Filipi Gradim: O bronze e a brisa

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Há poucos dias, numa glosa saudosista, em que lembrávamos das belezas de Roma, eu e uma caríssima amiga falávamos sobre como a “cidade do amor” é carregada de arte por todos os lados. Frisamos que, em Roma, nas muitas esquinas em que você cruza, é possível se deparar com o encantamento de alguma obra de arte, seja um monumento histórico que ainda vigora poderoso e imponente seja uma escultura de algum imperador ou figura ilustre. Mas ao mesmo tempo em que Roma nos veio à mente numa rememoração emocionada, pensei em como outra cidade, nada distante de nós, se acha nas mesmas condições; e essa cidade é Rio de Janeiro.

Ainda não pude efetuar o trabalho penoso de contabilizar o número de obras de arte que desobstruem acesso para o público transeunte, quer dizer, que se dispõem ao contato de quem distraída ou apressadamente atravessa a cidade. Se o fizermos, veremos que o Rio concentra um número grande de obras de arte espalhadas em diversos bairros dessa imensa urbe que é célebre pela sua beleza natural. O olhar pouco exigente do público enxerga imediatamente no Rio essa beleza das praias, sem contar que outras belezas, não naturais, também servem de motivo para o encantamento. Quero dizer que o Rio é fecundo em arte pública; são muitos monumentos, praças, igrejas, chafarizes, fachadas, portões, e até mesmo postes de luz que nos despertam o prazer estético. E não é preciso nenhum esforço para se experimentar algo assim tão belo e democrático.

É no estatuário, todavia, que Rio de Janeiro tem grande relevo nesse aspecto. As esculturas possuem uma presença pontual e tornam o panorama artístico da cidade um atrativo à parte. De modo que, no mesmo nível de Paris ou Roma, Rio de Janeiro pode ser considerada a cidade das artes. No caso em questão, cidade das artes visuais, uma vez que o belo se manifesta na arquitetura, através dos diversos edifícios clássicos e modernos, como também na pintura, que disponibiliza um espaço visível curioso nos grafites estampados pelos muros. Mas é a escultura que tem exercido um fascínio diferenciado entre moradores e turistas, no que tange ao impacto estético das obras, de modo a tornar a cidade do sudeste brasileiro um centro artístico singular.

A escultura não é uma arte simples; e isso se torna evidente num primeiro olhar que lançamos sobre ela, por mais que a escultura tenha uma dimensão minimalista como os trabalhos do brasileiro Franz Weissmann, por exemplo. Mais ainda: de um modo geral não nos concerne a sensibilidade para essa arte. Foi o elegante escultor Henry Moore quem disse certa vez que: “a apreciação da escultura depende da capacidade de reagir à forma em três dimensões”; e que, por isso, “é maior o número das pessoas que são ‘cegas para a forma’ do que ‘cegas para a cor’”.

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 Além do mais, a escultura “foi descrita como a mais difícil de todas as artes” porque, como é centrada predominantemente na forma, e como observamos muito pouco as formas das coisas (ou quando o fizemos nos restringirmos a perseguir alguma utilidade que as justifiquem), também deixamos de capturar o que a forma revela, quer dizer, o conteúdo. O filósofo Hegel era pontual quanto a isso, ao dizer que a escultura “é a forma de uma manifestação material imediata e propriamente dita” que apresenta diante dos olhos do espectador através de um “invólucro corporal” que destaca uma “individualidade espiritual”. Ou seja, a escultura é o exibicionismo de uma vida individual, de uma personalidade qualquer, mas não de forma íntima, profunda e ardente como ocorre na poesia ou na música. A escultura nos revela um indivíduo, mas exprimindo o lado geral, a abrangência de um ser vivo, só que abstraindo esse ser. Na verdade, a escultura, por mais concreta que seja no uso de seus materiais (pedra, mármore, bronze, madeira, etc.), não é outra coisa senão um trabalho de abstração. “A escultura faz sempre a abstração da forma e deve, por consequência, por um lado, eliminar do corporal tudo o que se relaciona com a as funções puramente naturais”, diz Hegel. É no domínio da forma geral que essa arte acontece.

Observamos essa abstração, essa generalização da matéria, nas esculturas que ocupam o litoral carioca. As praias do Rio foram presenteadas com um conjunto de estatuário que se aloca em diversos endereços. Tal conjunto ilumina ainda mais o cenário da cidade. Em Copacabana, no posto 6, encontramos a estátua do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade. Lavrada em bronze por um conterrâneo do poeta, Leo Santana, a estátua recria uma foto em que Drummond está sentado em um banco de pedra na praia de Copacabana, em estado reflexivo.

“No mar estava escrita uma cidade” é o verso que Leo escolheu para fixar a poesia de Drummond no banco de pedra em que a estátua se senta. Penso que, na verdade, em uma cidade está escrita uma estátua; e a escritura da estátua, ou seja, o desenho cinzelado e imaginado pelo artista deixa vazar a imensidão azul do mar carioca. Henri Moore disse que o escultor “visualiza mentalmente uma forma complexa em sua totalidade: enquanto olha para um lado, sabe como é o outro lado; identifica-se com o seu centro de gravidade, sua massa, seu peso.”

Ora, se a escultura se projeta para ficar exposta não numa galeria de arte, mas a céu aberto e em frente ao mar, então é nesse cenário, ensolarado e praiano, que a escultura encerra todo seu campo visual e, dentro desse campo, nos revela o espírito de um ser individual, de uma pessoa que guarda um conteúdo próprio de vida. O outro lado da escultura, nesse caso, não é o material maciço como o bronze, mas um material movente, invisível, sutil e atmosférico que é a brisa. As esculturas públicas e litorâneas provam que o encontro natureza/urbe não só reflete, mas enquadra o espaço da estátua, deixando à vista a complexidade do material com que foi feita.

Outra estátua que também parece estar escrita na cidade do mar é a da escritora Clarice Lispector, feita pelo artista Edgar Duvivier. O conjunto do estatuário apresenta Clarice sentada, assim como Drummond, sob uma base que não é trabalho do escultor. Em outras palavras: Clarice e Drummond se sentam em bancos de pedra ou em muretas que já existem na cidade e não foram projetadas pelos artistas, mas sim inseridas no composto da obra. Diferente da posição introspectiva e solitária do poeta mineiro, Clarice está acompanhada do cachorro Ulisses, em uma pose descontraída, com os ombros livres, o peito levemente erguido, confiante, o pescoço apoiando a cabeça de uma mulher de fibra que mira o infinito e que está disponível para o mundo.

Sentada numa cadeira em frente à porta do restaurante La Fiorentina, situado na calçada da Avenida Atlântica, a estátua de Ary Barroso é a atração principal daquela quadra. Ary não flerta com a praia, como se vê em Drummond e Clarice, mas se integra ao projeto da paisagem, sendo mais uma escultura que escreve a cidade e que revela os dois lados da matéria escultórica feita para embelezar um local programado naturalmente para ser belo, quer dizer, que revela o lado da matéria bronze e o lado da matéria brisa. Ary está de terno e gravata, mas arejado, na mesa vazia em que espera ser servido, enquanto imagina um samba-canção que pinta o Brasil em aquarela.

A estátua do jornalista Zózimo do Amaral, feita por Roberto Sá, está no posto 12, no Leblon, fazendo pose ao lado de uma coluna de pedra. Zózimo aparece elegante vestido com uma indumentária social, numa posição ereta e verticalizada. Ele traz na mão direita um paletó que joga por trás dos ombros. A outra mão está dentro do bolso da calça, colocando Zózimo num estado de contemplação do mar do Leblon. Sentimos a brisa não só no entorno da escultura, como sua quarta dimensão, mas também a vemos no tremeluzir ondulante da camisa do jornalista, imprimindo uma movimentação e um arrojo interessante em seu corpo.

Dorival Caymmi também se encontra de pé, contrariando a quietude de Drummond, Clarice e Ary. Mas também Dorival não contempla o mar, melancólico e solitário, como Zózimo. A estátua de Dorival é puro movimento, tanto no gestual quanto na intenção dada pelo artista em querer fazer do cantor e compositor baiano um transeunte do calçadão de Copacabana. Dorival tem os braços erguidos, de um lado, e, do outro, segurando um violão. Ele saúda quem passa e nos contagia com sua alegria tropical, como que nos convidando a seguir com ele até a Bahia.

A estátua de Tom Jobim executa o mesmo movimento da estátua de Dorival. Esculpida por Christina Motta, a escultura não possui encosto, banco ou mesa que a destaque. Tom está vulnerável, entregue à multidão, de pé, em movimento pela calçada do Arpoador, trazendo o violão nos ombros. Ele caminha na direção de Ipanema, sem que saibamos por qual razão, mas entendemos que não é a música que o conduz, mas a brisa; ou, talvez seja a música, na forma de brisa. Tom está sereno, com o olhar vago em contraste com o determinante realismo que Christina quis imprimir nos detalhes da camisa e da calça. De todas as esculturas, a mais impressionante é essa, justamente por nos confundir se somos nós que vimos Tom ou se é Tom quem nos vê.   

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