Paredão do Lume? Urbanistas protestam contra construção de ‘quitinetes’ na Praça Mário Lago

O “buraco do Lume” vai virar Paredão: simulação profissional mostra impacto do espigão de mais de 20 andares e da perda da área verde de quase 3000m2 no coração do Centro. Especialistas protestam, e mesmo entusiastas da revitalização da região estão preocupados. Nova lei diz que no local o Gabarito é Livre

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SImulação da construção de um prédio de 90 metros de altura no terreno ajardinado conhecido como Buraco do Lume. O paredão chama atenção ao longe

Um possível empreendimento imobiliário, planejado para ocupar uma extensa área verde conectada a uma praça tradicionalmente voltada para o entretenimento e a política assim como a luta social no Centro do Rio, anda gerando indignação entre especialistas, arquitetos, e urbanistas. No lugar conhecido como o “Buraco do Lume” – um terreno retangular de quase 3.000m² hoje gramado e arborizado – o projeto promete transformar a paisagem da região, trazendo novos moradores para o Centro, mas também levanta questões sobre o uso de espaços públicos e o impacto urbano do local da construção de um prédio de mais de 20 andares: uma simulação mostra o enorme paredão que vai surgir mudando a ambiência de toda a região (foto principal).

Este terreno é basicamente o que resta desocupado do antológico Morro do Castelo, onde nasceu a cidade. Nunca teve uso privado de ninguém, e se tornou privado por linhas transversas. Era uma área pública que foi desmembrada e vendida pelo extingo Banco do Estado da Guanabara (BEG) e acabou jamais sendo efetivamente paga, pois quem prometeu comprar e pagar – o extinto Grupo Lume – faliu antes de quitar o pagamento originalmente combinado. Depois disso, o Estado e a Prefeitura sempre bloquearam a edificação no local, que acabou sendo adquirido num leilão por um investidor imobiliário.

Em dezembro do ano passado, o DIÁRIO DO RIO revelou a existência de um mega projeto, que estava em fase de liberação, a ocupar finalmente o jardim em frente ao Terminal Garagem Menezes Côrtes, onde antes existia uma construção inacabada, tombado e posteriormente convertido em parte da praça pública. O projeto seria de um edifício residencial, com quitinetes — ou “estúdios”, apartamentos compactos seguindo a nova tendência imobiliária do Centro — e lojas na fachada, algo exigido em novos empreendimentos por lá, as chamadas “fachadas vivas”. A proposta – controversa – de erguer um paredão no local é vista por alguns como parte das iniciativas de revitalização do Centro, uma área que a prefeitura tem se esforçado para reabilitar nos últimos anos, promovendo o uso misto de espaços com lojas no térreo para dinamizar a região. Mas a que custo?

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Área que seria ocupada pelo mega edifício de apartamentos compactos, destacada em vermelho/ Hoje, é u jardim com árvores – Foto: ArchDaily

O X da questão vem agora. O terreno arborizado e seu entorno têm um significado histórico e político profundo, e a possibilidade de um edifício privado se erguer ali gerou uma onda de resistência. O projeto está em fase de análise, o que foi confirmado pelo DIÁRIO DO RIO. Em nota enviada à redação, o gabinete do prefeito Eduardo Paes (que inclusive já se pronunciou claramente no passado contra a construção de um prédio na praça), informou que “se aprovado, deverá seguir a legislação em vigor […] Além disso, os órgãos responsáveis pelo entorno de bens tombados serão consultados durante o processo.” Ou seja, parece que o alcaide mudou de idéia, não sem antes aprovar – o fez no Reviver Centro 2 – um projeto que transformou o terreno em Área de Gabarito Ilimitado: numa faixa imaginária que contém o Lume, o construtor pode sonhar e submeter projetos de qualquer altura. Mas que pensam os urbanistas sobre isso? Consultamos o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade – IRPH, responsável pelo patrimônio cultural da cidade, que preferiu não comentar o polêmico assunto.

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Perspectiva do local como estea hoje, sem o novo prédio no buraco do Lume: ao fundo vê-se o Menezes Côrtes, com sua fachada sem janelas
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Perspectiva do local com a hipotética construção de um prédio com 140 metros na área que hoje tem “Gabarito Ilimitado”: mega paredão

Buraco do Lume

Uma área que foi um “buraco” durante várias décadas devido a um projeto falido da empresa LUME, passou a ser um jardim, parte da Praça Mário Lago (antiga Melvin Jones), das áreas mais simbólicas da luta política e social no Centro do Rio. No final de 2022, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj) liderada pelo deputado Rodrigo Amorim, aprovou o destombamento do terreno, permitindo que ele fosse transformado em um espaço para construção de um grande edifício residencial, o que foi visto por ele como uma tentativa de aproveitar melhor a área sob a ótica do planejamento urbano. Mas ainda havia entraves na prefeitura, e uma postura dela contrária ao projeto. Para uns, reviver o Centro justifica qualquer coisa. Para outros, é um sacrilégio.

praca Mario Lago Paredão do Lume? Urbanistas protestam contra construção de 'quitinetes' na Praça Mário Lago

No entanto, a decisão da ALERJ na época não agradou a muitos especialistas e defensores do patrimônio histórico. Em janeiro de 2023, o arquiteto Manoel Vieira (hoje Secretário Municipal de Emprego e Renda) e o historiador Paulo Knauss, membros do Conselho Estadual de Tombamento, solicitaram um tombamento emergencial do Buraco do Lume, argumentando que a área possui um valor histórico ligado ao Plano Agache – plano urbanístico da década de 1930 que moldou a cidade do Rio – e ao conjunto de edificações da época do desmonte do Morro do Castelo. Para eles, o projeto de destombamento representou uma ameaça ao patrimônio cultural e ao legado da cidade. Mas, por enquanto, a questão estadual ficou por isso mesmo. Mas ainda há a necessidade de a prefeitura aceitar a destruição definitiva do jardim.

Até mesmo os maiores entusiastas da revitalização do Centro têm sentimentos cruzados. “Antes de tudo, o Centro do Rio precisa de pessoas morando. Famílias, crianças, e jovens habitando a região central darão a sustentabilidade necessária para uma regeneração urbana duradoura. Não podem ser apenas moradias de temporada mas lares de fato, também considerando os trabalhadores que já usam a área cotidiamente”, afirma o urbanista Washington Fajardo, aliado de primeira hora do Prefeito Eduardo Paes. Para Fajardo, esta “sempre foi a orientação da administração Eduardo Paes em seus três exitosos mandatos e são o espírito do Porto Maravilha e do Reviver Centro.” Mas para o arquiteto que gestou a legislação do Reviver Centro, “nunca subtraindo as amenidades ambientais da área. Um grande desafio do Centro é a apropriação do espaço público pela população, que precisa ser cada vez mais organizado, seguro e verde.” E é aí que a história vira: “é urgente que o Ministério Público analise as questões fundiárias envolvidas nesta faixa de terra que é um remanescente direto do Morro do Castelo, cujas apropriações do extinto Banco do Estado da Guanabara e posterior venda mal concretizada pela falência do grupo adquirente necessitam de um due diligence, que é a verificação fina documental e registral, em perspectiva histórica”, cita, demonstrando que a necessidade de atrair moradores para a região deve ter certas limitações.

A secretária de Meio Ambiente e Clima do Rio – além de arquiteta e urbanista – Tainá de Paula se manifestou também contra o uso do terreno para a construção do empreendimento. Para ela, a destinação de parte da praça para um edifício privado não é razoável, especialmente em uma área já densamente ocupada. Tainá defende a requalificação de imóveis e terrenos ociosos, e não o uso de espaços públicos para fins privados.

A construtora mineira Patrimar, que estaria envolvida no projeto, confirmou que está avaliando a oportunidade de investir na área, mas se limitou a esta nota bem breve. Como aliás todos ligados à Prefeitura têm feito, aparentemente evitando “colocar a mão na cumbuca”. Uma cumbuca com Gabarito Livre… Há quem estranhe especialmente o silêncio do órgão de patrimônio municipal.

Nocivo ou necessário?

O arquiteto Fernando Costa, da Cité Arquitetura, seria o responsável por desenvolver o novo projeto de um prédio gigante para o terrenaço e afirmou em 2023 — quando começaram a circular as informações preliminares — que a proposta estaria dentro da legislação do Reviver Centro e que seria mais uma construção a trazer movimento para o Centro do Rio, no que disse considerar sua região mais nobre.

O urbanista Fajardo, maior defensor da revitalização, pondera: “Importante também salientar que as decisões públicas nos últimos 40 anos sempre foram pela manutenção desta faixa de terra como espaço livre, algo precioso no Centro do Rio, e sem edificabilidade. Sempre melhor intensificar as checagens para garantir segurança jurídica e defesa do interesse público numa área tão crítica para o presente e futuro do Rio.”

Especialistas como Leila Marques, conselheira do CAU/RJ, questionam a viabilidade social e histórica do projeto. Para Leila, a ocupação do Buraco do Lume por um empreendimento privado não atende aos interesses da população, especialmente quando o terreno foi integrado à praça e passou a servir à coletividade.

“Primeiramente, é bom que se esclareça que de ‘buraco’ o terreno não tem mais nada, só o nome. De lá pra cá, o terreno-buraco foi incorporado à praça adjacente, dando à população um uso muito mais socialmente útil, sustentável e agradável, sendo esse o papel dos territórios de uma cidade justa: servir à sociedade. Obviamente, como o terreno um dia foi particular, e, em 2020 passou por um processo legítimo de tombamento, quero crer que as indenizações e contrapartidas foram tratadas com quem de direito, à época, não cabendo mais o argumento de que o terreno não era parte da praça! Não era? E daí? Estamos falando de algo que foi incorporado à praça há quase 50 anos. E toda praça é, e deverá continuar a ser sempre, do povo” afirmou Leila.

Paulo Vidal, arquiteto, urbanista, professor e uma referência em patrimônio histórico no Rio considera o projeto um equívoco, e cita as várias demolições e mutilações que a cidade sofreu, criando sempre uma “nova cidade incompleta”. Para ele, o Buraco do Lume “é o ponto onde se encontram estas diversas “cidades”, pois a Rua São José é uma das mais antigas da cidade, o vértice da praça encontra antiga Av. Central de 1905 e aponta para o Largo e Rua da Carioca, a praça propriamente é oriunda do desmonte do Morro do Castelo, em 1922, a Av. Nilo Peçanha é originada no Plano Agache de 1930. sendo a praça rodeada de sobrados do século XIX e início do XX, prédios da década de 40, 50, 60 e 70”. Hoje o terreno está arborizado, e, segundo ele “colabora positivamente para melhorar o ambiente de um trecho muito pouco arborizado do Centro”. E o ex-superintendente do Iphan Rio na gestão Lula faz uma provocação: “é de se admirar que tendo toda a área do Porto Maravilha para edificar, a Av. Presente Vargas e a Cidade Nova, ainda incompletas, São Cristóvão e a Av. Francisco Bicalho com áreas enormes para renovação, seja necessário adensar mais este trecho do Centro da Cidade.”

Em um tom semelhante, Olav Schrader, outro ex-superintendente do IPHAN – na gestão de Bolsonaro – argumenta que o projeto pode ser visto como uma tentativa de recuperação de um espaço degradado, mas que o impacto de tal intervenção precisa ser cuidadosamente analisado. “O Centro do Rio sofreu dois duros golpes que o deixaram em boa medida como um corpo dilacerado e cheio de cicatrizes. A devastação de parte significativa de seu conjunto ancestral, incluindo aí exemplos como o Morro do Castelo ou a Igreja dos Clérigos, foi o primeiro duro golpe. O segundo golpe foi a aplicação da ideologia de segregação, de fonte corbusiana ou modernista, que proibiu paulatinamente a moradia das pessoas na região. Sem dúvida o projeto proposto para o Buraco do Lume é polêmico. Mas, ao mesmo tempo, nos convida a refletir sobre a questão legítima de como melhor reverter o deserto residencial criado por utopias falidas.” comentou Schrader.

Defensores do patrimônio também estão preocupados. O restaurador, protetor e ativista Marconi Andrade não consegue entender como é possível transformar o espaço verde existente há décadas num paredão de concreto. Gestor do grupo SOS Patrimônio, ele se indigna: ”estive observando o local a alguns dias atrás, e existe uma micro fauna naquele espaço: seria interessante o plantio de mais árvores, para dar um aspecto de uma micro floresta que com certeza atrairia novas espécies de pássaros e quem sabe de mamíferos. O Centro está repleto de prédios vazios, porque não se revitaliza os existentes? Temos um prefeito que acabou se ser eleito com o apoio da maioria da população da cidade, ele tem apoio para fazer o que quiser, tem maioria na Câmara, ou seja não vejo nenhuma necessidade de mais um prédio naquela região, Precisamos sim é de mais verde”.

O prefeito Eduardo Paes disse à Veja ano passado que não autorizaria projeto algum de espigão no ex-buraco. Mas, desde então, a prefeitura toda se calou. Vem mesmo um Paredão do Lume por aí?

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3 COMENTÁRIOS

  1. Sou contra totalmente a edificação no local. Existem vários imóveis abandonados, alguns em péssimo estados na região central da cidade e que podem ser usados perfeitamente. Absurdo essa construção.

  2. Sou contra a edificação no local. Há muitos imóveis velhos, caquéticos e abandonados na região central da cidade que poderiam perfeitamente ceder lugar a novas edificações. Deixem a praça no lugar!

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