Se você acha que já viu de tudo na vida jurídica brasileira, é porque ainda não leu o Acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), de 11 de abril. que teve o desprazer de julgar — ou melhor, não julgar — um recurso 100% fake redigido por uma Inteligência Artificial (IA).
Sim, senhoras e senhores, a IA (des)inteligente resolveu brincar de advogado. O resultado? Um recurso recheado de trechos inventados, jurisprudência fictícia e até desembargadores que só existem no universo paralelo dos algoritmos.
Como destacou o Desembargador Gamaliel Seme Scaff, relator do caso, o recurso foi um verdadeiro parque de diversões do absurdo: precedentes com números encantadoramente sequenciais como “1234-56” e “3456-78”, citações de julgados de desembargadores aposentados (que devem ter se revirado na cadeira de balanço) e até de magistrados de outros tribunais — porque, afinal, se é para inventar, melhor inventar com estilo.
Ah, e não se preocupe: para deixar tudo ainda mais surreal, a peça misturava trechos autênticos com invenções descaradas, numa salada indigesta que obrigaria o julgador a fazer o impossível: separar o “joio do trigo” — ou, no caso, a realidade da mais pura ficção judicial.
Diante da balbúrdia textual, como bem registrou o relator, a 1ª Câmara Criminal do TJ-PR decidiu, por unanimidade, que simplesmente não havia como conhecer o recurso. Afinal, como exigir seriedade de uma peça jurídica que parece ter sido escrita por um roteirista de ficção científica num dia ruim?
E para que ninguém se iluda, o Tribunal ainda fez questão de lembrar: “O Poder Judiciário não está brincando de julgar recursos”. “Ao agir assim, o advogado não mostra a seriedade que o caso e o seu cliente exigem e merecem.”
Resta saber se a IA, depois da bronca, vai recorrer ao STJ… ou quem sabe ao ChatGPT Supremo.
Leia no sítio abaixo a íntegra do Acórdão citado acima:
https://drive.google.com/file/d/1elJiWzaDxPRV6P4re5_FpIqz_PrDaRy2/view?usp=drivesdk
Esse episódio tragicômico só confirma algo que eu já alertava no meu artigo publicado no Diário do Rio, em 13 de outubro de 2024: “Riscos da Alucinação da Inteligência Artificial e da Manipulação de Números por Políticos”.
Veja esse artigo no seguinte sítio:
Já naquela ocasião, chamei a atenção para o fenômeno da “alucinação” da IA — quando os modelos generativos, como o ChatGPT, simplesmente inventam informações, misturando realidade e ficção como se fosse tudo farinha do mesmo saco.
O que ocorreu no Paraná foi um exemplo perfeito, digno de figurar entre os grandes casos de “criação espontânea” da IA. Assim como mencionei no meu artigo, o ChatGPT e similares, apesar de impressionarem muita gente e de serem úteis, não pensam, não compreendem, não têm compromisso com a verdade. São apenas papagaios sofisticados de padrões estatísticos, capazes de gerar belas frases — e também de produzir aberrações jurídicas monumentais.
E é por isso que, como defendi no artigo, a supervisão humana rigorosa é inegociável. Usar a IA sem revisão é como assinar um cheque em branco para o caos. Afinal, como bem ironizou Noam Chomsky: deveríamos parar de chamar esses sistemas de “inteligência artificial” e começar a chamá-los pelo que realmente são: software de plágio.
O mais trágico — ou cômico, dependendo do ponto de vista — é que esse não foi um caso isolado. Como também relatei, já tivemos:
Advogado nos EUA sendo punido por citar seis precedentes inexistentes criados por IA (o famoso caso contra a Avianca);
Desembargador brasileiro usando jurisprudência fake em decisão judicial e depois alegando, candidamente, que foi “mero equívoco” por “sobrecarga de trabalho”.
Ou seja, a “alucinação” da IA já virou praga no meio jurídico. E não adianta culpar o estagiário, o assessor ou o algoritmo: quem assina a petição é o advogado. E ele tem a obrigação, como reforçou o Tribunal paranaense, de revisar o que está sendo protocolado.
A prática de culpar assessores e estagiários (valorosas classes que levam as culpas quando algo dá errado), e agora as IAs, por erros cometidos por seus superiores é um fenômeno recorrente no setor público ou privado e até na política.
Essa tática de delegar a culpa não é nova; governantes, dirigentes e chefes frequentemente se esquivam de suas responsabilidades, transferindo os erros para os subordinados quando algo sai errado.
Durante meu tempo na Prefeitura e no Legislativo municipal, observei essa dinâmica em diversas situações. Em tom de brincadeira, eu costumava dizer que havia uma “cláusula oculta” nos contratos de trabalho dos assessores que determinava que, em caso de erro do chefe, o assessor assumia a culpa.
Essa transferência de responsabilidade enfraquece a liderança, já que um verdadeiro líder deve reconhecer seus próprios erros e responder por suas decisões, ao invés de buscar culpados entre aqueles que o serve.
O caso paranaense nos ensina uma lição valiosa: sempre, sempre, sempre devemos desconfiar. Principalmente de informações produzidas e divulgadas por robôs.
Porque no tribunal da vida, quem não checa os fatos pode acabar sendo condenado… ao ridículo ou ao fracasso.