Filipi Gradim: Mil oitocentos e… lá vai choro!

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Está para nascer um ritmo que seja mais deliciosa e genuinamente carioca do que o choro. Há mais ou menos 150 anos que somos agraciados com a beleza melódica desse ritmo, que não só se destacou como um dos mais férteis dentre todos na música brasileira, bem como alçou o Rio de Janeiro como a principal capital da cultura. Se reportarmos à gênese de sua criação, veremos que o chorinho se enquadra e se afina aos moldes artísticos e às experiências estéticas da época e que não poderia ter sido concebido em outro lugar senão no Rio de Janeiro.

O nascimento do choro data aproximadamente dos anos de 1870, quase duas décadas antes de o Brasil tomar medidas decisivas para um possível começo de modernização da sociedade, como a abolição da escravatura (1888) e a proclamação da República (1889). Logo, o choro respira a atmosfera de progresso frente a uma modorrenta história de provincianismo, conservadorismo e racismo. Não seria de estranhar que o chorinho tivesse em sua concepção a ruptura de alguns paradigmas que se engessaram tanto na cultura quanto na música.

Na Europa, o Impressionismo promovia rebeldias nas artes plásticas, com a ousadia de Monet, Renoir e Lautrec e também na música, com Debussy. Mas isso só foi possível graças à mudança no plano social e econômico, a partir do momento em que a industrialização ganhou um terreno significativo na cultura e condicionou os artistas a modificarem a técnica. Em vista de tal contexto, em que a máquina centralizava o poder de produção em massa, a técnica teve que encontrar meios diferentes de se expressar e, assim, a arte circunscreveu um ciclo novo.

 O choro não se ajustou ao processo de mecanização das técnicas, não alterou sua forma de tocar, mesmo porque era um recém-nascido na música. Pelo contrário, na sua carga genética já se encontravam traços da modernidade ascendente. A principal caraterística moderna do choro é a fusão de gêneros musicais. A razão disso nada mais é do que resultado do desgastado processo de libertação dos negros escravizados que, graças ao decreto federal, poderiam acessar determinados locais e ocupar funções, não como seres coisificados, mas como cidadãos.

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Vale lembrar que, no Rio de Janeiro, situava-se a capital federal – o que já consistia em motivo suficiente para que o agenciamento entre negros e brancos ocorresse não mais na esfera colonialista, mas na relação compartilhada e fraternal que a criação artística faculta. Dom Pedro II e a família real habitavam no Rio e, no salão do palácio da Quinta da Boa Vista, realizavam saraus, algo muito em voga entre as elites brasileiras. O flautista e compositor Joaquim Antônio Callado (1848-1880) era figura de destaque e presença garantida nesses encontros, não só por sua virtuose, mas também pelo fato de a flauta ser, segundo nos revela Tinhorão, “o terceiro instrumento mais popular da segunda metade do século 19”, ao lado do violão e do cavaquinho.

O Brasil, até antes da chegada e da instalação da família real em 1815, desconhecia instrumentos como piano, clarinete, violão, flauta, bandolim e cavaquinho. Da mesma forma desconhecia os ritmos que animavam os saraus, já que estes eram propriedades da cultura europeia. Nos saraus era comum a apreciação da polca, ritmo tcheco que promovia danças no salão, além da valsa, da quadrilha e da mazurca. Atento a isso, Callado absorveu a febre do momento e agregou a polca como ritmo principal de suas apresentações, com o acento brasileiro que lhe tornou característico, ou seja, fundindo-o com ritmos africanos, como o lundu.

Não demorou muito para que o talento de Callado atraísse o maestro Batista Siqueira e, assim, constituíssem “o mais original agrupamento reduzido do país”, grupo pioneiro de choro, o Choro de Callado. Callado e Siqueira consolidaram a unidade cultural Europa-África e conceberam um ritmo novo, brasileiro em nome e sobrenome. Esse foi o primeiro passo para o nascimento do choro enquanto gênero. Foi preciso, no entanto, que ele ultrapasse a realeza dos salões e ganhasse território nas ruas, sendo absorvido pela gramática boêmia da cidade. Em bairros como Cidade Nova, Estácio, Catete e na praça Tiradentes, o choro fortificou sua aproximação com as camadas populares, já que a polca variou o ritmo, se tornando outra coisa.

Quando saiu do salão, a dupla Callado e Batista se deparou com uma configuração social diferente: a classe trabalhadora; que rompia com a divisão bipartida da sociedade (então limitada a ser ou senhoril ou escrava). Dessa nova classe emergiram músicos amadores, em geral pobres, mestiços e negros, que trabalhavam na Estação de Ferro Central do Brasil, Correios, Telégrafos, nas repartições públicas ou nas bandas do Exército. Por amor e sem nenhuma expectativa financeira, esses artistas de “hora extra” se reuniam nos bares ou quintais e, pouco a pouco, formaram outros grupos de choro, levando a música, que tinha sido criada na privacidade do lazer cortesão, para o domínio e para o acesso dos moradores da classe baixa.

Os músicos tocavam “de ouvido”, de modo que esse método espontâneo terminou por fazer a polca desandar.  Esse desacerto consolidou ainda mais o chorinho já iniciado por Callado. De que maneira isso se deu? Os músicos populares entenderam que algo deveria ser impresso na música europeia para que ela se abrasileirasse. Era insuficiente apenas africanizar os costumes europeus. Os músicos foram além: modificaram a polca, cujo andamento acelerado, passou a ralentar. Ademais, a polca recebeu um peso inaudito, sendo sentimentalizada. Quer dizer, os músicos introduziram uma leve melancolia rítmica que lhe relegou o termo “choro”.

Os “chorões” eram homens do povo que fizeram da música a paixão que encobria o ciclo rotineiro de suas profissões oficiais. Foram responsáveis por socializar a música já mesclada com o erudito e o popular, engendrando “as orquestras dos pobres”, como disse Tinhorão. Negros e brancos compartilhavam ofícios de músico e se misturavam nos grupos de choro, algo deveras inusitado na sociedade racista brasileira. De modo que podemos considerar o choro como o primeiro movimento artístico urbano que enfrentou o evidente conflito de classes. Outro fator polêmico foi que, entre os “chorões”, se encontrava uma mulher: a genial maestrina Chiquinha Gonzaga que frequentou rodas de choro acompanhando, ao piano, o grupo de Callado.

Depois de Callado, o “pai do choro”, outros músicos se destacaram no cenário ao longo das décadas, transitando do século 19 para o século 20: o exímio flautista Pixinguinha, que formou o grupo Oito BatutasErnesto NazarethZequinha de AbreuJacob do BandolimAltamiro Carrilho, entre outros. Esses nomes foram importantes para consolidar o choro enquanto gênero e para expandir o que, a princípio, era apenas uma manifestação artística isolada, feita da mescla de músicos profissionais e músicos amadores. Tal expansão não tardou a acontecer, mesmo porque o choro tem uma natureza agregadora e, por isso, socializante.

Esse aspecto se confirma na forma com que o choro era apresentado, ou seja, em festas da realeza ou em festas populares. A sociedade brasileira permanecia dividida, mas havia uma música que interligava as classes. Um fenômeno histórico interessante em que o choro protagonizava eram as festas ocorridas na casa de Ciata, a “tia” baiana. Chamavam-se pagodes essas pândegas noturnas, frequentadas por bambas, a fina nata da boemia carioca: partideiros, batuqueiros, malandros e chorões. Entre um petisco e outro, uma cerveja e outra, o pagode se desenrolava, reunindo a comunidade mestiça, negra e pobre marginalizada pela elite branca.

A casa da preta Ciata, na Cidade Nova, era local de aceitação, mesmo situada em zona periférica. Seu marido João Batista era empregado do gabinete do chefe da polícia. O que garantia certa comodidade na realização dos pagodes. No entanto, havia um esquema que facilitava e que ocultava parte da festa. João da Baiana relata que “a festa era assim: baile na sala de visita, samba de partido alto nos fundos da casa e batucada no terreiro.” Para assegurar que o pagode fosse feito sem intervenção policial – uma vez que o candomblé e a capoeira eram proibidos – então era preciso adotar um artificio que disfarçasse a imagem daquele encontro.

O choro, por ser um gênero oriundo dos salões imperiais, por ser composto por músicos que tocavam instrumentos “clássicos”, e por possuir o requinte e a respeitabilidade da flauta, do violão e do clarinete, era aceito como cultura e como “civilização”. De modo que a casa de Ciata abria suas portas recebendo os convidados com o animado baile promovido pelos chorões. Casais de “respeito” dançavam enlaçados, remetendo ao formato europeu herdado da polca. De brinde, ainda gozavam da beleza da flauta de Pixinguinha, presença marcante na festa.

A curiosa expressão “biombo cultural” é atribuída a esse drible, a essa “malandragem” que servia para manter o pagode de pé e também para que o choro tivesse uma visibilidade maior. Tal estratégia inteligente não poderia ocorrer em outra parte da casa senão na sala de visitas que, espacialmente, representa o cartão de apresentação do status social de uma família. Assim o choro se impôs: reunindo, discretamente politizado, as oposições de classe/etnia. Enlaçando, no corpo e na alma, o que a sociedade brasileira há séculos se esforçou por separar.

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