Conforme veiculado em primeira mão pelo Diário do Rio na semana passada, o Prefeito do Rio de Janeiropublicou, em edição extra do Diário Oficial do Município de 03 de junho de 2024, dois decretos determinando, respectivamente, o tombamento provisório e a utilidade pública para fins de desapropriação de três bens móveis extraídos da Igreja de São Pedro dos Clérigos, demolida em 1944 para a expansão da Avenida Presidente Vargas. Trata-se de uma escultura de madeira talhada e policromada representando o Divino Pai Eterno, atribuída ao Mestre Valentim, um altar de madeira entalhada do século XVIII e um par de anjos em madeira entalhada do século XVIII
A iniciativa foi tomada pelo Prefeito, sob o argumento de que essas obras de arte são um patrimônio cultural do município do Rio de Janeiro, para impedir que elas fossem leiloadas naquela mesma noite num leilão no município de São Paulo, com vistas a sua posterior doação ao Museu de Arte do Rio (MAR).
Apesar de insólita, a medida jurídica é perfeitamente legal.
O tombamento é um instrumento de acautelamento e preservação do patrimônio cultural material — móvel e imóvel — previsto no Brasil desde 1937. De acordo com a legislação brasileira, as coisas tombadas não podem, em hipótese alguma, ser destruídas, demolidas ou mutiladas nem, sem prévia autorização do órgão de patrimônio responsável por seu tombamento, ser reparadas, pintadas ou restauradas. Os bens móveis tombados, além dessas restrições, não podem sair do país, senão por curto prazo, sem transferência de domínio e para fim de intercâmbio cultural, a juízo do órgão de patrimônio responsável por seu tombamento.
Segundo a Constituição, a proteção do patrimônio cultural brasileiro é competência comum da União, dos Estados e dos Municípios, de modo que o tombamento cabe a qualquer um desses três entes políticos. O tombamento incide tanto sobre bens privados quanto sobre bens públicos, podendo, inclusive, um ente tombar bem dooutro. O próprio STJ considera lícito, por exemplo, o tombamento de bem estadual por Município e o STF, por sua vez, já declarou constitucional o tombamento de bem federal por Estado.
A desapropriação é um instrumento constitucional de aquisição de propriedade pelo Poder Público por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro ao proprietário. Todos os bens podem ser desapropriados pela União, pelos Estados e pelos Municípios, todavia, ao contrário do tombamento, a lei não permite a desapropriação de bem estadual ou federal por Município nem a desapropriação de bem federal por Estado.
Considerando que os bens em questão pertencem, até onde se sabe, legitimamente ao acervo de colecionadores privados, o caso não suscitaria qualquer controvérsia não se encontrassem eles em São Paulo.
Em matéria do Brazil Journal do dia 09 de junho, a Dra. Denise Puertas manifestou a opinião de que o procedimento adotado pela municipalidade carioca seria ilegal, pois o tombamento deveria restringir-se ao território do ente político responsável por sua promoção. E que o correto seria o Município do Rio de Janeiro exercer o direito de preferência no momento da realização do leilão por meio de algum de seus museus, com base no Estatuto dos Museus (Lei nº 11.904/2009).
Com a devida vênia, essa argumentação não procede.
Antes de mais, a legislação de tombamento não estabelece restrições territoriais para os entes políticos, pois o fundamental não é a localização do bem, mas se o bem integra o patrimônio cultural da população representada por aquele ente. É bem verdade que, na esmagadora maioria dos tombamentos de imóveis, a regra é a localização do imóvel corresponder à do território do ente responsável pelo tombamento. Nada obstante, a regra comporta, ao menos, duas exceções: (I) o tombamento municipal ou estadual de imóvel situado em mais de um município ou estado, respectivamente; e (II) otombamento municipal ou estadual de imóvel que deixou de pertencer a seu território por cisão de Município ou deEstado, respectivamente. Para o tombamento de bens móveis é ainda mais evidente a inaplicabilidade dessa restrição territorial, uma vez que eles não estão vinculados ao solo.
Depois, o direito de preferência para a aquisição de bens culturais conferido aos museus — inclusive os privados — integrados ao Sistema Brasileiro de Museus pelo Estatuto dos Museus se soma à prerrogativa de os entes políticos executarem tombamentos, não a anula.
Por último, em relação à desapropriação com efeitos extraterritoriais, o STF entende que um Município não pode desapropriar bem de outro Município nem um Estado pode desapropriar bem de outro Estado, contudo não existe óbice algum a que um Município ou um Estado desaproprie bens privados fora de seu território.
Sendo assim, por mais que o Prefeito, em tese, pudesse utilizar o MAR para adquirir as obras de arte no leilão, com base no direito de preferência, não incorreu em ilegalidade ao optar pelo tombamento seguido de desapropriação, por se tratar de bens pertencentes a particulares.