No dia 16 de agosto, tive a felicidade de assistir, no Rio Innovation Week (RIW), à marcante e emocionante palestra/entrevista “O sentido da vida” com Nadia Murad Basee Taha, ativista de direitos humanos iraquiana, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 2018 e, desde setembro de 2016, a primeira Embaixadora da Boa Vontade para a Dignidade dos Sobreviventes de Tráfico Humano das Nações Unidas.
Além do Nobel, Nadia recebeu o Prêmio Sakharov para a Liberdade de Pensamento, o Prêmio Václav Havel do Conselho da Europa para os Direitos Humanos, o Prêmio Clinton Global Citizen, o Prêmio Hillary Clinton para o Avanço das Mulheres na Paz e na Segurança, entre outros.
Ela foi considerada pela revista “Time” uma das 100 pessoas mais influentes do planeta. Para quem não a conhece, informo que, em 15 de agosto de 2014, ou seja, há exatos 10 anos, a vida de Nadia, uma estudante de apenas 21 anos, sofreu uma reviravolta total. Ela é uma yazidi, povo que ocupa territórios ao norte do Iraque e pratica uma religião sincrética, com elementos do cristianismo e do islamismo, e conexão com o zoroastrismo.
Os terroristas do Estado Islâmico (ISIS) invadiram a região de Sinjar, perto da fronteira iraquiana com a Síria. A maioria dos habitantes do vilarejo onde Nadia vivia com seus 11 irmãos e sua mãe solo (divorciada) foi dizimada, pois se recusaram a converter-se ao islamismo. Destaco que ISIS é o acrônimo em língua inglesa para “Islamic State of Iraq and Syria (Estado Islâmico do Iraque e da Síria).
Os homens foram mortos e os meninos enviados a campos de treinamento do ISIS. Os extremistas mataram todas as mulheres acima de 45 anos. Seis dos irmãos de Nadia foram mortos, e, pouco depois, também sua mãe. Nadia foi transportada à força para Mossul e, junto com milhares de outras moças yazidis, vendida como escrava sexual pelo ISIS.
Muitas jovens na mesma situação se suicidaram, disse Nadia, mas essa não foi uma opção para ela. Ao todo, 18 membros da família de Nadia morreram ou estão desaparecidos. Ela foi mantida em cativeiro por vários terroristas e passou a ser continuamente estuprada e espancada.
Durante esse período, ela conseguiu conversar com alguns sequestradores. “Perguntei por que faziam aquilo conosco, por que haviam matado nossos homens, por que nos estupraram violentamente. Disseram-me que ‘os yazidis são infiéis, não são um povo das Escrituras, são um espólio de guerra e merecem ser destruídos’“.
Embora a maior parte desses militantes fossem casados, as famílias – inclusive as mulheres – pareciam aceitar o que faziam, pois, para essas famílias, isso é o que determinavam as escrituras sagradas.
Contudo, após três meses de cativeiro, ela conseguiu fugir pelas ruas de Mossul, encontrando guarida no lar de uma família muçulmana sunita, que conseguiu contrabandeá-la para um local seguro. “Bati na porta de uma casa onde vivia uma família muçulmana sem conexão com o ISIS e pedi ajuda. Disse que meu irmão daria o que eles quisessem em troca.”
Por sorte, a família não apoiava o ISIS e a ajudou. “Deram-me um véu negro, um documento de identidade islâmico e me levaram até a fronteira.” Depois, ela chegou a um campo de refugiados em Dohuk, no norte do Iraque, onde viveu por anos e, em seguida, conseguiu asilo político na Alemanha.
Aqui vale um parêntesis, que a própria Nadia fez em sua palestra: talvez, se fosse hoje, ela não poderia mais conseguir asilo na Alemanha, tendo em vista o crescimento das ideias de extrema-direita e de falta de humanismo por lá, que preferem que os exilados sejam mortos e abusados em seus países de origem a deixá-los tentar viver na Alemanha.
Os horrores que viveu estão descritos em seu livro “Que eu seja a última: minha história de cárcere e luta contra o Estado Islâmico”. Seu testemunho forçou o mundo a prestar atenção ao genocídio em andamento no Iraque. Seu livro é um chamado à ação, um testamento à vontade humana de sobreviver e uma carta de amor a um país perdido, uma comunidade frágil e uma família destroçada pela guerra.
Atualmente, ela concentra seus esforços na conscientização de grandes lideranças internacionais para pôr fim ao uso da violência sexual em guerras e conflitos armados, tornando-se uma forte defensora das mulheres e comunidades que enfrentam violência de gênero, brutalidade e abuso extremos.
Apesar de ela apresentar na palestra uma imagem de fragilidade física e uma postura reservada, talvez por causa da brutalidade que sofreu por parte dos fundamentalistas do ISIS, que dizem agir em nome de Deus, ela nos mostrou uma força e uma convicção interiores muito grandes. De arrepiar.
Segundo Nadia, os fundamentalistas religiosos têm um ódio mortal daqueles que não acreditam no mesmo Deus que eles e não professam a mesma fé, pois acham que seu Deus é o único e o melhor. Um absurdo a existência, em pleno século XXI, dessa postura não humanista por parte dos fundamentalistas.
Destaco que fundamentalismo religioso é a forte aderência a qualquer conjunto de credos, com conotações religiosas, ou atitudes de pessoas preocupadas com os fundamentos, preceitos doutrinários, sectários e ideológicos de determinada religião.
Em muitos casos, o fundamentalismo tira seus adeptos do mero e salutar campo dos debates de ideias e os leva para o caminho da intolerância e da violência, como fazem o ISIS e assemelhados de outras religiões.
Durante sua palestra no RIW, tivemos a seguinte frase marcante dita por Nadia Murad: “Não sou vítima. Sou sobrevivente!”
A palavra “vítima” tem os seguintes significados: “quem sofre por culpa sua ou de outrem”; “pessoa que foi ferida, torturada ou morta por outra”; “quem sofre uma desgraça”; “quem está sujeito a ações ruins ou maus-tratos”; “quem se entrega aos vícios ou por eles é sucumbido”.
No entanto, a palavra “sobrevivente” tem dois significados: “quem sobrevive a outro”; “quem escapou de morte ou ruína”.
Assim sendo, Nadia está corretíssima ao usar a palavra “sobrevivente” no lugar de “vítima”, porque aquela palavra reforça que a mulher pode e deve procurar sair da situação de violência; é ela a protagonista de sua recuperação.
Segundo matéria d’O Globo de 21 de agosto de 2020, a psicóloga Daniela Pedroso, que há mais de 20 anos atende meninas, adolescentes e mulheres sobreviventes de abuso sexual, também defende o uso de “sobrevivente”:
— “A gente tem que nomear certo. O uso da palavra “vítima” é uma construção do patriarcado, que coloca a mulher em uma situação de passividade e submissão. Ela foi atacada e não pode se mobilizar para sair desse lugar. Já a palavra “sobrevivente” quebra o ciclo da violência e tira a mulher desse lugar passivo. Ela pode se mobilizar para seguir em frente. Indo ao extremo, sim, ela sofreu violência, mas sobreviveu ao feminicídio. É alguém que venceu algo terrível e está ressignificando essa experiência.”
Vale destacar que, segundo Nadia, esses estupros “de guerra” continuam existindo na guerra na Ucrânia e nas pouco divulgadas guerras no Congo e Sudão, dentre outras. Ela falou também que a cultura do estupro não existe só na guerra. Essa cultura existe nas áreas sem conflito e inclusive no meio das famílias.
Ela citou até casos de estupro em campus universitário nos EUA, onde estudou depois de ter ido morar na Alemanha.
Ela também mencionou que conheceu uma ucraniana de 65 anos estuprada por um soldado russo e que esta, envergonhada e chorosa, lhe perguntou se era mais fácil para uma jovem do que para uma idosa enfrentar o estigma e a indignidade que as mulheres estupradas carregam pelo resto da vida junto à sociedade em que vivem. A resposta de Nadia foi no sentido de que não, pois a indignação e o estigma são os mesmos independentemente da idade da mulher.
Nadia também fez questão de tratar, na palestra, sobre a questão do estigma (indignidade, desonra), que faz com que as mulheres estupradas prefiram ficar caladas e não denunciar os abusos criminosos que sofreram.
Segundo Nadia, as sobreviventes de violência sexual continuam a ser silenciadas pelo trauma, dor e desespero, assim como pelo estigma, insegurança e escassez de prestação de serviços. Esse estigma psicológico que as mulheres agredidas suportam gera repercussões na saúde física, emocional e social delas no contexto das relações sociais, familiares e conjugais.
Define-se o indivíduo estigmatizado como aquele que tem características diferentes daquelas que a sociedade prevê.
A pessoa estigmatizada é vista como alguém com uma característica depreciativa, o que não se limita apenas a um atributo pessoal, mas sim a uma forma de designação social, um sinal que inferioriza o indivíduo perante o grupo ao qual pertence. A função primordial do estigma é o controle social. E, no caso em questão, esse controle é imposto por nossa cultura patriarcal e misógina.
As mulheres estupradas são desacreditadas, direta ou indiretamente, por seus agressores perante sua família e a comunidade a que pertencem. Trata-se de uma marca social de inferioridade. Esse descrédito social resulta de julgamentos mais ou menos consensuais das pessoas da comunidade onde ocorre esse fenômeno.
As mulheres estupradas carregam o estigma de possuírem características que parecem, aos olhos dos outros, diferentes ou mesmo inferiores, precisando lutar diariamente para manter, fortalecer e até estabelecer uma identidade social.
Observamos que esse tipo de estigma sofrido por mulheres vítimas de violência sexual em relação à sociedade e à própria família faz com que elas tenham dificuldade em decidir denunciar os abusos que sofreram, o que dificulta e até impede a punição severa dos abusadores.
Felizmente, temos mulheres firmes e corajosas, como Nadia Murad, que teve a postura de denunciar amplamente os abusos que os fundamentalistas religiosos lhe impuseram, além de expor os abusos que muitas mulheres sofrem nas várias guerras ao redor do globo.
Para documentar esses abusos e garantir a punição dos abusadores, Nadia Murad e o Reino Unido apresentaram, em 13 de abril de 2022, na Organização das Nações Unidas (ONU), um código de conduta mundial para lutar de maneira mais efetiva contra a violência sexual nos conflitos que assolam países e regiões, desde o Afeganistão até a Ucrânia, passando pela África.
O “Código Murad” pretende contribuir para a busca de justiça para as vítimas sobreviventes, facilitando a recuperação de provas. Este Código é uma iniciativa destinada a construir e apoiar uma comunidade com as melhores práticas para serem usadas com os sobreviventes de violência sexual sistemática e relacionada a conflitos. Seu principal objetivo é respeitar e apoiar os direitos dos sobreviventes e garantir que o trabalho com eles para investigar, documentar e registrar suas experiências seja seguro, ético e eficaz na defesa de seus direitos humanos.
Podemos acessar esse Código, disponível em inglês, francês, espanhol, bósnio, ucraniano, árabe, curdo, suaíli (Quênia, Ruanda, Tanzânia e Uganda), amárico (Etiópia), tigrínia (Etiópia e Eritreia), birmanês e nepalês, no seguinte site: https://www.muradcode.com/home
O Código Murad possui os seguintes princípios:
- Princípios globais: compreender a individualidade dos sobreviventes; respeitar a autonomia e o controle da pessoa sobrevivente; ser responsável e agir com integridade; e agregar valor ou não intervir.
- Princípios preparatórios: a preparação é a base; conhecer e entender os contextos; criar sistemas, competências e apoio.
- Princípios de execução: coletar informações de outras fontes; dedicar tempo, ganhar espaço; garantir interações respeitosas e seguras.
Veja a íntegra desse Código em espanhol no link abaixo:
https://drive.google.com/file/d/1w1WZ84DKeoUWz5KrrvmPRKzrgeMkXobr/view?usp=drivesdk
“É um projeto do qual sou extremamente orgulhosa e me tranquiliza saber que ajuda os sobreviventes a contar as suas histórias. No ano passado, fui convidada para ir à Ucrânia para me encontrar com mulheres que sofreram violência sexual, e muitas delas afirmaram que o Código lhes deu coragem e confiança enquanto contavam as suas experiências.”
Esse Código também pode ser utilizado nos casos de apuração e de denúncia de estupros no Brasil.
No ano passado, um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) chamou a atenção para um problema crítico no Brasil, que afeta principalmente as mulheres: o número estimado de casos de estupro no país por ano é de 822 mil, o equivalente a dois por minuto.
Com o dinheiro que recebeu pelo Prêmio Nobel, Nadia Murad criou, em setembro de 2016, a Fundação “Iniciativa da Nadia”, que se dedica à reconstrução de comunidades em crise e à defesa das vítimas de violência sexual. Através de suas duas iniciativas, Sinjar Action Fund (SAF) e Survivors Action Response (SAR), a Iniciativa da Nadia desafia os líderes mundiais a agir, para tornar “nunca mais” uma realidade, e não uma promessa vazia.
Nadia explica que essa Fundação “trabalha arduamente com os sobreviventes para reconstruir as infraestruturas, fazendas e escolas que são a linha vital das comunidades. Muitas mulheres foram deixadas sozinhas para cuidar de suas famílias, portanto, dar-lhes educação, competências e instrumentos de que precisam para viver é uma parte importante do nosso trabalho. Um trabalho dificultado ainda mais pelo fato de Sinjar ser uma região contestada, sem uma governança clara ou infraestruturas burocráticas. Precisamos desesperadamente de representação política e de um prefeito, bem como de financiamentos e apoio do governo iraquiano.”
As tarefas para “empoderar” as mulheres no Iraque não são fáceis. Na palestra, Nadia comentou sobre a existência de um Projeto de Lei que visa permitir o casamento de meninas de nove anos. Sim, nove anos. Não é erro de digitação. A proposta pretende alterar a Lei de Status Pessoal, de 1959, que atualmente estabelece a idade mínima para o casamento em 18 anos.
A Lei de Status Pessoal é uma das mais avançadas entre os países árabes no que diz respeito aos direitos das mulheres. A legislação tem um teor igualitário, pois bane os casamentos infantis, restringe a poligamia e garante direitos penais e de herança tanto para mulheres quanto para homens.
Segundo matéria da Folha de São Paulo, de 8 de agosto, esse Projeto de Lei permitirá aos iraquianos escolher entre autoridades religiosas e o Estado para resolver casos familiares em questões de herança, divórcio ou guarda dos filhos.
Em virtude disso, os “muçulmanos maiores de idade” que desejam se casar poderiam optar por seguir as regras da sharia xiita ou sunita em questões de direito de família.
Sarah Sanbar, pesquisadora da Human Rights Watch (HRW), alerta que a proposta “poderia legalizar o matrimônio de meninas de 9 anos de idade, comprometendo o futuro e bem-estar de um número incalculável de crianças“. Segundo a HRW, responsáveis religiosos celebram a cada ano milhares de casamentos não registrados, incluindo os de menores de idade, uma violação da lei vigente. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) informa que 28% das mulheres iraquianas se casam antes dos 18 anos.
Ou seja, esse projeto poderá ter impacto devastador na educação, saúde e bem-estar das meninas, podendo aumentar significativamente as taxas de evasão escolar, gravidez precoce e violência doméstica.
Por fim, é importante destacar que Nadia Murad, emocionada, falou na palestra sobre a importância dos ensinamentos de sua mãe. No passado, li a seguinte declaração dela sobre sua mãe:
“Minha mãe foi e continua sendo minha luz guia e inspiração. Era uma mãe solteira, com pouca escolaridade, que criava 11 filhos na zona rural do Iraque. Ela incutiu em mim um sentido do certo e do errado, da compaixão e de ter objetivos.”
Quanto à palavra “solteira” acima, deve ser um erro de tradução, pois, na palestra, Nadia usou a palavra “solo” e não “solteira”. Sua mãe não era solteira, mas divorciada. Imagine as dificuldades enfrentadas por sua mãe, divorciada, num país patriarcal, machista e misógino, para criar 11 filhos na pobreza. Ela merece sempre ser louvada.