Filipi Gradim: Onde tudo o que reluz é ouro

Colunista fala sobre os cinquenta anos de "Stairway to Heaven", do Led Zeppelin

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Apregoa o dito que “nem tudo o que reluz é ouro”. A desconfiança contida nessa expressão é válida porque o senso comum reconhece que o ouro, esse mineral de grandeza, não se encontra “dando sopa” por aí pelas praças ou mercados. A palavra “ouro” é facilmente confundida com preciosidade, raridade e nobreza. Entendemos que nem tudo o que reluz é ouro porque as trivialidades carecem de uma dimensão de valor dessa magnitude. Reluzir não é a fortiori sinônimo de grandiosidade. Existe, pois, aquilo que brilha, mas em sua pequenez.  

Há, por outro lado, interpretação adversa, que considera que, na verdade, todas as coisas que reluzem são ouro. Delírio? Talvez sim; se recepcionarmos essa tese, ressabiados, rigorosamente céticos, de “nariz torto”, exigindo provas e demonstrações científicas. Talvez não; se, em vez de delirante, repararmos nosso juízos e chamarmos de “poética” ou de “mística” uma forma como essa diferente de pensar. Uma diferença de pensamento de tal espécie se encontra à vontade no universo da arte, onde o possível converge com o real. 

 O célebre grupo de rock Led Zeppelin, que despontou no final da década de 1960 e que, na década seguinte, tornou-se uma das maiores expressividades no gênero, é responsável por essa inversão de sentidos do dito popular. Na primeira estrofe da canção Stairway to heaven é que podemos encontrar o verso “all the glitter is gold” que, traduzido livremente, pode ser entendido como “tudo o que reluz é ouro”. Viu-se que a composição poética da canção zeppeliniana contém um fundo intelectual complicado que nos intriga e nos força investigar o que existe por trás dessas palavras. Qual é, enfim, a metafísica do Led Zeppelin? 

Usei o recurso filosófico da metafísica para interpretar uma das canções de rock mais populares de todos os tempos – que, se não é a maior, pelo menos é a mais envolvente  do ponto de vista melódico e conceitual. Para conhecermos bem o que se passa no biombo que esconde os mistérios da criação de Jimmy Page Robert Plant, é mister que estejamos a par das motivações artísticas e místicas que condicionaram a sua inacreditável composição. 

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Depois do lançamento do versátil álbum Led Zeppelin III, em que o grupo se lançou em um jogo experimental na música, mesclando elementos do folk, do blues e do rock, o quarteto (que conta, além de Page na guitarra e Plant nos vocais, com John Paul Jones, revezando no baixo, contrabaixo e teclado e John Bonham, na bateria) mergulhou no processo de criação de seu quarto álbum. Na trajetória da banda, o álbum representa mais do que um trabalho icônico. Ele é, ao mesmo tempo, uma síntese perfeita de todas as pesquisas musicais que faziam e um ponto de virada em relação ao passado do grupo e em relação aos artistas de seu tempo. 

A gravadora Atlantic Records ansiava por um novo trabalho que superasse as lacunas deixadas pelo último álbum que, apesar de excelente, não soou coeso como se esperava. A começar pelo título, o quarto álbum já causa polêmica. A banda preferiu aderir à estratégia da arte contemporânea e não cunhar nenhum título literal e explicativo, deixando-o ao sabor do sugestivo, do inominável, optando por símbolos místicos como substitutos das palavras. A crítica especializada e, posteriormente os fãs, se responsabilizaram por inventar um nome, chamando-o de Led Zeppelin IVFour SymbolsThe Fourth Album ou Untitled.  

Na capa, nota-se de saída a proposta conciliadora do grupo. Ela ilustra um acordo entre o passado e o presente, onde certo quadro, em que aparece um camponês, está fixado em uma parede, cujo forro roto e descascado contrasta com uma paisagem urbana cinzenta e opaca.  Quem via a capa do álbum, sem título e ilustrada com imagens que não mencionavam a banda, mas algo distinto dela, se deixava levar pela imaginação e pelo mistério. O que Led Zeppelin pretendia com isso? Por que se ocultar quando, já reconhecidos, poderiam se expor? 

A resposta está na atitude que a banda tomou contrariando o que a implicante crítica especializada alardeava, dizendo que “o sucesso dos (…) três primeiros álbuns tinha sido conduzido pela propaganda e não pelo talento”[1]. Optaram por anular o atrativo da foto de capa, fazendo com que o valor do trabalho recaísse sobre a competência musical. “Queríamos demonstrar que a música era o que tornava o Led; não tinha nada a ver com nosso nome nem com nossa imagem. Então tiramos tudo e deixamos a música falar sozinha”[2].  

Pelo visto, a mística que ronda o álbum IV não era provocação que a banda pretendia criar no público; antes queriam “fazer o que viesse de forma natural”; e a forma natural estava, então, conectada à vida dos integrantes naquele momento[3]. Por exemplo, na época das gravações do álbum (dezembro/1970 a fevereiro/1971), Page arrematou a Equinox Booksellers and Publishers, uma livraria dedicada à literatura ocultista. Lá reuniam-se iniciados, no intuito de estudar princípios da Alquimia, da Kabbalah, da Rosa Cruz e de Aleister Crowley. Foi inspirado na proximidade entre música e magia que Plant escreveu a letra de Stairway to Heaven.  

Mircea Eliade nos fala em Mito e realidade que o discurso narrativo das mitologias se sustenta em muito pelos objetos míticos, isto é, pelas imagens que indicam sentidos primordiais e essenciais da origem do mundo e dos homens. Em Stairway to Heaven o objeto mítico que a representa é a escada. A escada significa, grosso modo, evolução, caminho, trajetória. Inspirada nas leituras ocultistas, a letra da canção não vê em tal objeto nada além de ascensão espiritual. 

 No contexto narrativo da canção, a escada é comprada pela lady que “está segura de que tudo o que brilha é ouro”. A lady não adquire uma escada qualquer, mas uma escada alquímica que transmuta metais inferiores em ouro, guiando o homem ao topos generosamente dourado do universo. Sendo assim, essa lady não é personificação de nenhuma mulher, mas sim a dimensão cósmica Yesod; ou seja, a nona esfera astral, o plano lunar em que são depositados signos oníricos e subconscientes. Também a lady ilustra arquétipos da Grande Mãe (Maria, Odô Iyá, Ísis) que absorve, retém, acolhe, protege e que também ilumina e abrilhanta.  

A lady astral “compra” a escada cujo endereço final é o paraíso. Aqueles que se acham disponíveis a galgar todos os degraus em direção a esse plano, têm como compensação feliz  o gozo de um mundo nobre onde “tudo o que reluz é ouro”. Ela está certa de que todas as coisas contêm o paraíso em si, como se, em tudo, residissem deuses; algo, inclusive, já ventilado por Tales de Mileto. A lady é dotada de um poder sobrenatural: a visão do mecanismo do universo. Por isso, despende seu tempo e seu amor para conduzir os homens não somente até o paraíso bem como ao conhecimento, à sabedoria de como trilhar esse caminho com êxito.  

Se as coisas são talhadas a ouro, e tudo indiscriminadamente brilha a cada degrau superado, significa que o mundo vai se tornando espiritualmente elevado conforme a escada vai ficando cada vez maior e distanciando-se cada vez mais dos níveis mais baixos de consciência. A escada é ascese que nos arranca do terreno, do mundano, do profano, do impuro e nos conduz até os píncaros da perfeição espiritual. E, ao chegar no topo para onde a escada conduz, a lady nos dá prova de que, mesmo que “the stores are closed” (os depósitos estejam fechados), ou seja, que certos níveis de consciência ainda não tenham sido atingidos, “with a word she can get what she came for” (com apenas uma palavra ela consegue aquilo que veio buscar). A lady dota-se de uma vontade obstinada (thelema); ela não escalou as alturas para voltar de mãos vazias.  

No caminho, pelo riacho, a lady encontra símbolos que ampliam novas visões de mundo. “In a tree by the brook/ there´s a songbird who sings” remete à mística pagã da Kabbalah. A monumental Árvore da Vida (Yggdrasil), que tem raízes fincadas em um mundo sombrio, vai do mais material (Niflheim) ao mais espiritual (Asgard), onde alcança o Sol e a Lua. Em tal árvore se acha um pássaro que, em vez de revelar os grandes segredos do mundo por conceitos, canta. Cabe ao ouvido do Iniciado internalizar o canto do pássaro e make it wonder (pensar a respeito). 

O Iniciado, aquele que é convidado também a subir a escada para o paraíso, se desvia do Oeste, com pesar, para onde o profano aponta (“there´s a feeling a get/when I look to the West/and my spirit is crying for leaving”) e visa alcançar sua meta que se dirige para o Leste, onde sol nasce e, portanto, onde o ouro brilha sobre todas as coisas.  Nesse processo de desvio, os anéis de fumaça (“rings of smoke”), por meio dos quais os espíritos antigos, mestres invisíveis, são evocados, envolvendo o Iniciado, purificando-o de tudo o que não é espiritualmente nobre.  

O ápice da escada vai se mostrando conforme a música progride, transitando das linhas melódicas do folk para os riffs pesados da guitarra. É o deus Pã quem ilustra esse momento, pois algum sussurro avisa que a canção deve ser acompanhada do flautista; e que, assim, a razão é devolvida ao homem e um novo dia chegará aos Iniciados que seguirem a rota da escada: “and the whispered that soon if we all called the tune/when the piper will lead us to reason”. 

Por fim, os espíritos antigos darão uma gargalhada pela alegria de tal purificação que coloca os humanos em um dilema, diante do qual deverão decidir por dois caminhos da vida: “there´s a two paths you can go by”. Ou o caminho da perdição, preso às raízes da Arvore da Vida, ou o caminho da salvação: “há sempre tempo de mudar o caminho que você segue”. A lady, essa dimensão alta do espírito, caminha por lá, junto a nós, irradiando luz branca do saber.  

O quebra-cabeças de símbolos montado por Plant celebra a complexidade intelectual de teorias que podem ser interpretadas à luz do ocultismo, mas que, ainda assim, não perdem o elo com o público. Page explica: “acho que a letra é ótima. Faz as pessoas montarem muitas imagens na cabeça. Quando se ouve um disco, você sempre tem a sua própria visão, e Stairway permite isso”[4]. Aliás, se nos desligarmos do profano, cerrarmos os olhos, apagarmos as luzes e sentirmos os harmônicos acordes de Jones, o solo estrondoso de Page, a bateria impetuosa de Bonzo, o canto de Plant, que beira o sublime, o que temos é a música agindo feito a escada, operando alquimias, purificando alma e corpo, tornando tudo dourado e reluzente. 


[1] TOLINSKI, Brad. Luz e sombra: conversas com Jimmy Page. Trad. Érico de Assis. São Paulo: Globo, 2012, p. 141.  

[2] Idem, ibidem.  

[3] Idem, p.142.  

[4] Idem, p.146.  

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