpo, João é sensível ao fato de que “todos sofrem o domínio” do coronel para quem o povo “é meio escravo”, pois “as pedra que a gente acha (…) é obrigado a vender” para que “um homem só possa mandar na cidade”. Por isso, é preciso expulsar os assassinos, os maus e corruptos. 

“Condoído da sorte” de Brás, ciente que a opressão ao povo “é coisa de revoltar o santo”, “é barbaridade”; e mais: acreditando “na bondade humana, naquilo de bondade que as pessoas têm dentro de si”, João tenta “apelar para o sentimento de justiça” em Pedro Barros, mas em vão. O coronel lava as mãos. Depois, ao saber que o pai foi agredido, João se une a Jerônimo e a Duda Coragem (Claudio Marzo), o irmão mais novo, desejando vingança. Ocorre, assim, a transição do caráter do herói, que Janete efetua logo nos primeiros capítulos. João, o mais sensato, desiste de tentar resolver os conflitos pela paz e entra no conflito armado.  

Mas o pai Bastião aconselha o filho heroico: você “tem que ser justiceiro, mas humano. Não queira nunca ser o vingador.” Com a ajuda do promotor Rodrigo Vidigal (José Augusto Branco), João tenta interceder em nome de Brás, mas o corrupto delegado Diogo Falcão (Carlos Eduardo Dolabella) encoberta o caso, favorecendo o poderio de Pedro Barros. João deixa de acreditar na justiça e na legalidade e se torna o bandoleiro que luta com as próprias mãos, que “pensa que pode consertar essa cidade inteira, que pode impor lei e até fala em justiça.” 

Certo dia, João é recompensado pelo labor do garimpo e, junto com Brás, encontra um diamante de grande quilate. É bela a cena em que João mergulha o rosto na terra cavando até encontrar “a maior pedra do mundo”. Brás delira de alegria. João cavalga até em casa e compartilha sua vitória com os seus. Seu espírito socialista reparte o bem entre os pobres. Mas a felicidade dura pouco. Pedro, ao saber, tenta roubar a pedra. Primeiro acusando João de que a terra onde a pedra foi encontrada é sua e não da família Coragem. Depois, usando a força de Juca Cipó e Lourenço, que invadem a casa, roubam a pedra, estupram Cema e provocam a morte de Bastião. 

A partir dali, João se descontrola, golpeando Pedro Barros com socos e lhe apontando uma faca. Como retaliação, Pedro forja a morte de Lourenço, afugentando-o de Coroado, fazendo pesar o crime sobre João e virando a cidade inteira contra o herói. Ao longo da trama, João tenta recuperar sua pedra até que, no final da novela, em posse dela, ele a estilhaça por inteiro na frente do povo, como forma de destruir o ovo da serpente, o objeto da cobiça e da destruição da cidade que é incendiada pela loucura de Pedro Barros. Em tom apocalíptico, evocando a tirania dos césares, Janete Clair encerra drasticamente o conflito entre as forças. 

Paralelo a isso, se encontram tramas familiares, amorosas e psicológicas. Todas confluem para dentro do cenário de guerra montado entre os Coragem e Pedro Barros; são conflitos que despontam sob o fundo do problema central, que é político, pois cada personagem ou preserva ou destrói a liberdade. Há o doutor Maciel (Ênio Santos), alcóolatra amargurado por ter matado a mulher; Cema e o trauma pelo estupro sofrido; Brás e sua desconfiança se o filho é seu ou não; Stella (Glauce Rocha), mulher de Pedro, adúltera e perdida em dívida de jogo; Juca Cipó, com sua debilidade mental; Duda usando de meios ilegais para se manter na carreira de jogador; Domingas (Ana Ariel) sofrendo a rejeição de seu filho Juca Cipó. Potira (Lúcia Alves) dividida entre um amor verdadeiro por Jerônimo e o casamento de aparências com Rodrigo. 

 No entanto, o conflito mais relevante (e interessante do ponto de vista dramático) dessas tramas envolve amorosamente a professora Maria de Lara (Gloria Menezes), a filha de Pedro, com João. Atravessada por um conflito psíquico, Lara sofre com uma tripla personalidade que se mostra em momentos adversos, causando confusões e desentendimentos. Lara é figura tensa, contida e dócil, “umas dessas pedras que só aparecem de cem em cem anos. Pedra que a gente nunca viu igual”. Mas, abruptamente, essa candura de pessoa se transforma, assumindo o espírito arrojado e expansivo de Diana e o espírito maduro e centrado de Marcia.  

Por mais que Janete reforçasse que não gostava de política, no sentido “de tomar partido, de ser isso ou aquilo, socialista ou conservadora”, marcando, assim, a diferença de caráter entre ela e Dias, Irmãos Coragem é a prova de que não precisa ser engajado para promover uma crítica feroz ao status quo. Em entrevista à Revista Amiga (1981), Janete declarou “não sou política, mas não sou nenhuma alienada. Estou vivendo em uma época conturbada, das mais difíceis”. Se a situação era conturbada no período de reabertura, com João Figueiredo, em 1970, com o truculento Médici no poder, quando Irmãos foi escrita, a situação era trágica.  

Irmãos prendeu o público através de um panfleto discreto contra a opressão do imperialismo capitalista que massacrou os trabalhadores dos países periféricos da América. A tosca censura não enxergou na novela que os garimpeiros eram a imagem do povo brasileiro injustiçado defendendo seu quinhão de terra; não viram que ali se encontravam os guerrilheiros camponeses armados e unidos contra a ditadura de um homem só. O tom romântico da trama eclipsou a intenção – não ideológica, mas humanista – de Janete Clair. Estava tudo lá, desde a abertura: aquela seria uma novela-aventura, sem herói de capa e espada, sem princesas encasteladas, sem amores impossíveis. Janete escreveu uma aventura dentro de termos reais, políticos, visibilizando a luta dos pobres, negros, indígenas e analfabetos em plena ditadura. Que coragem! 

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