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Luciano de Castro: O Xangô da presidente Wilson Street

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Por: Luciano de Castro

O fardão caiu como uma luva em Gilberto Gil. Na cerimônia de posse, ocorrida em 08/04/2022, via-se o compositor elegante e orgulhoso em ocupar a cadeira nº 20 e tornar-se o terceiro negro da ABL; os outros dois são Machado de Assis e Domício Proença. Num país de Cruz e Sousa, Lima Barreto, Abdias Nascimento e Milton Santos, a representatividade negra na Academia é baixíssima, lembrando que, dentre as nove acadêmicas — já incluindo Fernanda Montenegro — nenhuma é negra. Historicamente, a ABL foi um território ocupado por literatos e notáveis em sua maioria homens, e brancos. Também por isso, a posse de Gilberto Passos Gil Moreira é um marco.

Ao cruzar os umbrais da Academia, Gil leva a tiracolo um balaio de brasilidade afrodescendente. Machado e Domício são, por certo, ícones para o povo negro do Brasil.  Isso é inquestionável. Mas, com Gil, vamos além da representatividade cutânea, implícita. Gil carrega os tambores de Angola, os repiques do agogô, os terreiros de candomblé, leva o seu “cesto de alegrias de quintal”. É obvio que, independentemente da cor da pele, seu cabedal poético-musical já seria suficiente, mas é emblemático que uma cadeira da ABL seja ocupada por um artista popular, baiano e negro.

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Desde que os nomes de Gilberto Gil e Fernanda Montenegro foram divulgados como eleitos para a ABL, choveram setas venenosas na selva digital. Com a posse dos dois, os ataques se intensificaram. Os lanceiros do ódio, que nunca dormem, continuam lá, no Facebook, Instagram e Twitter, postando frases de indignação e deboche. No meio pecuário, essa aversão é perfeitamente compreensível; estranho seria o contrário: a fauna bolsonarista é tão afeita à cultura quanto o esquimó ao deserto. O triste é ver pessoas supostamente esclarecidas, inclusive do meio cultural, se apoiarem no purismo paralisante para qualificar Gil como indigno de pertencer à ABL por não ser escritor.

É preciso esclarecer que esse argumento não se sustenta, não passando de puro preconceito ou preciosismo. Gil é, sim, escritor, poeta e letrista em mais de 500 canções, muitas delas verdadeiros poemas musicados, como “Metáfora”, “A Paz”, “Drão”, “Domingo no Parque” e tantas outras belezuras da sua lavra. Além das músicas, Gil é coautor de alguns livros, como “Gilberto bem perto” e “Disposições Amoráveis”. Fico a imaginar que notórias obras literárias teriam escrito José Maria Paranhos (Barão do Rio Branco), Getúlio Vargas, Marco Maciel, Fernando Henrique Cardoso e Merval Pereira para merecerem figurar no panteão da ABL.

Ainda que não seja considerado um literato no sentido estrito da palavra, isso não inviabilizaria a nomeação do músico. Durante sua existência centenária, a ABL elegeu muitas personalidades notáveis fora da Literatura: Santos Dumont, Ivo Pitanguy e Nelson Pereira dos Santos são alguns exemplos. Gil é indiscutivelmente um notável da música popular brasileira e, na verdade, é o primeiro representante da MPB a ingressar na Academia. Mais um feito. Em 2013, Bob Dylan protagonizou algo parecido ao se tornar o primeiro roqueiro da Academia Americana de Artes e Letras. Pautando-se pelo conceito da pluralidade, a ABL, entidade privada, se permitiu acolher expoentes de várias áreas de atuação. Em suma, sendo ou não escritor, Gil entra para a ABL por mérito.

Gil é filho de Xangô, o orixá guerreiro, dos raios, dos trovões e da justiça. Com quase 80 anos, o artista genuinamente brasileiro que fez a assembleia da ONU dançar ao ritmo de “Toda menina baiana” tira a veste branca e põe o fardão. A força de Xangô agora tomará de assalto a sisuda Academia Brasileira de Letras e, a partir da Avenida Presidente Wilson, no centro do Rio de Janeiro, se irradiará pra todos os confins do Brasil. Ad immortalitatem, Gilberto Gil, meu Xangô-Menino de cabelos brancos.

Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.

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