O helenismo de Nelson Rodrigues

Advertisement
Receba notícias no WhatsApp
Foto: reprodução internet

 Nascido em 23 de agosto de 1912, na cidade de Recife, e falecido em 21 de dezembro de 1980, no Rio de Janeiro, Nelson Rodrigues, esse valiosíssimo escritor brasileiro, que flertou com a crônica, com o folhetim, com o romance e com o teatro, talvez nunca tenha fisicamente pisado na Grécia. A maravilhosa terra de Sócrates, Platão, Aristóteles, Aristófanes, Sófocles, Ésquilo e Eurípedes talvez nunca tenha conhecido o gênio de Nelson, nunca tenha prestigiado seu nome ou lhe conferido alguma menção honrosa. Não há como garantir isso sem tomarmos por base dados de sua biografia. O que é certo dizer é que Nelson tinha consigo a centelha grega, na alma.

Helenismo é o nome que se dá ao fenômeno histórico e cultural que, na Grécia antiga, se manifestou como sendo a expansão do ideal de civilização semeado desde os tempos áureos de Péricles e Sólon e solidificado com Alexandre, o Grande. Este pretendeu fazer com que o mundo não-grego vivesse como se fosse grego, ou seja, assimilando e cultuando os valores de um povo que, entre outros, destacava-se por seu amplo poder de influência. Também helenismo é a expressão que podemos usar para designar a “educação do Homem de acordo com a verdadeira forma humana, com seu autêntico ser”, como nos revela o excelente estudo de Werner Jaeger.

Nelson Rodrigues era carregado desse espírito helênico em suas peças de teatro. Sendo o teatro – como conhecemos até hoje – uma invenção dos gregos; e, sendo Nelson um autêntico dramaturgo, então seria inevitável que traços do helenismo estivessem inculcados em sua escrita e em seu pensamento. Mas, em teatro, o que significa helenismo? Nelson nos deu algumas pistas a respeito de tal indagação, mas não se deteve longamente sobre o assunto, já que seu âmbito de atuação não era o teórico. Seria preciso que algum filólogo ou filósofo o tivesse feito com apuro e acuidade.

Friedrich Nietzsche, ao escrever a obra O Nascimento da tragédia, nos ensina com aquele jeito minucioso, que era lhe era peculiar, o que se entende por helenismo e que relação existe entre isso e o teatro. Ao depurar a genealogia da tragédia, Nietzsche se deu conta de que, no fundo, não é o pessimismo da fraqueza o que deu motivos para que o teatro eclodisse na Grécia e tivesse tanto êxito entre aos atenienses. A razão para que o teatro tivesse encontrado na tragédia um meio de expressão popular não foi o sofrimento, a dor, a melancolia, o cansaço, etc., ou seja, todos os signos negativos e previsíveis que se acham associados à ideia vulgar do que se entende por tragédia.

Advertisement

Nietzsche nos fala que a “propensão intelectual” dos gregos, a tendência a traduzir em letras, formas e gestos, “o duro, o horrendo, o mal, o problemático da existência” não partiu de nenhum esgotamento da alma, de nenhum abandono ao infortúnio. A nascente da tragédia não se encontra no reconhecimento do que temos de pior; não se escreviam tragédias sobre filhos que matam o pai, se casam e procriam com a mãe, como Édipo Rei, porque a origem de nossas ações é a fraqueza moral.

A contrário, a tragédia tem sua origem no que temos de mais poderoso, de mais profundo e de mais arraigado em nossa constituição orgânica; a tragédia nasce da vida e não da morte. Dioniso, deus do teatro, é a potência em nome da qual se ofereciam cultos em honra à vida, à comunhão entre os seres, à fertilidade da terra, ao espírito primaveril da existência, à florescência dos instintos mais primitivos e inocentes que habitam em nós. A tragédia é expressão desse viver intenso; se ela aduz o sofrimento e a dor, não é por carência, por debilidade de nossas forças; mas, antes, porque existe vida em abundância atiçando o instinto a agir e a viver segundo seu imperativo natural.

Em Nelson Rodrigues, a tragédia existe porque há vida em demasia querendo saltar para fora dos limites do corpo. O instinto nunca se contém em seus personagens. Por isso, eles sempre escandalizam. “Uma peça trágica tem o poder de criar a vida e não imitá-la”, diz Nelson. O que vivemos em nosso cotidiano não é vida; é habito, costume, moralidade. Tais adornos escamoteiam a vida ardente que se aninha em nós. Fora do palco, não vivemos a vida, imitamo-la. Fingimos, para nós mesmos, que somos criaturas humanas, pois ignoramos ou subestimamos os “desesperos”, as “paixões”, as “agonias” “que poderiam alçar à plenitude” a existência.

 É suficiente que deparemos com a tragédia, para que saibamos o tanto de gravidade que existe na vida que desperdiçamos diariamente. A tragédia vem daí, do desperdício.O homem diário é “antiteatral por excelência”. Por isso, carece da tragédia, pois ela “mergulha no abismo” que evitamos olhar, por medo e covardia. A peça trágica cria desesperos, abre as feridas, desnuda a alma da “humanidade cachorra”; ela deve “ofender, dilacerar”; ou, pelo menos, nos humilhar diante da pureza que supomos ter.

Os Sete Gatinhos (1958), a peça que considero seu trabalho mais magistral, caminha por essa vereda das pulsões vitais impossíveis de serem vedadas pela moral. Na família disfuncional de Noronha, esposa e filhas são pervertidas e se travestem ou de virgindade ou de castidade. Mesmo tentando falsear, nessa peça, “a face horrenda de todos nós” se expõe como uma pústula, não de algo que, por trás, está carente; mas de algo que excede nas forças. “Ninguém presta, ninguém vale nada”; mas porque aquela casa é um antro de pulsões desavergonhadas querendo vazar. O dique da moral racha e a vida vem à tona. A esposa de Noronha desenha obscenidades no banheiro, por volúpia. Aurora, a filha mais velha, na intimidade do sexo, roga ao cafetão Bibelot que ele a xingue, que a estapeie, por volúpia. Arlete, outra filha, beija outra mulher na boca, por volúpia. Silene, a filha caçula, assassina uma gata prenha, por volúpia; e, por fim, o pai também, por volúpia, por não se conter em si, transforma a casa em um bordel, prostituindo as filhas, até o desfecho em que as mesmas matam o “velho safado”. Morte, sexo, virgindade, solidão, loucura, santidade: são rostos tingidos de volúpia.

Nelson definitivamente é o brasileiro mais heleno de tivemos. Desterritorializou a Grécia e a reterritorializou no Grajaú, na Tijuca, em Copacabana. Rompeu as fronteiras esse pernambucano-grego-carioca. Por isso, o vazio que ele ocupa não tem substituto.

Advertisement
Receba notícias no WhatsApp
entrar grupo whatsapp O helenismo de Nelson Rodrigues
Advertisement

3 COMENTÁRIOS

  1. Nelson Rodrigues descreve “A Vida Como Ela É”, com o despudor incontido de quem conhece e sente o avesso do avesso humano.
    “A hipocrisia se desnuda envergonhada, mas ao mesmo tempo se sente livre… Libertina… Alucinada…
    Sem escrúpulos, como se o mundo coubesse entre quatro paredes…
    Verte o gozo pleno e maduro de quem não tem limites e nem se importaria se houvesse”…

    Nelson Rodrigues deve ter visto Epimeteu abrir a caixa de Pandora, presenciou quando os males do mundo se esvaíram na velocidade da luz e tingiram a brancura da humanidade.
    Zeus, enfim, se sente vingado pelo roubo de Prometeu e abre as cortinas do Olimpo, para se deliciar com a tragédia humana…
    Em suas mãos onipotentes, um roteiro de Nelson Rodrigues…

Comente

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui