Em artigo publicado no dia 23 de agosto, em sua coluna no sítio “Tempo Real”, a jornalista Berenice Seara informa que “a Justiça Federal condenou a União, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a Fundação Cultural Palmares a cumprirem uma série de obrigações relacionadas à preservação e valorização do Cais do Valongo, sítio arqueológico localizado na zona portuária do Rio e reconhecido como patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).”
Coincidentemente, no dia 22 de agosto, assisti à palestra “CAIS DO VALONGO E A MEMÓRIA DA DIÁSPORA AFRICANA” no sensacional evento “VI SEMINÁRIO ARTE, CULTURA E PODER – Lugares de Memórias Difíceis no Rio de Janeiro”. Como sou um curioso e leitor contumaz, fiz questão de ler, no mesmo dia, o artigo que tem o mesmo título da palestra, escrito pelas historiadoras Brenda Coelho Fonseca, Leila Bianchi Aguiar e Márcia Chuva.
Esse artigo está nas páginas 106 a 115 do excelente livro “Lugares de Memórias Difíceis no Rio de Janeiro”, organizado por Myrian Sepúlveda dos Santos, Ana Paula Alves Fernandes e Gabriel da Silva Vidal Cid, e lançado no Seminário acima citado.
Recomendo fortemente a leitura desse livro, com quase 500 páginas, pois, embora escrito por membros da Academia (instituições universitárias), ele apresenta diversos artigos em linguagem simples e acessível, trazendo à tona vários sítios que foram palco de violência no Rio de Janeiro, os quais o Poder Público e grande parte da população procuram esquecer, seja por qual motivo for.
O livro está dividido nos seguintes capítulos:
- Memória Indígena
- Memória Africana
- Ditadura Militar
- Violência Policial
- Desastres Ambientais
- Mulheres, Luta e Resistência
- Outras Memórias
Voltando à questão do Cais do Valongo, na palestra e no artigo citados, fiquei sabendo que, infelizmente, todas as peças que fazem parte da coleção de mais de 1 milhão de artefatos arqueológicos catalogados durante as intervenções urbanísticas do projeto Porto Maravilha ainda estão armazenadas “criando poeira” em caixas e contêineres no edifício do Galpão das Docas, localizado em frente ao sítio arqueológico do Cais do Valongo.
Principal porto de entrada de africanos escravizados no Brasil e nas Américas, o Cais do Valongo passou a integrar a Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO em 9 de julho de 2017.
É sempre bom lembrar que o Brasil recebeu perto de quatro milhões de escravos durante os mais de três séculos de duração do regime escravagista. Pelo Cais do Valongo, passou cerca de um milhão de africanos escravizados, ao longo de aproximadamente 40 anos, tornando-o o maior porto receptor de escravos do mundo.
A inclusão desse Cais na Lista da UNESCO representa o reconhecimento de seu valor universal excepcional como memória da violência contra a Humanidade representada pela escravidão, e, principalmente, de resistência, liberdade e herança de nossos ancestrais africanos, reconhecendo a inestimável contribuição deles e de seus descendentes à formação e desenvolvimento cultural, econômico e social do Brasil.
Embora, no artigo de Berenice Seara, citado anteriormente, critique-se apenas a omissão do governo federal, vale ressaltar também a omissão dos governos municipal e estadual. Isso pode ser visto no trecho abaixo do artigo das três historiadoras já mencionado:
“Em 2016, a Prefeitura do Rio de Janeiro assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Federal (MPF), no qual foram definidas as responsabilidades e os prazos para a gestão e guarda dos objetos arqueológicos. Além disso, o TAC exigiu, mediante a criação do Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana, o tratamento adequado desse material, sua guarda, fomento a pesquisas e construção de uma área de exposição para divulgação dos objetos. Após anos de litígio judicial entre as partes, foi autorizada pelo IPHAN a transferência de parte dos objetos para o Departamento de Arqueologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) como forma de viabilizar as pesquisas sobre o material.”
Além disso, o artigo informa que:
“o Cais do Valongo ainda possui problemas de manutenção e pouco foi integrado às demais áreas de grande fluxo turístico da cidade, o que explica que apareça em um site internacional de turismo apenas como o 177° ponto de interesse da cidade do Rio de Janeiro.
Apesar de muito importantes, as visitas à região portuária não possuem o mesmo alcance das realizadas nas principais atrações turísticas da cidade, e muitos dos turistas vindos de outras cidades brasileiras, ou mesmo de regiões mais distantes, pouco contato fazem com os pontos que integram o circuito da herança africana.
A região do Cais do Valongo não é bem sinalizada e adaptada para o recebimento de turistas (possui calçadas estreitas, poucas sinalizações, carência de estacionamentos para ônibus de turismo e falta de segurança), e as visitas à zona portuária muitas vezes ficam restritas à parte mais próxima do Museu do Amanhã, Museu de Arte do Rio e Largo da Prainha. As visitas ao Cais são organizadas principalmente pelo Instituto dos Pretos Novos, movimentos sociais e universidades comprometidos na construção de uma memória afrodiaspórica na região.”
Em tempo, dentro do espírito da Linguagem Simples, cujo Dia Internacional será comemorado no dia 13 de outubro, informo que “afrodiaspórica” refere-se ao código e símbolo cultural que se expandiu no mundo por meio da diáspora, ou seja, através da migração forçada dos povos africanos.
Assim sendo, se continuarem a negligência e a omissão na questão abordada neste artigo por parte dos governos federal, estadual e municipal, que dizem “de boca cheia” nas redes sociais, ao estilo TikTok, que se preocupam com o patrimônio histórico e combatem o racismo, corremos o risco de o Cais do Valongo perder o reconhecimento do título de Patrimônio Mundial concedido pela UNESCO. Isso representaria um total e absoluto descaso na gestão do seu sítio e de seu respectivo acervo, resultando em uma vergonha internacional e um desrespeito à memória de nossos ancestrais africanos e seus descendentes.
Aqui, vale destacar que, como aprendi naquele Seminário, a palavra “acervo” pode não ser a mais adequada para definir alguns dos mais de um milhão de artefatos arqueológicos reconhecidos e catalogados no Cais do Valongo. Isso porque, para as religiões de matriz africana, acredita-se na sacralidade do Cais do Valongo e de alguns objetos ali recolhidos, que seriam identificados como objetos vivos, com energia sagrada, ou seja, com “Axé”. Em outras palavras, possuem uma aura de sagrado.
Infelizmente, a negligência e o descaso dos governos municipal, estadual e federal na gestão do Cais do Valongo são uma demonstração clara de que os dirigentes políticos ainda estão impregnados do racismo e de nossa cultura escravista, o que os leva a relegar ao esquecimento a história de luta de nossos ancestrais negros sequestrados da África. Lamentável.
Esperamos que esses governantes saiam do mundo do TikTok eleitoral e marqueteiro e venham atuar no mundo real de nós, simples mortais, a fim de impedir que o Cais do Valongo perca seu título de Patrimônio Mundial.