Filipi Gradim: Tarcísio Trágico

Colunista do DIÁRIO DO RIO fala sobre Tarcísio Meira

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Das diversas celebridades que foram vitimadas pela avassaladora epidemia do Covid-19 aquela por quem mais tinha apreço era o ator Tarcísio Meira (1935-2021). Por apresentar grave quadro sintomático do coronavírus, em 12 de agosto de 2021, Tarcísio faleceu, depois de ficar seis dias internado no hospital Albert Einstein, em São Paulo. Aos 85 anos, o grandioso artista se despediu da mulher Gloria Menezes (com quem era casado há 59 anos), do único filho (Tarcísio Filho), do mundo e da dramaturgia que o consagrou como um dos maiores atores do Brasil.  

Senti a morte de Tarcísio de uma forma diferenciada dos demais artistas que agonizaram nos leitos de hospitais por conta do alastramento do Covid-19. Aldir Blanc, Nicete Bruno, Gésio Amadeu, Daniel Azulay, Ubirany do Fundo de Quintal e Paulinho do Roupa Nova. Todos esses partiram de modo intempestivo, deixando legados de beleza e de arte insubstituíveis. Mas com Tarcísio Meira a tristeza de perder um artista de grande significância foi ainda maior porque compartilhamos o mesmo ofício cênico de ator e porque, por coincidência, assistia na época, graças ao streaming GloboPlay, a novela Roda de Fogo (1986) que ele protagonizou.  

Curiosa coincidência me unia a Tarcísio Meira naquele momento. A novela a qual assistia trazia o ator às voltas com um intrigante personagem que, por azar do destino, se achava perto da morte. Bem à brasileira, todas as noites, sem falta, acompanhava a trama que Lauro César Muniz criou para a excelente Roda de Fogo. De tão intrigante, a novela manteve-me fiel ao desenrolar do enredo e forçou-me a assistir a pelo menos dois capítulos por dia. Não é exagero que Roda de Fogo se situe entre as melhores produções teledramatúrgicas dos anos 80, período considerado por muitos críticos e especialistas como sendo “áureo” para a televisão brasileira.   

Em linhas gerais, Roda de Fogo apresenta-nos um conflito inteiramente movido por um argumento trágico: o personagem Renato Vilar, portador de uma doença gravíssima, tem seus dias contados para morrer. O poderoso empresário presidente do Grupo Renato Vilar, após sentir encefaleia aguda e desmaiar no escritório, é diagnosticado com angioma cerebral. A qualquer momento o tumor maligno pode estourar e causar sua morte. A situação não poderia ser pior pelo fato de que o angioma se localiza em uma área nobre do cérebro, impossível de ser acessada por procedimento cirúrgico, o que atormenta o personagem do início ao fim da novela.  

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 O estilo de vida que Renato Vilar levava até então, calcado na prepotência e na corrupção, facultava uma posição de destaque e de influência na família e nos negócios. Figura pública admirada, o empresário quase se candidatou à presidência da República, não fosse a surpresa trágica que o destino lhe pregou: sua vida tem, a partir do diagnóstico, de 3 a 6 meses de duração. “Tão pouco”, considera o empresário. Revoltado, ao saber, se isola de todos em sua casa de praia, cogitando, inclusive, a possibilidade de suicídio, tamanho é o desespero.  

Diante do mar, introspectivo, o personagem revê a vida e sua condição de “homem condenado”: o casamento de aparências com a esposa Carolina (Renata Sorrah), a indiferença com a filha Helena (Mayara Magri), o crime cometido contra Celso Rezende (Paulo José) e a relação amorosa com a juíza Lúcia Brandão (Bruna Lombardi). Quando recebe a visita de um padre, Renato admite raivosamente: “não aceito a ideia da morte”[1]. Prefere então não abrir o jogo sobre sua situação com ninguém, tentando se manter acima dos outros; mas o padre o aconselha: “o único caminho que eu vejo para aceitar a ideia da morte é se aceitar como humano, e pra isso é preciso aceitar os outros, estar junto dos outros, em comunhão com eles”[2].  

Renato retorna ao comando do Grupo Vilar apresentando comportamento diferente, causando indignação na família e, principalmente, nos sócios, que passam a julgá-lo como louco e inconsequente. Ao reconsiderar a vida e sua fragilidade física, “no alto dos seus cinquenta anos, depois de todas as suas conquistas que fez ao longo de sua vida”, Renato inverte os valores que mantinham a sua moralidade pouco virtuosa[3]. A mudança se deu com seu encorajamento: “eu consegui encarar a minha inimiga. Sei que não posso vencê-la, mas eu sei também que eu posso enfrentá-la”. O tempo de reclusão ensinou que antes sua relação com as pessoas era falsa e embalada pelos interesses de dinheiro e de poder. Por isso, se cala sobre a doença, pensando que a artificialidade das relações permaneceria, mas agora voltada para uma falsa piedade.  

“Eu quero estabelecer uma relação verdadeira com as pessoas, seja qual for essa verdade. Daqui pra adiante nada vai ser fácil para mim”, diz Renato ao padre. O projeto de Renato implicava em uma nova absorção do sentido da vida, antes voltado para o trabalho e para exercício do poder: reconhecer a urgência da existência e a inconsistência do tempo. “É urgente que a gente viva! É preciso que a gente viva intensamente isso que a gente tá sentindo”, é o que confessa Renato a Lúcia, depois do reencontro e dos dias de reflexão[4]. A verdade que Renato está buscando para enfrentar a morte passa por esse rigor existencial. Não há nada mais urgente do que a vida e as paixões que a intensificam. O resto é subterfúgio para se perder. 

O propósito que alimenta a nova moralidade de Renato Vilar é não se perder em superficialidades ou em outra coisa que não intensifique a existência, pois caso contrário a corrida em direção à morte será cada vez mais angustiante. A brevidade da existência é um fato que não conseguimos admitir e que, frente a qual, blindamos com hábitos, gostos e condutas que não fazem senão dispersar o conteúdo da vida como quem desperdiça água da torneira. Renato quer amar Lúcia com todas as forças; mas também quer recuperar o tempo perdido com seu filho Pedro (Felipe Camargo) a quem rejeitou durante anos. Renato quer a vida acima de tudo e isso perturba aqueles que o rodeiam e que acreditam que “o tempo está a nosso favor”. 

No entender de Renato Vilar o tempo trapaceia a vida porque nossa imaginação a seu respeito não faz outra coisa senão fantasiar um futuro inexistente onde o melhor “está por vir”. Nossa imaginação ordinária está toda amarrada ao futuro, ao depois, aos projetos do amanhã. Mas para alguém condenado a viver em um estreito limite de tempo, o amanhã é uma hipótese deveras dispensável, dada a sua crueldade, já que o amanhã pode não vir. Então, é preciso se entregar à duração da vida, no presente, ao ciclo incessante de nascer e morrer que a circunda.  

Em uma das cenas mais belas, Renato e Lúcia estão abraçados na cama.  Lúcia ignora a dor de Renato e as lágrimas que escorrem de seu rosto. O que fica claro nessa tão bem escrita cena é que o amor é o motor que mobiliza continuar vivo, seja porque motivo for. “Assim é possível”, enfrentar a morte, diz Renato a Lucia: vivendo. Mas viver é amar “sem censura, sem medo, sem nada”; e “viver aqui, agora, eternamente”, “como se nada mais existisse”. “Só esse momento é eterno”[5]só o presente é. O genial autor Lauro César deixa vazar vestígios de uma filosofia que remete a Sêneca e a Nietzsche: a vida é pura urgência que retorna todos os dias para nós a cada novo presente. Este é o sentido do eterno retorno: entregar-se ao agora.              

No decorrer da novela, enquanto a assistia, Tarcísio se internou e morreu. Ao passo que Renato Vilar perseguia seu destino trágico. Não sei se a pessoa Tarcísio adotou a mesma postura ética de Renato e se aprendeu com seu personagem a viver o presente como se nada mais existisse. Porém, deduzo que o ator Tarcísio sabia morrer com dignidade. Tal declaração está pautada no pensamento do filósofo Albert Camus que escreveu em seu livro O Mito de Sísifo (1942) um singular elogio ao ofício de ator que sempre que posso faço uso como referência.  

Camus nos fala que o ator é o “mímico do perecível”. O que quer dizer que esse ser cujo ofício é dar vida a outros seres imita o próprio movimento da existência que, absurda, se esforça para desencadear na morte. Se o existir é um dirigir-se para a morte, se o sentido da existência humana é vivenciar a brevidade do ser, como também Heidegger cuidou de nos iluminar, então o ator, que interpreta tipos humanos diversos será um mímico que imitará essa condição trágica. Seu dever de artista é saber desde o princípio que está fadado a morrer, que está condenado a dar cabo de seu labor criativo na curta duração de sua existência ficcional e dramática. 

Nem todo personagem há de morrer nas novelas, peças ou filmes; mas, invariavelmente, todo ator morrerá ao interpretar seja quem for. No palco ou atrás das câmeras, Tarcísio morreu inúmeras vezes ao imitar o próprio sentido da vida. Trocou centenas de vezes de caráter, de maquiagem, de roupa, de cenário, de conflitos. Precisou abandonar o Tarcísio Meira pessoa para viver a imagem de outros, para ser João Coragem, Antônio Dias, Pedro I, Capitão Rodrigo ou Renato Vilar. Precisou, é bem verdade, morrer com seus costumes, tendências, maneirismos diversas vezes em cada personagem ao qual brevemente deveria dar corpo, alma, voz e emoção.  

E se sua longa carreira nos mostra tantos trabalhos bem-sucedidos, significa que Tarcísio soube ao menos morrer naquilo que era destinado a fazer como artista: não medir sacrifícios para alcançar o objetivo criativo que é comunicar-se com o maior número possível de pessoas, provocando identificação, comoção e reflexão. O trabalho árduo do ator é saber morrer com maestria, deixando-se levar por aquilo que Renato Vilar só assumiu depois de admitir sua condição humana vulnerável; ou seja, o ator só é convincente quando entende que a única realidade existente é o presente e que toda a verdade que ele tem para incorporar e atuar não tardará em desaparecer, mas que será intensa e sincera na medida em que brevemente existir.   

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