Filipi Gradim: O uivo do Chacal

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No ano de 2021, o carioca Ricardo de Carvalho Duarte, rebatizado com o nome Chacal, nascido em 24 de maio de 1951, completou setenta anos. Ciente disso, me programei para inclui-lo entre os temas que compõem os artigos que escrevo para o Diário do Rio. Afinal de contas, um artista como ele, tarimbado e de extrema importância para o cenário criativo do Brasil, merecia uma homenagem que estivesse à sua altura. Por contingências da vida, terminei não fazendo e deixei passar o aniversário em branco. No entanto, salvei a ideia e retomei o projeto de escrever sobre esse artista que o Wikipedia imerecidamente reduziu a tão poucas palavras. 

Chacal representa um segmento de artistas brasileiros que só puderam vir à tona a partir das provocações feitas pelo movimento tropicalista. Ele integra o grupo que ficou conhecido sob a alcunha de “poetas marginais”, donde se inserem Wally Salomão e Torquato Neto. A princípio, a expressão “poeta marginal” designa algo que atribui valor negativo ou depreciativo, uma vez que, na sociedade, a noção de marginalidade ficou manchada pela maledicência das elites que separou o “certo” do “errado”, tomando como base moral a diferença entre classe rica e pobre. 

Estela dos Santos nos fala algo que foge dessa validação ressentida. Para ela, “embora a palavra ‘marginal’ pareça remeter, literalmente, a algo fora da lei, na poesia ela consiste no estilo de divulgação e publicação”[1]. A marginalidade, nesse caso, em nada tem a ver com uma posição de inferioridade. Estar à margem representa não se sujeitar a determinados paradigmas formais forjados pelas elites da cultura. Sim, a marginalidade é um estado de revolta, mas nunca um rebaixamento, como se o contrário disso estivesse em condições de ser “puro” ou “melhor”. 

O poeta marginal, buscando traçar linhas de fuga,  se contrapõe às regras estabelecidas pelo mercado editorial, rejeitando o formato tradicional de divulgação e publicação, conforme apontado por Estela. A estratégia da revolta é criar livros de forma artesanal (datilografando ou mimeografando), e com isso, se desvencilhando do vínculo com as editoras e da possibilidade iminente de censura. Além disso, o poeta marginal democratizava o acesso às obras, ao sair pelas ruas e vender sua obra, em pequenas tiragens, “desde bares até as portas de teatro”[2].  

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Mas também, e principalmente, o poeta marginal diz “não” à forma e ao conteúdo da escrita – que foi a marca mais indelével desse ato de revolta. Na obra do poeta marginal é incabível conservadorismo de qualquer espécie. Sendo assim, ele adota o inconformismo, a começar pelo modo incomum de aplicar a gramática: desrespeitando a métrica rimada e bem-acabada, eliminando parágrafos, vírgulas e letras maiúsculas, abreviando palavras, usando a gíria local. A imagem que o poeta marginal quer fazer ressurgir é a do indivíduo capaz de assumir a linguagem no que ela tem de mais autêntico e isento de adornos e formatações artificiais.  

Chacal extraiu sua revolta de dois movimentos expoentes da contracultura: a Tropicália e o Beatnik. Em 1971, quando ainda era estudante do curso de Comunicação Social (UFRJ), com vistas a fugir da repressão violenta dos militares, decidiu se autoexilar para a Inglaterra. Como meio de financiar sua viagem, Chacal produziu o livro Preço da passagem (1972), seguindo o estilo artesanal de Muito prazer, Ricardo (1971), seu livro de estreia. Dessa vez, ele transformou o que seria apenas um livro, no seu formato padronizado, em objeto de arte, em livro conceitual, mesclando artes visuais e poesia. Desconstruindo a “caretice”, com humor e ironia, Chacal fez do livro um envelope, mimeografou-o e o vendeu como “caixinha” para a viagem. 

Durante o tempo em que passou morando na Inglaterra (1972-1973), Chacal não só se libertou da violência que torturou e matou centenas de jovens como ele, como também pôde absorver o melhor que podia da contracultura europeia. A viagem oportunizou o cruzamento de experiências artísticas na vida de Chacal, desde o momento em que ele se impressionou com a apresentação do ilustre poeta americano Allen Ginsberg, no Festival Internacional da Poesia.   

Ter visto Ginsberg recitar poemas e falar sobre arte trouxe para Chacal uma consciência de identificação que justificou seu posicionamento revoltado, pois ele viu no norte-americano as mesmas inquietudes frente ao conservadorismo das elites e ao consumismo da sociedade de massa.  Chacal decidiu então “apropriar-se de dados da cultura de massa como matéria-prima de uma poesia que se quer antiliterária (…); questionar as práticas excludentes do mercado editorial; e problematizar a relação entre poesia e as questões mais ordinárias da vida comum”[3]

O contato com a poesia de Ginsberg confirmou em Chacal uma similitude estética com os poetas do movimento beatnik. Há em Chacal o mesmo descompromisso proposital com as formalidades da literatura. Se o interesse era abortar os mecanismos que a esquizofrenia do capitalismo impregnou na cultura contemporânea, desapegando do materialismo, a literatura burguesa, consumida por esse nicho da sociedade, no seu modo encaixotado de ser e de fazer, deveria igualmente ser reformulada. Por isso, nada de literatura condenada às demandas do mercado, mas literatura que recriasse seu valor, redescobrindo potências veladas e emudecidas. 

Houve a emergência, na poesia marginal, de trazer à tona o que o movimento beatnik sublinhou como conteúdo literário. Em vez de uma literatura centrada em conflitos privados, optou-se pelo contrário: a vida pública. Daí os poetas darem voz às ruas, aos viajantes, hipsters, boêmios, junkies e toda a sorte de vagabundos que vivem, como disse Ginsberg, “arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa”, a “recriar a sintaxe e a medida da pobre prosa humana”[4]. Esses revoltados “mudos e inteligentes e trêmulos de vergonha, rejeitados todavia expondo a alma para conformar-se ao ritmo do pensamento em sua cabeça nua e infinita” margeiam a literatura[5].  

Os marginais não são artistas acadêmicos, formados, catequizados pelo saber formal. Antes, a geração marginalconsiste na reunião de “qualquer pessoa de quinze a cinquenta anos que se interessa por tudo”[6]; e essa totalidade que excita a curiosidade do poeta vem carregada de “atração pelo submundo”, de “investigação sobre a decadência da civilização”, de “alteração da sensibilidade e da consciência pelas drogas” e de “desconstrução e recriação da linguagem”[7].  

A experiência poética de Chacal abrange esses tópicos elementares da marginalidade absorvida do beatnik. Ele exerceu o mesmo princípio antropofágico oswaldiano, ao trazer para o Rio de Janeiro o que aprendeu com Ginsberg: devorou a cultura norte-americana e europeia e incorporou-a ao cotidiano carioca. A poesia de Chacal lançou sobre a cidade o uivo de um animal, escrevendo sobre o que havia de vivo nas ruas, recusando a poesia formal, calcada na estética vazia da arte pela arte, e adotando, em contrapartida, uma poesia que ecoasse a voz do real. 

O real é a matéria-prima da criação, por isso a “poesia não conta história”[8]; ela realça o que já existe, obedecendo as miudezas e grandezas do que existe e não do que se fabrica ou se imagina. Chacal é um romântico às avessas. Sendo assim enxerga o real a partir da lente poética como forma de reparar o caos: “se o mundo não vai bem aos seus olhos, use lentes ou transforme o mundo”[9]. Ele acredita na mística da poesia, mas sem fazer da palavra efeito esvaziado de sentido, refém do papel. Em sua revolta contra o academicismo, invertem-se os valores: “não o verso que fala, mas a voz que o diz/não o metro medido/mas o som que o ativa”[10].  

Chacal não escreve, mas faz soar seus versos pela cidade, fazendo barulho para exprimir o silêncio; ele uiva, enfim. O uivo de Chacal vem de dentro, das profundezas: “do umbigo à boca“[11]. A voz que dá corpo a esse devir animal é “serena e selvagem/sem rumo sem pouso/ veloz vai a voz/em batismo de fogo (…) viajando ela vai/voz a palo seco/em tubos transversos/ a plenos pulmões”[12]. O poeta alcança a lucidez do real e o verdadeiro toda vez que que vai ao fundo de si: “no fundo do poço que me banho/tem uma claridade que me namora/toda vez que vou ao fundo”[13]. Chacal disse em entrevista à Revista Cult: “poesia é desafio e busca. Abismo e atração. Como o outro. A poesia é um mergulho no escuro. Às vezes a gente sai com um peixe formidável no bico. Às vezes, uma bota velha. É no outro que a arte se reinventa”[14]

A poesia chacaliana abarca uma constelação de personagens da cena carioca. Não vimos os vagabundos iluminados vagarem pelos versos, como em Ginsberg. No entanto, a diversidade de tipos ocupa os poemas, como se ele fosse o calçadão de Copacabana, colorindo as palavras com a tonalidade da gente brasileira. Nessa cidade, nesse rio, com letra minúscula, correm as águas do mar, do amor, do riso, do humor. “Pelas curvas desse rio” cruzam “o ascensorista a vitrinista a judoca o playboy o zagueiro o bombeiro” pelo “maracanã”, pelo “pavilhão de são Cristóvão”, pelo “cristo”, pela “pedra da gávea”, pelo “dois irmãos”, apelando pela vida: “todo mundo precisa de beijos”, “todo mundo precisa de dinheiro”. Assim uivou o poeta, no intento de, pela antropofagia, “comer tudo o que à mão se oferece” e “de cada nada, sorver o tudo”. 


[1] SANTOS, Estela. A poesia marginal e a poética de Chacal. Disponível em: A poesia marginal e a poética de Chacal – Homo Literatus. Acesso em: 3 de abril de 2022.  

[2] Idem.  

[3] Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em: Chacal | Enciclopédia Itaú Cultural (itaucultural.org.br). Acesso em: 3 de abril de 2022.   

[4] GINSBERG, Allen. Uivo – Kaddish e outros poemas. Trad. Claudio Willer. Porto Alegre: L&PM, 2010, p.81. 

[5] Idem, p.93.  

[6] KEROUAC, Jack. apud COSTA, Anderson; TEIXEIRA, Antonio João. Poder, imaginário e cultura beatnik no filme Naked Lunch de David Cronenberg. Disponível em: Padrão (template) para submissão de trabalhos ao (intercom.org.br). Acesso em 4 de abril de 2022.  

[7] WILLER, Claudio. Prefácio. Uivo – Kaddish e outros poemas. Trad. Claudio Willer. Porto Alegre: L&PM, 2010, p.13.  

[8] CHACAL. In: Chacal: O poeta dos silêncios .Disponível em: Chacal: O poeta dos silêncios (uol.com.br). Acesso em 3 de abril de 2022.   

[9] Idem. Poemas selecionados. Disponível em: Chacal (BR 1951-05-24) Poemas selecionados (escritas.org). Acesso em 3 de abril de 2022.  

[10] Idem. In: Ermira: cultura, ideias e redemoinhos. Disponível em: Cinco poemas de Chacal | ERMIRA (ermiracultura.com.br). Acesso em 3 de abril de 2022.  

[11] Idem, ibidem.  

[12] Idem, ibidem.  

[13] Idem. Chacal: O poeta dos silêncios .Disponível em: Chacal: O poeta dos silêncios (uol.com.br). Acesso em 3 de abril de 2022.   

[14] Idem, ibidem.  

Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.

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