Filipi Gradim: suave coisa nenhuma

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Ao mesmo tempo em que escrevo o presente artigo, disfruto da escuta do cd (sim! ainda os preservo e os adquiro pelos sebos da vida) de um dos maiores fenômenos da música brasileira: Secos e Molhados (1973). Sorte minha, pois extraio do próprio álbum a inspiração e o título desse breve ensaio sobre estética. Não pude resistir à tentação de destacar um verso da canção “Amor”, em que os compositores João Ricardo e João Apolinário, representados pela sublime voz de Ney Matogrosso cantam: “simples e suave coisa/ suave coisa nenhuma/ que em mim amadurece”. É em tal verso que se encontra a substância daquilo que pretendo analisar.

A arte contemporânea, principalmente as artes literárias, nunca nos revela verdades ou obviedades, deixando, por isso, parte da construção artística para a nossa própria capacidade interpretativa. Pensando assim, o que vejo na letra de “Amor” não é a contextualização do afeto romântico, platônico ou ágape, mas algo próximo ao que Nietzsche propôs, em que o amor seria afeto que exprime vontade de poder. O “Amor” dos Secos e Molhados diz respeito à afirmação da identidade; que, com essa vontade de poder, resiste aos paradigmas impetrados na cultura. O que está em jogo é que o indivíduo em questão, a pessoa cantada na letra, revela o que é, em detrimento daquilo que não é. Ou seja, em primeiro lugar, a canção fala de visibilidade.

Em meu opinar, visível é toda coisa simples, que se patenteia, que se torna evidente, sem se escamotear ou se camuflar. Por outro lado, toda coisa simples apresenta, entre outras propriedades, a propriedade da visibilidade. Ademais, na canção, a “simples e suave coisa” é surpreendida por uma “leve pluma, muito leve” que “pousa” sobre ela. Porém, a simples coisa não é suave. Sendo assim, quem é tocado pela pluma, quem deixa a leveza encostar em seu corpo, não é suave, não se confunde com a pluma, mas é, então, forte e determinado. E tal força amadurece, ganha ainda mais força, ao crescer, ao se expandir, ganhando espaços inexplorados.

Em resumo, em um curto verso da canção dos Secos e Molhados, temos aquilo que entendo ser o conteúdo da estética queer: a visibilidade, a força e a expansão. Pesquisando o tema, aprendi que, desde os anos 80, o queer se estabeleceu como objeto de tese, ainda que nos anos 70 ele já tivesse dado sinais de existência. Ora, se foi em Secos Molhados que me inspirei para falar do queer, é porque os artistas que formavam o grupo apontam para um pioneirismo nessa forma de expressão da identidade. Ney Matogrosso, por exemplo, é o que se poderia chamar de porta-voz da estética queer no Brasil. Para além das Américas, David Bowie.

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Não nos importa aqui historicizar o tema, tentando mapear os locais e as datas de nascimento dessa estética particular. A filosofia da arte – que é o que me cabe fazer – ocupa-se principalmente com as bases conceituais que sustentam a expressão de um certo estilo ou obra. Por isso, quer-se saber o que é queer? Guacira Louro, em seu livro “Corpos estranhos” (2004), define o queer como o “estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário”. Nada muito distinto do conceito de grotesco ou do conceito de kitsch, por exemplo. Há, no entanto, algo bem particular na definição de queer que levou os teóricos a reunirem essas propriedades.

Judith Butler, umas das teóricas pioneiras nesse tema, entendeu que o queer refere-se não a qualquer coisa de estranha, ridícula, excêntrica, etc., mas exclusivamente refere-se à comunidade homoafetiva. Ela afirma que o “queer adquire todo o seu poder precisamente através da invocação reiterada que o relaciona com acusações, patologias e insultos.” Ou seja, quando se queria ofender um homossexual pela sua expressividade e pelo conjunto de signos que traçam sua identidade cultural, chamavam-no “queer”, que, no traduzir popular, significava “viadinho” e “bichinha”. Na Inglaterra do século 19, já se via esse tipo de manifestação injuriosa, endereçada ao célebre e genial escritor Oscar Wilde, conhecido pelos escândalos sexuais em que se envolveu e que o levaram ao cárcere. A própria Inglaterra, conservadora, classista e homofóbica, nomeou Queer Street uma rua que era reduto de gays, prostitutas, desajustados, pobres e devassos. Dessa forma, o termo ganhou não só a função depreciativa, bem como serviu para fragmentar espacialmente a cidade, dividindo-a entre os “certos” e os “errados”.

Enquanto definição de um grupo social, o termo queer só apareceu nos anos 80 e, então, expandiu sua zona conceitual, deixando de ser designação ofensiva, para ser designação identitária. Com isso, não se contemplava apenas o gay ou a lésbica, mas também os travestis e os transsexuais, ampliando o seu leque de expressões. Logo, queer é, a rigor, um termo que compreende aquilo que padronizamos como sendo o incômodo, o “quarto de despejo” da sociedade, para usar uma expressão tão cara à maravilhosa escritora Carolina Maria de Jesus.

Despejamos em certo território o que precisa ser esquecido, desprezado e tornado invisível. Despejamos o que é dejeto, o que não serve, o que se desajusta ou desestabiliza. Assim se formou a noção injuriosa do termo. Mas, na luta contra a disseminação desse ódio de gênero, Judith Butler ressignificou o conceito e tornou-o uma afirmação identitária, onde o que se vê é o que sempre se quis invisível, o que se quis complexo, porque era a forma mais fácil de se defender desses mesmos “dejetos” da sociedade. O que não nos apraz, preferimos ignorar.

Ignoramos para não encararmos, para não permitirmos que nossa sensibilidade seja suscetível ao que nos incomoda. Trata-se então de uma blindagem estética que esconde a visão de um grupo que se contrapõe à normatividade heteroafetiva. Como enfatizamos que é um problema estético, em primeira instância, então esse grupo apresenta uma imagem ou várias imagens que fomentam dialéticas, que põem em discussão a validade dos nichos dominantes.

Os nichos que a sociedade sublinha e prioriza, como o “homem”, o “branco” e o “hetero” impostam suas forças e discursos e abafam a voz de um nicho não menos rico em expressão e em potência. Nesse sentido, agrada-me a perspectiva do artista Marcelo Kuna quando ele diz que a sigla LGBT, que nomeia esse nicho, parece uma “sopa de letrinhas, em que um ou outro sente falta de uma letra”. É mais coerente o que ele diz, a saber: que o queer, ao ter deixado de ser injúria e uma forma de territorializar uma identidade, “virou quer, de vários quereres”.

O que Marcelo Kuna diz afina com a fala de Judith Butler. Porque o gênero não é uma estagnação, a não ser para o nicho dominante. Para esse grupo, a noção de gênero, postulada pela convicção de que não há transição entre homem/mulher e masculino/feminino e de que, por isso, as esferas existem isoladas, é performativa. Ela é assim porque o gênero “é resultante de um regime que regula as diferenças”, dividindo-se e hierarquizando-se “de forma coercitiva.” Mas, em minha opinião, o gênero é, a bem dizer, um querer, um modo de ser afirmativo, apaixonado por si mesmo.

A dimensão do querer queer extravasa, quer ser vista como coisa simples, como algo que também pode estar dentro da norma, mas de uma norma criadora, que estabelece novos campos de visão. Assim, por ser expressiva, essa norma, não paradigmática e não coercitiva, apresenta uma diversidade que ultrapassa nomes e termos, sendo essencialmente estética e, por isso, se afirmando na multiplicidade de cores, de formas, de gestos e de símbolos.

Desse modo, temos a Arte como a forma de abrigar essa diversidade de quereres, pois na Arte o diverso e o incomum são naturalmente aceitos como possibilidades, como campos estranhos de sensações. Cada querer, a fim de se afirmar, ganha um corpo, e esse corpo ganha uma plasticidade própria, marcante, singular. Para cada querer há uma visibilidade, uma vontade de exprimir o amor que existe por ser aquilo que é, por ser simples coisa.

Por isso, estranhamos as diversas facetas que David Bowie, ao se metamorfosear e se fundir entre homem e mulher. O mesmo se dá com Ney Matogrosso, às vezes bicho, às vezes gente. Ou Caetano e Gil, que rebolavam em cena e usavam batom. Ou Pepeu Gomes cantando “sou masculino e feminino” e pintando a longa cabeleira com cores exóticas. Ou Madonna beijando mulheres em fotografias e clipes. Ou Dustin Hoffman brilhando travestido de mulher executiva em “Tootsie” e Julie Andrews, de homem, em “Vitor ou Vitória”. Ou o humorista Jorge Lafond afrontando espaços antes reservados apenas ao branco e ao hetero.  Ou Almodóvar com seus personagens travestis e homossexuais escandalizando a cidade. Ou, enfim, Wahrol e sua personalidade queer encarnada como obra de arte viva, sem distinguir o real e o imaginário.

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