Gramática Normativa Padrão Transdisciplinar: o exemplo da Finlândia e outros exemplos

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Caros Leitores do Diário do Rio:

Vamos refletir um pouco sobre a, por vezes, tão temida Gramática Normativa Padrão da língua portuguesa? Este artigo traz algumas reflexões do meu próximo livro, no prelo pela Editora OmniScriptum, de Saarbrücken, Alemanha, cuja versão em português se chamará “Uma gramática normativa – sem preconceito e sem trauma”. Será noticiado aqui no Diário do Rio quando o lançamento ocorrer.

Tentarei mostrar, neste artigo de agora, portanto, como o conhecimento mesmo “abstrato” das mais profundas nomenclaturas gramaticais (vejam bem: eu disse o CONHECIMENTO das nomenclaturas) pode ir muito além da disciplina gramatical voltada para si mesma, e alçar voos ao conhecimento das ciências do mundo e, por fim, do próprio mundo.

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Quero, mais uma vez, antes de adentrar o artigo, deixar o e-mail do Centro Filológico Clóvis Monteiro, da UERJ, que, com seu serviço de Consultoria linguístico-gramatical, está de portas e ouvidos abertos para receber e sanar suas dúvidas nos terrenos às vezes complexos do nosso idioma. O e-mail é cefiluerj@gmail.com. Não hesitem em escrever-nos.

Vamos à reflexão que intitula este artigo.

Por que Gramática Normativa Padrão? Faço questão, aqui, de usar o qualificativo “Padrão” porque, como venho dissertando frequentemente, no eco de Coseriu, toda gramática é um conjunto de normas, “regras do jogo” de funcionamento de um idioma, “sistema de sistemas”, como dizia o velho e bom Saussure e como desenvolveu o bom e velho Coseriu. Chamo a essa gramática de Gramática Sistêmica.

Assim, a rigor, TODA gramática é normativa (a sistêmica, a padrão e as gramáticas de variantes regionais e urbanas específicas, de quaisquer domínios discursivos, presentes, por exemplo, nos atlas de que a dialetologia se ocupa), porque traz as normas ou regras do idioma, ainda que de um domínio discursivo muito restrito. Mas nem toda gramática – que é sempre normativa, portanto – é “padrão” do idioma.

A variante “padrão” é aquela tecnológica e muitas vezes artificial, tirada sobretudo dos gêneros textuais de prestígio, centrípeta, como disse o austríaco Hugo Schuchardt, usando a expressão da Mecânica clássica, cujo objetivo primeiro é a política linguística (ou DE LÍNGUA, como salienta Kanavilil Rajagopalan) e/ou o letramento. E é sobre a “padrão” que este artigo versará.

A Gramática Normativa Padrão é uma disciplina fundamental, mas a médio e longo prazo. Sua eficácia é gradativa. O que o senso comum não consegue enxergar (faço aqui a clássica dicotomia entre senso comum / senso crítico, proposta por Aristóteles e posteriormente por Kant e por Popper e Kuhn) é o fato simples de que os resultados do ensino da Gramática não vêm como suposta ferramenta imediata para a comunicação. Isso porque o senso comum é subjetivista, instintual, imediatista e só aceita soluções radicais do tipo “tudo ou nada” e “aqui e agora”. A Gramática não é – nem se predispõe ser – uma espécie de manual ou cartilha de “sobrevivência” no âmbito comunicativo.

Deveria ser claro: a Gramática não é um instrumento de comunicação. Pessoas podem e conseguem se comunicar sem conhecimento teórico de Gramática Normativa Padrão. Essa competência e esse desempenho comunicativos, com efeito, o aluno traz perfeitamente embutido de sua “escola paralela”, a “escola da vida”, como definiu Azeredo. Trata-se das “competências enunciativa e idiomática” de que fala Coseriu, alheias, a rigor, ao ambiente padronizante (com razões para sê-lo) que a escola e o letramento desejam alcançar – ou deveriam desejar…

Em outras palavras, o aluno continuará comunicando-se mesmo que nunca venha a saber, por exemplo, a emblemática diferença entre um complemento nominal e um adjunto adnominal. Isso, num primeiro nível de raciocínio, poderia gerar a impressão de que é desnecessário ensinarem-se distinções que tais: apregoar-se-ia que discernimentos assim não “servem” para nada.

Pergunto-me, antes do mais, se um professor de Matemática, por exemplo, se indaga se aquela matéria que ele ensina “serve” a todos os seus alunos. E mais: se serve “agora”, isto é, numa visão imediatista, se conseguirão suprir lacunas de, assim digamos, “sobrevivência” imediata desse aluno. Ora, imediatamente poderiam levantar-se as vozes daqueles alunos que, por exemplo, pretendam seguir carreiras das ciências sociais, para quem uma Matemática ou uma Química não seriam, a priori, “necessárias”.

Porém, sei que a Matemática que se aprende, assim como a Química e as outras disciplinas, molda áreas do cérebro que não teriam sido igualmente fecundadas exclusivamente com matérias e disciplinas que requeressem apenas a reflexão calcada na subjetividade ou que se fincassem mais fortemente na interpretação e na retórica de fatos e versões, como a História e a Geografia, por exemplo. A Matemática contribuiu para ensinar a Lógica das relações categoriais da vida, e essa mesma Lógica está nas entranhas da Gramática.

Talvez o aluno tivesse aprendido a Lógica da vida sem as disciplinas como Matemática, Química e Física, mas certamente com elas foi muito mais fácil e muito mais estável o aprendizado.

Ademais, o aluno no Ensino Básico teria, de fato, maturidade para já ter decidido por que veredas do pensamento vai penetrar na sua vida profissional? Ou seja, não será precipitado delegar-se a um jovem ou a uma criança a decisão sobre sua vida futura, deixando a seu encargo selecionar se ela deverá privilegiar, em sua formação, disciplinas chamadas “exatas”, “humanas” ou “biomédicas”?

Parece-me que o ensino Básico (comportando o Fundamental e o Médio) deva, além de desenvolver raciocínios complementares (como o lógico e o interpretativo), também fornecer subsídios de formação básicas para que o aluno, numa fase de maturidade mais preeminente, possa escolher sua área de vocação e, enfim, dispor de meios intelectuais com que dará guarida à área escolhida.

Eu sei que se discute – o que é bom – a extensão dos conteúdos ministrados no Ensino Básico. Este artigo, por ora, não vai entrar nessas fímbrias, mas elas devem preocupar professores e pedagogos, ao menos aqueles que efetivamente conheçam a realidade de uma sala de aula.

O Ensino Básico na Finlândia (top de linha em termos de desempenho escolar no mundo), atualmente, baseia-se, entre outros elementos, em torno de “eixos temáticos”, que conjugam disciplinas quaisquer que, por alguma razão, ajudem a refletir e encontrar soluções sobre esses eixos.

Assim, por exemplo, uma aula de computação (cibernética) pode ? e deve ? evocar os estudos “abstratos” da sintaxe: saber a diferença entre um complemento nominal e um adjunto adnominal auxiliará o aluno a desvendar a sintaxe cibernética. Se o “eixo” recai sobre sustentabilidade, por exemplo, a Matemática poderá prover o ensino de construção e análise de gráficos cartesianos, a Biologia poderá trazer seus conhecimentos sobre nichos ecológicos, a língua será usada de forma instrumental para a interpretação que perpassa tudo isso. Ultrapassam-se disciplinas: eis o caráter trans-disciplinar da Gramática Normativa Padrão.

A Química Orgânica e a Inorgânica – outro exemplo ? são campos construídos sobre as bases da morfologia da Gramática Normativa Padrão: existem, nos compostos químicos, radicais, prefixos, sufixos, vogais temáticas etc. que determinam se se trata de um ácido, uma base, um anel de benzeno. A morfologia da Gramática Normativa Padrão pode – e deve – ser estudada em paralelo com esses outros estudos, pois, uma vez juntas, as duas disciplinas – Química e Gramática – se iluminarão uma à outra, e permitirão o entendimento mais completo dos fenômenos que se apresentam, gerando reflexões críticas que apontem soluções para problemas concretos tanto de uma como de outra.

Para dar outro exemplo, a distinção entre subordinação e coordenação está na estrutura da argumentação (retórica) que se proponha mostrar nexo de causalidade (subordinação temporal: algo precisou acontecer para que outro fator ocorresse) e mera concomitância ou correlação de fatos/situações (coordenação temporal: dois ou mais fatores se sobrepõem ou se superpõem sem nexo na sequência do tempo). Isso é um conceito FUNDAMENTAL para a interpretação de textos até das ciências exatas ou biológicas, e sem esse conhecimento um aspirante a cientista poderá cair em falácias até mesmo ridículas.

Um professor de Língua Portuguesa que não veja nos arcabouços da Gramática (digo nas suas metalinguagens e descrições) a Filosofia, que se reflete no (e do) “mundo dos objetos” (como diria Cassirer), com seus meandros sutis, perderá excelente oportunidade de desenvolver senso crítico em seu aluno. Isso porque não teve paciência, não agiu como um cientista, pois quer medidas apenas a curtíssimo prazo, quer que seus alunos apenas se comuniquem, não indo à formação mais profunda do raciocínio desse aluno, que, no futuro, poderá, muito provavelmente, constituir massa de manobra, por ter sido alijado da formação de seu senso crítico por causa de professores que confundem ensino de Gramática com ensino de Comunicação.

Aqui, ouso dizer que não apenas a Linguística estruturalista e pós-estruturalista (saussuriana, bloomfieldiana, sapiriana etc.) é uma ciência-piloto: a Gramática Sistêmica e a própria Gramática Normativa Padrão, que é o ponto de maior rigor da Gramática Sistêmica, até por seu caráter artificial e constatador científico de relações categóricas da língua, são ciências-piloto.

O professor que extirpe de um aluno do Ensino Fundamental e Médio o seu contato íntimo com as sutilezas críticas, racionais, lógicas e filosóficas dessa Gramática está contribuindo para a criação de pessoas que apresentarão deficiência em seu aparato lógico-cognitivo. Pessoas que desconhecerão a gramática do mundo (pelo menos no que diz respeito à “contribuição” dada por seu professor de Língua). Pessoas que, se vierem a desmembrar o tecido das relações humanas com todos os campos do saber, terão feito isso com esforço dobrado, triplicado, quadruplicado, e que poderiam ter tido um atalho conduzido pelas mãos hábeis e sábias de seu verdadeiro professor de Língua.

Acaso não é para isso que serve – “servir” é mesmo o verbo adequado – um professor? Ele não é aquela pessoa que cria facilidades para o conhecimento amplo e que vá além do senso comum de seus alunos, pois que, se fosse para permanecer exclusivamente no senso comum, a escola formal não teria serventia alguma?

Imagine-se um médico que se recusasse a respeitar o tempo devido de uma pesquisa científica para ver os resultados, a médio e longo prazo – eis o senso crítico novamente em cima do mero senso comum, que não aceita senão o curto prazo –, de um experimento, e já tirasse conclusões na primeira impressão, subjetivamente. Assim age, analogamente, o professor de Língua Portuguesa que só queira extrair de seu aluno seu desempenho comunicativo, e nada mais.

Ouso também dizer que o conhecimento pormenorizado das Gramáticas Sistêmica e Normativa Padrão ajuda na elucidação do mundo como um todo por uma razão muito simples: nós, seres humanos, somos animais racionais, históricos e simbólicos mediados, em nossa relação com o outro e com o mundo, necessariamente pela língua.

Freud disse isso, e esta foi sua grande contribuição à humanidade. Não se conhece o mundo e o outro (e a si mesmo) por completo sem o estudo da natureza da língua. Somos seres DE LÍNGUA. O texto “Lituraterra”, de Lacan (“Lituraterre”, em francês), ilustra tão bem nossa conexão com o todo do mundo (terra) por meio da letra (litera), da cultura (“cultura”, particípio futuro do latim), das relações gramatical-geográficas, enfim, que a SÓ língua nos apresenta.

É comprovado que pessoas que desconhecem as Gramáticas Normativas de suas primeiras línguas terão enormes lacunas e dificuldades para aprender idiomas estrangeiros, e, se o conseguirem, o farão de forma sempre deficitária, sem que se deem conta do real motivo de suas dificuldades.

Propugno, repito, pela distinção básica que um docente de Língua Portuguesa, sobretudo um docente dos Ensinos Fundamental e Médio (muito embora se possa mencionar a gravidade da omissão nas próprias Faculdades de Letras!), deva promover entre Gramática Normativa Padrão e linguagem (imbricada na Gramática Sistêmica), entre língua e comunicação, enfim.

De fato, não constituem a mesma realidade. Pode-se dizer, muito lato sensu, que uma realidade propende para o campo teórico, enquanto a outra se encaminha ao campo da prática; mas ambos se complementam. O professor precisa manter essa distinção e essa complementação à vista. Ou teoria e prática não devem, de fato, respeitando-se os limites de maturidade e grau de estudo, andar juntas? Não se trata de um corolário básico da Epistemologia (Filosofia da Ciência)?

Um aluno não precisaria de professor algum que lhe ensinasse comunicação ou linguagem básicas; a menos que compreendêssemos como “professores” seus pares da vida cotidiana. Isso ? comunicação ou linguagem básicas ? ele aprende diariamente, em contato com os seus, na “Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”, citando o Manuel Bandeira em sua “Evocação do Recife”.

Aliás, o professor de Gramática que ainda conclama a arcaica e obsoleta forma (essa, sim, ultrapassada e obsoleta) de lidar com uma equivocada dicotomia rígida torneada em “certo” (suposta exclusividade da Gramática e da língua escrita) versus “errado” (suposta exclusividade da língua falada) não percebe que, mesmo na língua falada, momentos haverá em que o indivíduo, para exercer sua cidadania, precisará estar no registro gramatical normativo padrão tenso. E, por outro lado, há muitos gêneros textuais escritos em que a Norma Padrão não é exigida (como a crônica e o cordel).

As distinções entre língua, linguagem, comunicação, variação, unidade, norma, padrão, coloquialidade etc. devem ser mostradas ao aluno, sim. Mas não lhe deve ser negada uma importante porta de acesso ao raciocínio lógico e retórico, de que está imbricada a urdidura profunda das regras gramaticais.

A Gramática Normativa Padrão conhecida – e refletida – ultrapassa seus próprios limites. É centrífuga, além de centrípeta, porque alcança todas as áreas a que o ser humano pode chegar, já que, repito, somos seres DE LÍNGUA. Não apenas de linguagem. Porque, afinal, a linguagem só se concretiza numa língua específica.

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PhD em Língua Portuguesa pela UERJ. É professor adjunto de língua portuguesa e filologia românica da UERJ e author and content developer da California State University. Tradutor de inglês, francês, alemão, espanhol, italiano, latim e grego, pesquisador das filologias russa e mandarim. Escritor com mais de 40 livros publicados e premiados no Brasil e no mundo. Membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia, do PEN Club Rio-Londres, da Académie des Arts, Sciences et Lettres de Paris e da Academía de Letras y Artes de Chile. Em 2011, recebeu a Comenda e a Médaille de Vermeil do Governo francês.
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