Inteligência Artificial no banco dos réus: oportunidades e riscos do uso da IA no Judiciário brasileiro

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Imagem gerada por Inteligência Artificial

Introdução: quando a tecnologia cruza os limites da toga

              O Judiciário brasileiro, conhecido por sua complexidade e questões relacionadas a gestão de seu gigantesco acervo de processos, vive um momento de intensa transformação. O ingresso da inteligência artificial nas rotinas forenses não é mais uma previsão futurista — é uma realidade concreta e, como revelam os últimos episódios, também controversa. Juízes utilizando ferramentas automatizadas para redigir centenas de sentenças em curto espaço de tempo, plataformas que vendem petições prontas por valores irrisórios, e decisões judiciais que enfrentam os riscos da banalização da prática jurisdicional por robôs.

              Mas afinal: o que há de legal, ético e possível nesse cenário? A tecnologia está a serviço da Justiça — ou substituindo a função jurisdicional? Os recentes acontecimentos escancararam os desafios dessa nova fronteira, na qual a busca por eficiência esbarra em garantias fundamentais, e o entusiasmo com a inovação exige cautela diante da responsabilidade pública.

              Neste artigo, vamos examinar esses casos, refletir sobre os limites da automação judicial e apresentar os riscos e oportunidades que o uso de IA traz para o sistema de Justiça — com impacto direto na vida de advogados, magistrados e cidadãos comuns.

1. Sentenças em série: quando a produtividade do juiz vira objeto de investigação

              Um caso emblemático explodiu nas manchetes jurídicas em abril de 2025: um juiz do Maranhão que, num intervalo de poucos dias, saltou de 80 para 969 sentenças proferidas. A produtividade incomum gerou desconfiança. O motivo? O magistrado estaria usando ferramentas de inteligência artificial para redigir as decisões — sem transparência sobre o uso, nem revisão adequada de conteúdo.

              Segundo reportagens do portal Migalhas, o Tribunal de Justiça do Maranhão instaurou procedimento disciplinar contra o juiz, alegando possível violação aos deveres funcionais. A apuração busca verificar se houve “delegação indevida de função jurisdicional” a sistemas automatizados, o que poderia comprometer a autenticidade e a legalidade dos atos judiciais.

              O episódio traz à tona um dilema essencial: até que ponto a IA pode auxiliar na elaboração de sentenças sem que isso se configure como abdicação do dever de julgar? O uso de modelos de linguagem, como os baseados em algoritmos generativos, pode ser uma ferramenta de apoio — mas jamais um substituto da função jurisdicional.

              Além disso, há um problema ético e processual: decisões padronizadas, sem personalização ou análise do caso concreto, ferem princípios constitucionais como o contraditório, a ampla defesa e a motivação das decisões (art. 93, IX, da CF/88). O juiz não pode ser um “operador de sistema”, mas sim um garantidor de direitos.

2. Petições a R$ 19,90: o risco da automação sem responsabilidade

              Em paralelo ao caso do juiz maranhense, outro episódio chamou atenção do meio jurídico: a suspensão de um site que vendia petições automatizadas por apenas R$ 19,90. O modelo de negócio era simples — e, justamente por isso, preocupante: o usuário preenchia um formulário online com dados básicos e, em minutos, recebia uma petição inicial pronta para ser protocolada nos Juizados Especiais.

              O problema? Essas peças processuais eram produzidas integralmente por inteligência artificial, sem qualquer revisão humana. Em decisão liminar, a Justiça determinou a imediata suspensão do site, destacando que o serviço colocava em risco o direito dos consumidores à adequada prestação jurisdicional e configurava, em tese, exercício ilegal da advocacia.

              A decisão fundamenta-se no fato de que a atividade advocatícia, segundo o Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94), exige habilitação profissional, responsabilidade técnica e deveres éticos — nenhum dos quais poderia ser assegurado por um sistema automatizado impessoal. A petição jurídica não é apenas um formulário com nome e CPF: ela deve expressar uma argumentação consistente, analisar os fatos sob a ótica do direito aplicável e, sobretudo, zelar pelos interesses do jurisdicionado.

              Além disso, ao cobrar um valor simbólico por peças padronizadas, a plataforma pressionava o mercado jurídico, criando um cenário de concorrência desleal e possível lesão à dignidade profissional. O baixo custo atrai o público mais vulnerável, mas não garante qualidade ou responsabilidade jurídica — elementos essenciais quando se trata de direitos fundamentais.

3. IA no banco dos réus: a judicialização da inteligência artificial

              Esses episódios ilustram que a inteligência artificial não está apenas transformando a prática jurídica — ela própria está se tornando objeto de judicialização. Ferramentas automatizadas estão sendo questionadas nos tribunais, seja por uso impróprio por magistrados, seja por ofertarem serviços jurídicos sem respaldo técnico ou legal.

              Esse novo contencioso desafia o próprio Judiciário a estabelecer parâmetros para a atuação da IA no sistema de Justiça. O que é apoio tecnológico legítimo e o que é delegação indevida de competência? Como assegurar que algoritmos respeitem o devido processo legal, a isonomia e a motivação das decisões?

              O desafio está em normatizar essa nova realidade sem barrar a inovação. A IA pode — e deve — ser uma aliada na melhoria da eficiência judicial. Mas, como qualquer instrumento de poder, ela precisa estar submetida a controle, transparência e responsabilidade. A tecnologia, afinal, deve estar a serviço das pessoas — e não o contrário.

4. Limites constitucionais: o que a IA pode (e não pode) fazer no processo judicial

              A Constituição Federal de 1988 estabelece pilares inegociáveis para o exercício da jurisdição. O princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV), o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV), bem como o dever de motivação das decisões judiciais (art. 93, IX), não são meros adornos formais — são garantias estruturantes da legitimidade da função jurisdicional.

              Nesse contexto, o uso de inteligência artificial deve observar esses limites constitucionais. Quando um juiz profere decisões com base em modelos automatizados, é indispensável que a fundamentação reflita o exame do caso concreto e que o conteúdo da decisão seja compreensível, auditável e revisável.

              Ele se aplica a sistemas de triagem processual, sugestões de minuta, ou análises preditivas: não basta que sejam eficientes — precisam ser transparentes e explicáveis. O chamado algoritmo opaco (black box) é incompatível com o dever de publicidade dos atos judiciais e o controle democrático das decisões judiciais.

              Além disso, o Código de Processo Civil de 2015 reforça a importância da fundamentação (art. 489), da boa-fé processual (art. 5º) e da cooperação entre os sujeitos do processo (art. 6º). São dispositivos que exigem condutas humanas orientadas por princípios — algo que a IA, por si só, não é capaz de garantir.

              A introdução de tecnologia nos tribunais, portanto, deve se alinhar à lógica constitucional-processual brasileira. A inovação é bem-vinda — desde que regulada, controlada e usada de forma subsidiária, sem substituir o núcleo decisório que é, e deve continuar sendo, humano.

5. O risco da padronização: justiça automatizada ou injustiça em escala?

              Um dos maiores riscos associados ao uso indiscriminado de IA no Judiciário é a padronização automática de decisões. Se a IA for usada para gerar sentenças sem análise individualizada dos fatos, há o perigo de transformarmos a justiça em uma “fábrica de decisões”, onde a eficiência suplanta o direito.

              É tentador imaginar um sistema capaz de dar conta do acúmulo processual com um clique. Mas justiça não é produção em massa: é análise cuidadosa, ponderação de princípios, escuta das partes. Automatizar esse processo sem critério pode significar a reprodução de injustiças em escala industrial.

              Além disso, algoritmos aprendem com os dados que recebem. Se forem alimentados com decisões enviesadas, tendem a perpetuar os mesmos erros. Isso é especialmente grave em temas como violência doméstica, questões raciais, relações de consumo ou processos contra grandes corporações — onde a sensibilidade e o contexto são fundamentais.

              A IA pode ser uma aliada na triagem de demandas repetitivas, na sugestão de precedentes, ou no auxílio à redação de minutas. Mas deve sempre haver uma revisão humana crítica. O juiz não pode delegar sua autonomia decisória à máquina. O advogado não pode terceirizar seu dever de zelo ao algoritmo. E o cidadão não pode ser julgado por um sistema que não entende sua singularidade.

6. Os princípios do CNJ e da OCDE para a IA no Judiciário

              No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou em 2022 a Resolução nº 332, que trata da ética, transparência e governança no uso de inteligência artificial no Poder Judiciário. O texto estabelece princípios fundamentais que devem nortear o desenvolvimento e a aplicação de ferramentas de IA:

  • Transparência: os sistemas devem ser auditáveis e seus critérios de funcionamento claros;
  • Responsabilidade: a decisão judicial é sempre de competência humana, mesmo quando houver auxílio automatizado;
  • Privacidade e proteção de dados: conforme a LGPD, os dados processuais devem ser protegidos;
  • Não discriminação: é vedado o uso de algoritmos que produzam resultados enviesados;
  • Eficiência com legitimidade: os ganhos de produtividade não podem comprometer os direitos fundamentais.

              Tais diretrizes estão alinhadas com os Princípios da OCDE sobre Inteligência Artificial, aprovados por mais de 40 países, que incluem valores como respeito ao Estado de Direito, bem-estar humano, inclusão, e supervisão contínua de sistemas de IA.

              Esses marcos não têm força de lei propriamente dita, mas constituem importantes balizas para orientar o uso ético e responsável da IA, sobretudo em uma área tão sensível quanto a jurisdição.

7. O futuro da IA na Justiça: entre a esperança e o alerta

              A presença da inteligência artificial no Judiciário não é uma hipótese: é uma realidade em expansão. Ferramentas automatizadas já auxiliam na triagem de processos, na sugestão de precedentes, na redação de minutas e até na previsão de decisões com base em modelos preditivos. Em muitos casos, a tecnologia representa um avanço inegável — capaz de reduzir gargalos históricos, facilitar o acesso à informação e racionalizar o trabalho de magistrados e servidores.

              Mas toda promessa tecnológica traz consigo uma advertência. A tentação de usar a IA como substituta do trabalho humano — seja por pressão por produtividade, seja por redução de custos — pode corroer os fundamentos da Justiça. Decisões judiciais não são produtos de fábrica. Envolvem sensibilidade, ponderação, escuta ativa e responsabilidade institucional.

              O que está em jogo, portanto, não é apenas a eficiência do sistema. É a legitimidade da função jurisdicional, o direito das partes à motivação, à individualização da análise, à dignidade do tratamento. Quando essas garantias se perdem em nome da automação, o risco é substituirmos a justiça pela estatística.

8. Propostas de regulação e caminhos possíveis

              Diante desse cenário, alguns caminhos se mostram urgentes:

  1. Regulamentação legislativa específica: o Congresso Nacional precisa enfrentar o tema e aprovar um marco legal sobre o uso da IA no setor público, com regras específicas para o Judiciário.
  2. Transparência obrigatória: qualquer decisão proferida com apoio de IA deve indicar expressamente a ferramenta utilizada, a extensão de sua atuação e garantir revisão humana.
  3. Formação crítica dos operadores do Direito: advogados, juízes e defensores públicos precisam ser capacitados não apenas para utilizar a IA, mas para compreender seus limites e riscos.
  4. Criação de observatórios e comitês de ética tecnológica: órgãos autônomos podem ajudar a monitorar o uso da IA no Judiciário, identificar abusos e propor recomendações.
  5. Inclusão da sociedade no debate: afinal, quem mais será afetado pelo uso da IA na Justiça é o cidadão comum — que não pode ser deixado à margem dessa discussão.

9. Conclusão: o Direito diante da máquina

              A discussão sobre inteligência artificial na Justiça não diz respeito apenas a técnicos, programadores ou operadores do direito. Trata-se de um tema que toca o cerne da cidadania: quem decide os conflitos que afetam nossa vida? Estamos entregando esse papel a juízes conscientes e responsáveis — ou a sistemas opacos, padronizados e desumanizados?

              A IA pode ser uma aliada poderosa, mas nunca deve ocupar o banco do juiz. Sua função é auxiliar, não decidir. Informar, não substituir. A Justiça precisa evoluir — mas sem abrir mão da sua essência: ser humana, acessível, responsável e justa.

              O debate está lançado. E todos — magistrados, advogados, professores, estudantes, cidadãos — têm um papel a cumprir nessa travessia.

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1 COMENTÁRIO

  1. Observação um, pode estudar o que for, mas se você não sabe sobre o tema melhor não opinar. Nesse sentido é muito claro que o autor não sabe nem o que é um modelo de LLM ao defender um ponto de vista sobre o tema.

    Segundo, vamos então só lançar o modelo quando o mesmo obtiver estatísticas superiores aos humanos, da mesma forma que vamos olhar todos os erros humanos que as máquinas nunca vão cometer e pesar na balança da decisão, mais especificamente no direito, temos valores que são esquecidos todos os dias e o que mais se vê são julgamentos viesados e que ignoram a constituição e as leis. Nesse sentido, a máquina tende a ser muito superior aos humanos, e sabendo disso os autointitulados “doutores” temem pois sabem que a máquina um potencial muito grande especificamente nessa área de aplicação.

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