Filipi Gradim e Marcus Pedroza: Máscaras de Dioniso

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As divindades deixam rastros por onde algures passaram ou por onde jamais cogitariam passar. De modo que não morrem. Possuem uma elástica habilidade e capacidade de se alongarem pelas eras. James Douglas Morrison (1943-1971), o Jim Morrison, poeta, líder vocal e compositor do grupo de rock The Doors, pode ser considerado uma espécie de alongamento de uma divindade ancestral. Vale dizer, antes de tudo, que tal declaração a fazemos não à revelia, por gosto ou fanatismo de qualquer parte. Poderia soar petulante ou sacrílego querer coroar um rockstar desordeiro e alcóolatra, louvando-o feito um deus ou algo similar. Mas a biografia de Jim confirma haver tal aproximação (profana) do homem com o divino.  

Não faltaram louvações desse gênero a outras celebridades importantes na música e no cinema. Elvis, Dean, Marylin, Brando, Jackson, Madonna, Aretha, Chuck, Marley. Todos esses e outros, de alguma forma, foram batizados pelo epiteto de divos e exaltados pela supremacia de seus nomes e talentos. No caso de Jim Morrison, as razões que norteiam tal batismo divino se ligam mais à vida do artista do que propriamente à sua capacidade técnica, ao seu virtuosismo poético e musical. Havia algo penetrante que conduzia Morrison ao brilhantismo de sua arte, não em razão do empenho ou aprendizado técnico, mas em razão de sua energia vital.  

No filme The Doors (1991), escrito e dirigido por Oliver Stone, há uma cenaem que o guitarrista Robby Krieger, em tom confessional, diz a Jim Morrison o seguinte: “até onde sei, fiz música com Dionísio. Tivemos momentos no palco que ninguém jamais imaginará”. A cena é carregada por uma luz melancólica, pois se trata da última vez em que Jim vê os amigos da banda, antes de partir para morar, com a namorada Pamela, em um apartamento em Paris, e lá ser encontrado morto na banheira por ataque cardíaco. É a partir da fala de Krieger que formulamos o argumento para entender como Morrison se liga a uma divindade. 

Dioniso é a divindade que atravessava o corpo selvagem do artista Jim Morrison quando se encontrava em cena, cantando, atuando, dançando e recitando poemas no improviso do show. Outras entidades estão também abrigadas no artista. Na infância, ao presenciar um acidente na estrada no Novo México, Jim teve a primeira experiência mística. Ele relata que se impressionou profundamente ao ver o tumulto do acidente em que um caminhão, carregado de indígenas, se chocou com uma viatura. Aquilo, disse, foi “a primeira vez que descobri a morte (…) Penso que nessa altura as almas daqueles índios mortos (…) andavam a correr aos pulos, e vieram parar à minha alma, e eu, apenas como uma esponja, ali sentado a absorvê-las”.  

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Jim Morrison, por sua natureza esponjosa e receptiva, absorveu forças ocultas. E isso se deu pelo fato de que ele é a “frágil casca de ovo mental”, como revela no poema musicado Ghost Song, por sobre a qual “espíritos se aglomeram”. No mesmo poema ele diz também que escolher “a divindade do dia (…) é a primeira coisa a ser vista” como forma de sacudir “os sonhos de seus cabelos”. Ou seja, o artista ressalta uma capacidade de aderência tão alta que, além dos poros, precisa extravasar forças ocultas que são de duas modalidades: a força mágica e enfeitiçada dos indígenas mexicanos e a força ébria e solvente de um deus como Dioniso.  

Feito ator grego, Morrison se mascarava em cena. No entanto, convém dizer que tal máscara exprime a força selvática do deus Dioniso. Tal força não é uma causa por trás da máscara, mas a própria máscara, agindo de forma difusa, fazendo e refazendo a máscara para poder dizer-se.  Na música, Dioniso tomou o corpo de Morrison. Na filosofia, absorveu o pensamento do “homem dinamite” Friedrich Nietzsche (1844-1900). Desde o início de sua obra, o deus grego é uma questão intermitente que justifica a ligação do autor com a tragédia e com o trágico. Sim. Dioniso é uma expressão trágica. E isso se dá porque ele aparece em cena com o um jogo de forças, uma contenda que alterna entre violência e paz com seu “rival” Apolo.  

 Apolo é a antítese divina de Dioniso, pois simboliza a ordem, a beleza e a clareza manifestas nas criações humanas. Enquanto Dioniso é a potência que irrompe da natureza em seus caminhos misteriosos. Durante o desenvolvimento a filosofia nietzschiana, Apolo desaparece e somente Dioniso permanece como se houvesse aprendido que não precisa de Apolo para aparecer entre os seres humanos. O próprio Dioniso é ordem e desordem, encontrando medida dentro da desmedida. Dioniso-Morrison é a encarnação das forças caóticas e telúricas que ganham medida com arte, fazendo rock.  

 Jim dá forma a um poder informe e o torna audível e visível. Para tanto, Morrison assume muitos em um só corpo. Seu poder é fluido e afeta a todos que estão em consonância com ele, daí a possessão pelos indígenas e as visões sobrenaturais sobre o palco. Como já dito pelo mestre Nietzsche: “nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas”. No palco, Jim não imita Dioniso; Jim é Dioniso, pois seu rock extravasa o “canto de bode” que homenageia e exalta a vida como elã fundamental e não como um ideal utópico. A máscara do trágico não é nada além de um veículo que leva os homens a experimentarem a potência da vida, sem moralismos, viajando na tempestade, como diz a bela canção Riders on the storm

A potência de Morrison está ligada a essa capacidade de traduzir algo que sempre esteve lá. A sonoridade do The Doors não é “novidadeira”, já que se utiliza de expressões musicais conhecidas, como o rythm and blues. No entanto, é profunda, no melhor sentido do termo. E ser profundo aqui não é sinônimo de erudição enorme ou qualquer uma dessas coisas pedantes que pouco prestam em matéria de arte, mas ser capaz de remexer no fundo da natureza humana e trazer de lá força; e, então, plasmar essa força. Morrison nos convida em Break on through: “atravesse para o outro lado”, na tentativa de encarar a vida na sua sombra, onde “cavamos nossos tesouros”.  

O solo produtivo de suas canções-poemas é a sombra, a noite e o misterioso. Em Moonlight drive ele dizia que é preciso “penetrar na noite que a cidade dorme para esconder”. Morrison apelava pela rendição ao inconsciente dos “mundos que nos esperam”. Nada muito diferente do que Nietzsche pensava, pois Dioniso é território selvagem, animal, que tendemos a esconder. “Dionisíaco” é todo impulso que nos coloca em contato com nosso abismo, que nos propala ao “transbordar apaixonado e doloroso em estados mais escuros”, que nos entrega ao “monstruoso, múltiplo, incerto e horrível” que nosso “ordenamento pela regra” tanto teme. 

Não é por acaso que entre as influências de Morrison se encontram autores como Nietzsche, Kerouac, Huxley, Baudelaire e Poe, mestres em questões ocultas e críticos contumazes dos paradigmas que fundam a cultura ocidental. Apesar de o instinto selvagem jazer “em seu fundo”, o ser humano é orientado a fazer valer uma “vontade de medida”, como diz Nietzsche. Essa vontade nos preserva em nossa pretensa noção de “eu”, como se cada um de nós fosse uma célula individual, separada do todo, e, assim, protegida de algo que a dissolvesse. 

As apresentações de Morrison ativavam essa dissolução, indo ao encontro do outro, rompendo a linha divisória rockstar-público. Para Nietzsche e Morrison, encarnações de Dioniso, o “eu” é uma “sutil legítima defesa” contra “os outros” que habitam nossas profundezas. O inconsciente guarda, na noite que nos penetra, forças dionisíacas; e ao mesmo tempo em que transborda saúde, transborda o mal. A vida é tempestade e ímpeto, como afirmou o poeta Friedrich Klinger. Mas somente “os mais raros de todos e os mais bem aquinhoados chegam”, como afirmou Nietzsche, “às supremas e mais iluminadas alegrias do homem”. Nessa supremacia, “habitam, amorosamente, um junto ao outro, em um único homem, uma riqueza transbordante das mais variadas forças”. Então, não é mais o “eu” e sim uma massa de forças que se une no prazer e na dor, por meio da música. Atitude que se tornou comum nos anos 60. 

Dioniso-Morrison faz escapar o trágico da tragédia, indo em consonância com a interpretação moderna desse fenômeno, bem representada por Nietzsche. Logo, Morrison não é trágico quando sobe ao palco para apresentar uma canção. Sua performance é que é trágica, ainda que sua vida não seja uma performance; e ela é trágica e revela ao mundo mais uma questão incômoda: a vida é força que irrompe na natureza de maneira violenta e difusa. 

Por saber que a vida é trágica, Dioniso-Morrison conseguiu tirar dali a sua força, mas também sabia, como bom sátiro do cortejo do deus grego, que o fim chegaria como chega para todos. Afinal é esta a sentença: “estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”.  Nesse mundo de forças múltiplas e transbordantes, a morte é também a beleza e a maldição dos homens. O fim é esperado como outra glória da vida. Resta fazer amizade com ele: “este é o fim, meu caro amigo. Este é o fim. Meu único amigo, o fim”.  

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