Filipi Gradim: Na capa do Batman

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Se Aquiles e Perseu são mitos cuja origem se perdeu no imaginário de um povo, já não se pode falar o mesmo sobre o lendário Batman; dele, por sorte, tem-se ciência de sua filiação. O primeiro registro de sua aparição foi em 1939, pelas mãos do escritor/roteirista Bill Finger e do desenhista Bob Kane, nas páginas da revista Detective Comics #27. Inspirado em personagens como O Sombra e Zorro, Batman originalmente foi concebido pela dupla Finger e Kane nos mesmos moldes das sensacionalistas e artisticamente despretensiosas revistas pulp fictions, isto é, carregado por uma atmosfera noir que mesclava gêneros literários como a ficção científica, o terror, a fantasia e o romance policial.

Nos nove primeiros anos de sua existência editorial, Batman conviveu ao lado de outros super-heróis da DC Comics sem que o público soubesse qual era a sua origem. Foi então na revista Detective Comics #47, em 1948, que sua biografia veio à tona. Nos quadrinhos dessa edição, é de conhecimento geral que Batman é Bruce Wayne, nascido em 1916, filho único do empresário bilionário Thomas Wayne e de Martha Wayne, sua esposa. A saga dramática do personagem se inicia quando, aos 8 anos de idade, depois de saírem às pressas de um espetáculo de ópera, Bruce e seus pais foram surpreendidos pelo ladrão Joe Chill. No calor da hora, Chill atira nos pais do menino, matando-os, e deixando Bruce órfão. A partir dali, Bruce será criado pelo mordomo e tutor Alfred Pennyworth até que alcance a maturidade e se torne Batman.

Traumatizado pela morte estúpida dos pais, Bruce se enche de ódio e de espírito de vingança. Ele atravessa a juventude alimentado por esses sentimentos negativos como forma obcecada de compensar a dor da perda e de vingar outras famílias. Por conta disso, prepara-se física e intelectualmente para revidar o mundo criminoso da cidade de Gotham, onde vive. Bruce incorpora o vingador e, por isso, abandona a vida de luxo da mansão e vai peregrinar pelo mundo em busca de meios para se aprimorar. De extrema inteligência, Bruce se dedica a aprender técnicas de luta marcial, de teatralidade, de disfarce, de fuga, de criminologia, como também se envolve com criminosos de todos os tipos para aprender com eles a mentalidade da injustiça.

No entanto, todos esses saberes acumulados e unidos à raiva e ao espírito de vingança não bastam para Bruce. Ao retornar de sua estadia no exterior, Bruce retorna à mansão Wayne e é acolhido novamente pelo fiel Alfred. Assume a gerência de uma parte da Wayne Enterprises e, então, com a ajuda de Lúcio Fox envolve-se com tecnologias de veículos, de acessórios, de ferramentas, de armas e de efeitos importantes não só para a eficiência de seus planos de combate ao crime, bem como para promover uma imagem de terror através de seus disfarces.

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Ao ver um morcego voando dentro de sua mansão, Bruce inspira-se na ideia de ser um vingador cujas habilidades imitariam ou se aproximariam das habilidades de um animal noturno. Assim, surge Batman, o homem morcego, que por lutar contra o crime sob o manto negro da noite, torna-se o cavaleiro das trevas, aquele vigilante noturno que assustaria os criminosos com o máximo de recursos possíveis e inimagináveis, surpreendendo e desbaratando os maiores delitos. No entanto, a questão desse artigo não é descrever amiúde a biografia de Batman, mas, antes, levantar a hipótese de que Batman, sendo herói, não é justo. E como isso é possível?

Em primeiro lugar, para tocar nesse ponto não me concentrarei no Batman dos quadrinhos, mas fundamentalmente no Batman cinematográfico. Interessa-me o herói filmado e dirigido pelo talento de Christopher Nolan; mais precisamente na excelente película Batman Begins (2005). O que pretendo compreender é se esse homem morcego é ou não é um herói justo. Até que ponto ele é justo? Ou, se a hipótese for negativa, até que ponto ele não é justo? E se ele é injusto de que modo essa injustiça se manifesta?

De que Batman é um herói não restam dúvidas. Mesmo que não tenha sido modelado como um herói trágico ou épico como nos padrões literários da Grécia clássica, ele definitivamente é um herói; pois, na verdade, efetua ações heroicas, quer dizer, assume tarefas difíceis, quase impossíveis, desempenhando-as com força, coragem e determinação; ele não esmorece ou desiste e, implacável, não deixa pedra sobre pedra. Todavia, Batman está longe de ser o herói clássico que luta contra forças da natureza restaurando o equilíbrio que havia sido abalado por alguma intemperança ou imprudência humana. Ele não é Perseu; e, assim, não precisa dar conta do que o destino mitológico lhe traçou sem nenhum direito de escolha.

 Batman, ao contrário, encarna o protótipo do herói moderno e, por isso, não age determinado por destino ou imperativo divino. Existe na ação de Batman espaço para uma escolha capaz de mudar o curso da história. Batman é conduzido, conforme diz Ducard, por uma “vontade de agir” que supera qualquer virtuosismo: “o treinamento não é nada/ a vontade é tudo”. Essa vontade se dirige não para criaturas mitológicas, mas para a realidade diária do crime. Batman pretende, então, lutar contra os “monstros” do crime, com aquilo que lhe está próximo e tem que conviver a contragosto e marcado por uma “raiva que vai sufocando a dor”.

Mas como tolerar o fato contraditório de que o principal fundador da Liga da Justiça seja injusto? Ou, então, ainda mais profundamente, como conceber um herói e apartá-lo de um dos seus atributos essenciais que é o senso de justiça? Como pensar heroísmo sem justiça ou como pensar heroísmo com algum sentido absurdo de justiça? O que podemos dizer, de saída, é que Batman, mesmo não sendo um herói mitológico como Perseu ou Thor ou herói sobrenatural como Superman, nem por isso carrega menos complexidade e densidade existencial, de forma que é impossível pensar Batman sem considerar toda a contradição de seu ethos.

Sob a perspectiva platônica de justiça, aquela expressa e definida na obra A República, Batman não é justo. Em primeiro lugar, Batman é injusto porque, segundo a razão, o “homem justo é bom”, conforme afirma Platão; e todo homem bom e justo tem como princípio o fato de que “não é lícito fazer o mal a ninguém e em nenhuma ocasião”. Um homem justo, sendo ou não herói, não pratica o mal, pois “os homens contra quem se pratica o mal tornam-se obrigatoriamente piores”. Logo, ser justo não significa “prejudicar os inimigos e ajudar os amigos”, mas poupar que o mal seja infligido a qualquer pessoa e que se multiplique.

Batman não pode ser justo pelo fato de que sua vontade de agir contra o mundo do crime tem como propósito destruí-lo, ou seja, fazer mal aos inimigos. Primeiro como forma de superação pessoal e depois como forma de causar temor sobre eles. Batman sabe que nele fomenta um “impulso de fazer coisas fantásticas ou terríveis” e que esse impulso opera da forma como Platão define, quer dizer, “impelido pela necessidade de prevalecer sobre os outros”. Na concepção “cavernosa” do senso-comum, em que a verdade se mescla e se esconde no meio das aparências, como em um jogo de sombras, justiça não é o ato conduzido pela lei, “reduzido ao respeito da igualdade”, como diz Platão. Mas justiça é o predomínio do justo sobre o injusto.

Para o Batman que se formou na Liga das Sombras de R´as Al Ghul, a verdade sobre justiça lhe chegou toldada pela aparência de justiça. Ser não é parecer, então, ser justo é bem diferente de parecer justo. Batman, ao longo de toda a sua trajetória como herói, apenas pareceu ser justo, pelo fato de cumprir a lei, mas usando recursos pessoais à base de violência. Em seu ideal de luta contra o crime, Batman aprendeu que deve prevalecer sobre o mais fraco. A fraqueza a ser dominada é o medo. Bruce teme o que está dentro dele, quer dizer, seu poder; por isso, “agora”, diz Ducard, “deve voltar-se para dentro. Para vencer o medo, deve causar medo. Você deve se aproveitar do medo alheio”. Bruce, ao ver o morcego em sua mansão, captou, numa intuição, que causar medo consiste em se tornar um animal noturno que sobrevoa a cidade em busca de criminosos considerados como pessoas inferiores que devem ser detidas.

Batman age como se fosse justo, vigiando, por conta própria, o crime na noite da cidade, mascarado e vestido com um disfarce medonho; mas isso não significa que ele seja justo, pois, conforme a visão platônica que adotamos aqui como referência teórica, o homem/herói justo não pode prevalecer sobre ninguém. Em Batman a predominância sobre o fraco não é apenas na força física, já que ele é mestre em artes marciais e se ampara de uma série de armas e truques. O que torna Batman mais forte e, por isso, injusto, é sua poderosa habilidade para se esconder e fugir, que nada mais é do que o controle que tem sobre o psicológico e sobre o imaginário dos criminosos: “o homem teme sobretudo o que não pode ver”.

Predominar sobre os outros não é justiça, mas injustiça; assim como agir sozinho, na calada da noite, não é uma ação justa, mas sim vingativa, pois seu princípio ativo é pessoal. O ideal de Batman é levado pela crença de que ser justo é estar “preparado para fazer o necessário para vencer o mal”. E a vantagem de Batman sobre os demais é, não só sua maquinaria de guerra, mas principalmente a aparência terrífica de sua voz, capa e armadura. Quem vence o mal pelo terror não é bom; e não sendo bom, não é justo. Ainda que saiba que “justiça tem a ver com harmonia”, como diz Rachel Dawes, ou que “justiça é equilíbrio”, como diz Ducard, Batman paga os criminosos na mesma moeda: violentando e levando vantagem sempre.

Por levar vantagem e não ser nunca destruído, Batman gera nos criminosos um misto de ódio e de medo. Desse modo, acumula inimigos, em vez de vencê-los. Ele é incapaz de restituir a harmonia da cidade na luta contra o mal, como faz o herói clássico. Em Gotham o mal nunca é superado; antes, é perpetuado, aumentado, nunca encerrando o círculo vicioso que corrompe a cidade. Cada nova captura, um novo inimigo: Coringa, Pinguim, Charada, etc. Por isso que Batman, mesmo sendo herói, não é justo; ele parece justo sob a máscara da injustiça.

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