Márcia Silveira – ‘A Visão das Plantas’: entre um passado sombrio e a delicadeza das flores

Opinião da colunista Márcia Silveira sobre o livro ''A Visão das Plantas'', da autora Djaimilia Pereira de Almeida

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Capa do livro ''A Visão das Plantas'' - Foto: Divulgação

A inspiração para o livro ”A Visão das Plantas” surgiu de uma frase que a autora Djaimilia Pereira de Almeida leu no livro ”Os Pescadores”, de Raul Brandão: ”tendo começado a vida como pirata a acabou como um santo, cultivando com esmero um quintal de que ainda hoje me não lembro sem inveja”.

A partir desta frase, a autora angolana desenvolve o personagem principal de seu romance: Celestino, um ex-capitão de navio negreiro, que após muitos anos de vida no mar, retorna para a casa de sua infância, em Portugal. No quintal desta casa, ele cultiva um jardim, que passa a ser sua principal companhia e seu refúgio na velhice.

Celestino possui um passado de violência e atrocidades. Durante seus anos como pirata, cometia monstruosidades contra os negros escravizados que eram levados no seu navio, como no dia em que ele e seus companheiros despejaram cal no porão, matando sufocados mais de sessenta homens.

A vizinhança conhece o passado do ex-capitão e evita se aproximar, apesar da curiosidade. As crianças gostam de ouvir as histórias das barbaridades cometidas pelo pirata. E o padre é o único que o visita, sempre na esperança de que Celestino se confesse, mas ele não cede, muda de assunto, porque não sente culpa. O único assunto que lhe interessa é o seu jardim, as suas plantas.

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”Durante dois anos, ninguém se aproximou do portão. As crianças saídas do colégio espreitavam os suspensórios de enxada às costas. Seria aquele o diabo? Era forte e espadaúdo, mas tinha tantas flores e tanta paciência para elas.”

Numa história curta, mas profunda, Djaimilia traz à tona, através de um personagem complexo, as reflexões filosóficas sobre o bem e o mal e sobre a justiça. Escrita em prosa poética, a narrativa expõe a complexidade da natureza humana, deixando de lado qualquer visão maniqueísta ao expor a inquietante ambiguidade de Celestino.

Ao dedicar sua velhice ao jardim, o capitão se livra de julgamentos, uma vez que as plantas são indiferentes ao seu passado. As plantas têm alguém que cuida delas e, com esse cuidado, tornam-se a cada dia mais belas – não importa se quem rega o jardim é alguém com um passado tão tenebroso: “Tanto lhes fazia serem cuidadas por um assassino, se eram sujas as mãos que as amparavam ou o que viera antes do amor que ele lhes dedicava.”

O traço marcante da narrativa é esse contraste entre o violento passado do personagem e a delicada beleza de suas flores. Rodeado de morte em seus dias no mar, na velhice Celestino tem contato com a vida através do cultivo de seu jardim: ”A rega e o zelo geraram uma infinidade de seres que descobria nos dedos ao mexer na terra: minhocas, besouros verdes, bichos-de-conta. A vida regressava.”

”A Visão das Plantas” foi lançado em 2019 e ficou em 2º lugar no Prêmio Oceanos de 2020. No Brasil, a obra foi publicada em 2021 pela editora Todavia, trazendo na capa uma ilustração de Willian Santiago (1991-2021).

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Nota
A Visão das Plantas
Bacharel em Filosofia, pós-graduada em História da Arte. Escritora e revisora. Mãe do Bruno e da Daniela. Bibliófila.
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