Filipi Gradim: Vampirão Centenário

Colunista do DIÁRIO DO RIO fala sobre o centenário do clássico Nosferatu

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Segundo reza a lenda, vampiros atravessam os séculos. Impávidos em sua imortalidade, esses demônios desafiam o peso da gravidade e a lógica da história ao persistirem em sua existência, durante uma infinidade de anos, como um dos maiores temores da cultura global. E digo global porque a origem milenar dessa crença é plural e, por isso, remonta a diversas tradições como a persa, a hebraica, a grega e a hindu. Por meio delas, se disseminou o mito de uma entidade cuja natureza espectral era assombrosa: um morto-vivo que se alimenta do sangue e da carne dos vivos. No entanto, tudo o que sabemos a respeito desse monstruoso ser, o conteúdo que nos serviu até hoje como material de referência, teve início na Europa oitocentista, quando a oralidade das lendas foi coletada e transformada em registro escrito. 

Da oralidade popular, que reinou absoluta na Antiguidade e no Medievo, o horror saiu do domínio folclórico e virou literatura nas mãos de grandes escritores. Então, com o esforço de um grupo de poetas, embebidos de paixão pelos mistérios das tradições, trouxeram à tona a criatura vampírica, somando à imagem terrífica desse ser um aspecto de beleza e fascínio. No século 18, os poetas Heinrich OssenfelderGottfried BürgerJohan Wolfgang von Goethe e Lorde Byron fabricaram a imagem do vampiro sedutor que até hoje nos encanta. Inclusive fizeram dele um ser imortal, algo impensado na tradição antiga e medieval. Enquanto isso, na prosa, havia John Polidori e Bram Stoker, este último autor do célebre romance Drácula (1897).  

Se o imaginário literário transmite o sentimento de horror com as atrocidades cometidas pelo vampiro, a responsabilidade recai inteiramente sobre o talento narrativo de Bram Stoker. Foi graças ao Drácula que fomos brindados com a imagem decisiva do vampirismo, aquela que realizou a proeza de englobar o folclórico e o realismo em uma mesma obra, tornando o monstro, supostamente existente, em algo factível, crível, porque então plasmado em um corpo, contendo a um só tempo o inumano e o humano; sendo a autêntica visão do grotesco.  

O vampiro consiste na imagem fantasmal, na fantasia grotesca, cuja recepção se dá de maneira desconfortável, uma vez que nos incomodamos diante da “mistura dos domínios” que ele representa[1]; ou seja, o corpo paradoxal do vampiro, além de conjugar morte e vida, explicita “a maneira como o humano e o animalesco surgem (…) fundidos”[2]. Por meio da literatura, que é uma expressão artística exclusivamente verbal, não possuímos uma forma visível de tal corpo inconcebível. Bram Stoker, por mais genial que fosse foi incapaz de incorporar o vampiro; ele apenas o descreveu, o ilustrou, apresentando-nos um perfil rico em matizes psicológicos. 

A grandiosidade da imagem do vampiro só encontrou seu melhor termo em outra arte: no cinema. Bram Stoker atiçou a imaginação dos leitores; mas quem, na verdade, soube melhor extrair da criatura monstruosa o impacto estético foi o cineasta Friedrich Wilhelm Murnau (1888-1931). Em 1922, Murnau lançou a película Nosferatu: uma sinfonia do horror, roteirizada por Henrik Galeen a partir de uma livre inspiração de Drácula de Bram Stoker. Apesar de não estar em posse dos direitos da obra – o que gerou uma celeuma jurídica com a viúva de Stoker – o filme foi produzido e filmado. A condição de realização foi a estratégia do roteirista de transportar o cenário do romance para a Alemanha, intrometendo outro acento ao vampiro. 

A sugestão de conceber um filme de horror com a temática do vampiro veio do alemão Albini Grau, um dos fundadores da produtora Prana-Film. Grau, por haver participado da Primeira Guerra, em 1916, retornou são e salvo, mas traumatizado com a potência destruidora conflito, como boa parte dos voluntários e soldados. No meio desse cenário de morte, ele também se assustou com a anedota que ouviu de um agricultor, que afirmou que o pai tinha sido um morto-vivo. A brutalidade sanguinária da guerra, aliada ao imaginário popular, serviu de inspiração para a criação do filme. E, pelo fato de tais elementos dramáticos (fictícios ou não) coincidirem com a vida de Grau e dos alemães, o filme faz jus à estética do Expressionismo, ou melhor, ao que se conheceu como a mais celebrada corrente artística de vanguarda. 

O processo de concepção de Nosferatu, ao transpor o cenário de horror do romance para a Alemanha destroçada pela guerra, realizou uma das principais máximas expressionistas, a saber: a identificação da arte “com a unidade e a totalidade da existência, sem distinção possível entre sentido e intelecto, matéria e espírito”[3]; e isso ocorrendo “na medida em que a arte é justamente a realidade que se cria a partir do encontro do homem com o mundo”[4].  

Nosferatu é uma obra expressionista porque adere o elemento de fusão que anula a desgastada dialética sujeito-objeto, como premissa básica para fundar uma obra fílmica — algo até então impensado no cinema, mormente no cinema comercial norte-americano. Sendo expressionista, Nosferatu é a tradução do ato em que criador e obra se amalgamam, de modo que o artista é a obra e a obra é o corpo do artista se mostrando por inteiro, de alma nua. 

Quero frisar que o cinema de Murnau, a pedido de Grau, rendeu-se ao fluxo criativo dessa tendência, que já vinha produzindo abundantemente desde que surgiu, em 1905, pelas mãos de Matisse e Kirchner. Quando Nosferatu foi filmado, o Expressionismo no cinema tinha sido experimentado por Robert Weine em O gabinete do doutor Caligari (1910). Mas, apesar do pioneirismo desse cineasta, quem mais encontrou soluções visuais impactantes, acrescentando elementos cênicos foi Murnau, motivo que o torna o principal dos cineastas expressionistas. 

De saída, Murnau rompeu com a forma recém-criada por Weine, já no método como foram feitas as rodagens. Ao contrário de Weine, preferiu locações externas, de modo que explorou a estrutura arquitetônica de cidades alemãs como Wismar, Rostock e Lauenburg e a beleza natural da ilha Sylt, do rio Váh e das montanhas Tatra, na fronteira entre a Eslováquia e a Polônia. Com isso, deu um respiro à cena, arrancando-a da artificialidade dos estúdios; algo que causa impacto na visualidade das cenas, similar à mudança que Monet empreendeu no Impressionismo, ao sair do ateliê e pintar en plein air. Desse modo, o real e o fantástico se alinham no conjunto da obra, garantindo ao filme um “Expressionismo da realidade”[5]

A trama que o roteirista adapta para o filme não altera radicalmente o romance de Bram Stoker. Mas, conforme já dissemos, Galeen situa o drama na Alemanha, na cidade de Wisborg, no ano de 1838, para incorporar a monstruosidade do vampiro à realidade trágica de um país abalado pela guerra. Seguindo o mesmo formato de uma tragédia clássica, o filme é repartido em cinco atos. O Ato I inicia com a incumbência dada pelo corretor de imóveis Knock (Alexander Granach) ao seu empregado, o jovem Hutter (Gustav von Wangenhein): “o conde Orlok, sua graça, lá da Transilvânia, deseja comprar uma bela casa, em nossa pequena cidade. Você poderia ganhar um pouco de dinheiro. Vai custar um pouco de esforço, um pouco de suor e, talvez, um pouco de sangue. Ele quer uma casa bonita e abandonada”, recomenda Knock. 

Assim, Hutter se prepara e viaja para “a terra dos ladrões e dos fantasmas”, não sem antes noticiar a missão para sua esposa Ellen (Greta Schröder) e deixá-la ensimesmada e tensa[6]. No Ato I nota-se, na interpretação dos atores, traços de realismo, na fluência natural com que agem e gesticulam, intercalados com uma dosagem de caricatura e deformação nas expressões, para enfatizar a teatralidade latente que Murnau queria imprimir. Afinal de contas, os atores escalados não eram de cinema e sim migrados do palco, fato que realçava ainda mais o drama. 

Antes de chegar ao castelo de Orlok, Hutter pernoita em uma pousada e, no quarto em que se hospeda, encontra o Livro dos Vampiros. Folheia o manuscrito e lê o prólogo que diz: “da semente de Belial emergiu o vampiro Nosferatu que vive e se alimenta do sangue da humanidade. Sem salvação, ele se abriga em horríveis covas, sepulcros e caixões cheios de terra amaldiçoada por Deus, terra que vem da lavoura da morte sombria”[7]. Em vez de considerar seriamente as palavras assombrosas do livro, Hutter deprecia o conteúdo e vai dormir. 

O Ato I encerra com a chegada ao castelo, que o recebe misteriosamente coberto por capa e chapéu, mas que não esconde o físico cadavérico, a corcunda, a sobrancelha espicaçada e as olheiras profundas. No Ato II, Hutter se encontra na sala de jantar fazendo sua refeição. Ao cortar o pão, fere-se com a faca. Orlok está ao seu lado e diz: “você se feriu. o precioso sangue”. Estranhando o semblante ameaçador de Orlok, Hutter assusta-se. Mas o conde, hospitaleiro, convida o visitante a passar a noite no castelo. Hutter adormece pesadamente e, no dia seguinte, ao acordar, percebe, olhando no espelho, algo inusitado: duas marcas de mordida no pescoço.  

Orlok se encanta com o retrato de Ellen: “sua mulher tem um belo pescoço”; e, ciente de que a casa que lhe interessa comprar fica em frente à de Hutter, decide comprá-la[8]. Sozinho no quarto, temendo pelo pior, Hutter relê o Livro dos Vampiros; e, sem saber, descreve o futuro do drama: “à noite, o mesmo Nosferatu agarra sua vítima e suga o sangue dela como um elixir de vida infernal, como um íncubo, na forma de sonhos macabros”[9]. Em uma das sequências mais impressionantes do filme, Orlok invade o quarto querendo sugar o sangue de Hutter, mas é interrompido por Ellen, que desperta de um pesadelo gritando pelo nome do marido. A atuação teatral de Granach é fabulosa; o olhar sobressaltado e o corpo compacto e enrijecido feito uma tábua imprimem uma irrealidade no personagem que assinala o caráter expressionista. 

Hutter, ao explorar as dependências do castelo, encontra Orlok dormindo no caixão e se apavora. Mas aí já é tarde: dentro do caixão, Orlok já partiu atrás de Ellen, sendo transportado de navio até Wisborg. A presença macabra do vampiro no porão do navio tem consequências funestas: “peste na Transilvânia e nos portos negro de Varna e Galaz. Alastrou-se uma epidemia de peste. Jovens estão sendo dizimados e todas as vítimas têm as mesmas marcas no pescoço”. A morte, enfim, se alastra – recurso dramático ausente na obra de Bram Stoker, mas utilizado por Galeen, fato que alguns críticos notaram ser uma metáfora ao genocídio da Grande Guerra.  

É no navio que a aparição mais espetacular do vampiro acontece e onde Murnau produz o efeito decisivo do ponto de vista estético. Orlok se levanta do caixão, suspenso sem nenhum apoio, exibindo as enormes unhas, para o terror dos dois últimos sobreviventes da tripulação. O novo capitão dos mares é Nosferatu, que chega em Wisborg a bordo do Empusa, no Ato IV. Desembarca no porto trazendo nos braços o caixão e encaminhando-se para casa abandonada. Com isso, a peste toma conta de Wisborg, causando morte e terror coletivo.  

Atraída pela força sinistra do monstro, que a observa da janela, Ellen se levanta da cama. Mas rapidamente Orlok se infiltra na casa. O que vimos na cena não é corpo em movimento, mas a sombra do vampiro projetada na parede, em outro momento brilhante da direção de Murnau, acompanhado da belíssima e densa trilha sonora de Hans Erdmann. Por fim, o vampiro morde Ellen, mas o cantar do galo anuncia a chegada da manhã. Sem escapatória, Orlok morre consumido “diante da luz vitoriosa do sol vivo”, graças a qual “a sombra do pássaro da morte se desfez”. Assim nasceu uma obra-prima da sétima arte que, em 2022, celebra seu centenário. 

 

[1] KAYSER, Wolfgang. O grotesco – configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2003, p.29.  

[2] Idem, p.43.  

[3] ARGAN, Giulio. Arte moderna. Trad. Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das letras, 1992, p.228.  

[4] Idem, p.232. 

[5] NAZÁRIO, Luiz. “O Expressionismo no cinema”; GUINSBURG, J. (org). O Expressionismo. São Paulo: Perspectiva, 2003, p.519.  

[6] NOSFERATU: uma sinfonia do horror. Direção: Friedrich Murnau. Produção: Enrico Dieckmann e Albin Grau. Prana Film. Alemanha, 1922.  

[7] Idem.  

[8] Idem. 

[9] Idem. 

[10] Idem.  

[11] Idem.  

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