Márcia Silveira – ‘A Filha Primitiva’: 3 vidas marcadas por ausências

Colunista do DIÁRIO DO RIO opina sobre o livro ''A Filha Primitiva'', escrito por Vanessa Passos

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Capa do livro ''A Filha Primitiva'', de Vanessa Passos
Capa do livro ''A Filha Primitiva'', de Vanessa Passos

Na última quinta-feira (11/08), ocorreu o lançamento do livro ”A Filha Primitiva”, da escritora Vanessa Passos, na Livraria Janela, no Jardim Botânico. O romance foi o vencedor do Prêmio Kindle de Literatura em 2021 e este ano foi publicada a sua versão física pela editora José Olympio (Grupo Record). O lançamento no Rio foi o primeiro de uma turnê que passará por diversos estados.

A Filha Primitiva é narrado por uma mulher que mora em Fortaleza com a mãe e a filha pequena. Três gerações de mulheres negras que nunca são chamadas pelo nome neste romance e têm suas vidas marcadas por uma série de dificuldades. A relação da narradora com a mãe é tumultuada. Ela deseja saber quem é seu pai, mas a mãe lhe nega essa informação. A narradora sente revolta e mágoa pela falta de acesso ao seu passado, o que provoca problemas durante toda a sua vida, inclusive influenciando na sua relação com a filha recém-nascida.

”Não tinha mais cordão umbilical, a menina não mamava mais. Era a raiva agora que passava pra ela, de mãe pra filha. Não foi o parto, não; não foi a contração, não; não foi dar o peito, não; foi a raiva que me tornou mãe.”

Com o incentivo da mãe, que deseja ter uma filha doutora, a personagem consegue continuar os estudos, com dificuldade, após o nascimento da filha. Forma-se em Letras e inicia o mestrado. Trabalha como professora, mas seu desejo maior sempre foi o de escrever. Ela vê a escrita como uma forma de se descobrir, se conhecer, de ”tapar os buracos que faltavam” em sua vida.

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”A gente vai parindo devagarzinho, letra por letra, que se não saem ficam encruadas dentro fazendo mal, ferindo a gente feito felpa que entra no dedo. Tem que tirar com agulha, espremer o pus. Dói parir palavras. Dói mais ainda viver com elas dentro.”

A linguagem que Vanessa Passos utiliza é crua e cortante, pois ela é o instrumento através do qual a personagem demonstra o seu desgosto com a falta de um passado e com as dificuldades que a vida lhe impõe. A mãe se apega à fé religiosa para conseguir seguir com sua vida, o que se torna mais um motivo de atrito com a filha, que considera a religião uma forma de não enxergar a realidade.

Além da mágoa por não saber quem é seu pai, a narradora não consegue se conectar com a filha, que se torna um peso em sua vida. Como outras publicações que têm surgido nos últimos anos, o romance de Vanessa Passos põe abaixo a maternidade romantizada e desmistifica a ideia de que toda mulher nasceu para ser mãe.

Em sua coluna no jornal O Povo, Vanessa Passos escreveu recentemente sobre o espanto de se descobrir negra num país racista. Por ter a pele clara, ela sempre havia sido tratada como morena ou parda, inclusive pelos pais – segundo ela, uma forma de protegê-la do racismo, já que, num país preconceituoso como o nosso, ”ser branca dói menos”.

Esse privilégio branco, facilmente percebido em nossa sociedade, é um dos assuntos que permeiam A Filha Primitiva. Através da fala de uma vizinha da personagem, Vanessa mostra o quanto ele está enraizado: a vizinha diz para a narradora que, em vez de engravidar, ela deveria ter aproveitado que tem a pele mais clara para
estudar e dar orgulho para a mãe.

Racismo, violência de gênero, abuso, abandono. Na narrativa escrita por Vanessa Passos, tudo está explícito, sem meias-palavras. São três vidas marcadas por ausências e adversidades, quase como uma sina. Para a mãe, é através do estudo que este destino pode ser superado. Para a narradora, a escrita é o que pode trazer alento e, quem sabe, a reconciliação com sua família e o seu passado.

  • Livro: A Filha Primitiva
  • Autora: Vanessa Passos
  • Editora: Record
  • Páginas: 176

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